«...vamos ver, diz a guia, apenas uma ínfima parte do que se calcula que os artistas astecas produzira sem instrumentos de metal nem rodas para transportar os grandes blocos de pedra, está aqui quase tudo o que sobreviveu à destruição de México-Tenochtitlan, a grande cidade enterrada debaixo deste mesmo chão que as senhoras e os senhores pisam,
a violência imóvel da escultura asteca provoca no senhor uma reacção que nenhuma obra de arte lhe tinha suscitado, quando menos esperava vê-se diante do ácido monólito em que um escultor sem nome gravou como quem petrifica uma obsessão a imagem implacável de Coatlicue, mãe de todas as divindades, do Sol, da Lua e das estrelas, deusa que cria a vida neste planeta e recebe os mortos no seu corpo,
o senhor fica magnetizado por ela, magnetizado, não há outra palavra, irá suspender os tours a Teotihuacan, Taxco e Xochimilco, para voltar ao Museu às quintas, sextas e sábados, sentar-se em frente de Coatlicue e reconhecer nela algo que o senhor intuiu sempre, capitão,
a sua insistência provoca suspeitas entre os funcionários, para se justificar, para disfarçar esse fascínio aberrante, o senhor compra um bloco e começa a desenhar Coatlicue em todos os seus pormenores,
no domingo irá parecer-lhe absurdo o seu interesse por uma escultura que afinal lhe é alheia, e em vez de voltar ao Museu irá inscrever-se na excursão FESTA BRAVA, os amigos que fez nesta viagem irão perguntar-lhe por que é que não foi com eles a Taxco, a Cuernavaca, às pirâmides e aos jardins flutuantes de Xochimilco, onde se meteu durante estes dias, será que não leu D. H. Lawrence, não sabe que a cidade de México é sinistra e que um perigo mortal espreita em cada esquina?, não, não, nunca saia sozinho, capitão Keller, com estes mexicanos, nunca se sabe,
não se preocupem, sei cuidar de mim, não me viram porque passei os dias todos em Chapultepec a desenhar as melhores peças, e eles, porque é que perde o seu tempo, pode comprar livros, postais, slides, reproduções em miniatura,
quando a conversa termina, na plaza México soa o toque do clarim, ouve-se um pasodoble, os matadores e as suas quadrilhas aparecem na arena, sai o primeiro touro, toureiam-no com a capa, espicaçam, bandarilham e matam, o senhor horroriza-se com o espectáculo, não suporta ver o que fazem ao touro, e diz aos seus compatriotas, mexicanos selvagens, como é possível torturar-se os animais desta maneira, que país, esta maldita FESTA BRAVA explica o seu atraso, a sua miséria, o seu servilismo, a sua agressividade, não têm qualquer futuro, deviam ser todos fuzilados, o senhor levanta-se, abandona a praça, apanha um táxi, volta ao Museu para contemplar a deusa, para continuar a desenhá-la durante o pouco tempo em que a sala ainda estará aberta...»
[José Emilio Pacheco, O princípio do prazer; em tradução para a colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro]
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