«Toda a espécie de caminhos que levam a parte nenhuma irradiam da minha casa. Não foram abertos. Apareceram simplesmente. Quando aqui cheguei usei, é claro, os caminhos dos animais porque não havia mais nada disponível para além dos caminhos que levam a nenhures, mas cedo tive de concluir que o meu modo de pensar não coincidia com o dos outros seres deste lugar. E procurei, e abri caminho e encontrei.
Encontrei, digo. Aterrador.
O bem mais importante, a água, não tive de a procurar. Há em abundância. É visível e audível. Escavo a ondulação do rio com a concha de ovo de avestruz que me foi oferecida. Levo a concha à límpida curva da água que escorre sobre uma pedra áspera, de modo a apanhar a luz e o som. Tiro com a concha repetidamente, e verto o espírito da água tremeluzente e murmurante dentro do pote de argila que me foi oferecido. Depois ergo devagar o pote cheio, com ambas as mãos, por cima da minha cabeça, dobro os joelhos para apanhar a minha concha, e regresso pelo caminho da água até ao baobá.
Encontrei: toda a espécie de alimentos da estepe; e apercebi-me também que ao arrancar, escavar e colhê-los, eu entrava em competição com os animais, que as árvores não cresciam, floresciam e davam frutos para saciar a minha fome, e que os tubérculos e as raízes não cresciam debaixo da terra para mim, que o ébano verde não gotejava o seu néctar em minha honra, que não era para me refrescar que estendia a sua sombra em lugares estratégicos, que não era para me agradar que as orquídeas salpicadas se exibiam, que não era para mim que a árvore violeta levantava as suas tendas de perfume no início do Verão.
Depois dos javalis terem pastado, uma novata vasculha o pedaço de estepe onde os experientes tinham esquadrinhado, ajoelha-se como eles, tenta perfurar o chão duro com um pau, porque lhe faltavam as presas, tenta usar a visão para procurar, porque não era dotada de um faro apurado para as raízes e bolbos comestíveis, e afasta-se, triste, com um punhado apenas. Depois dos babuínos terem pastado, o mesmo procedimento, excepto que se assegura de que eles estão longe, antes de se aventurar no território deles.
Eu tenho mais receio das caretas do babuíno do que das presas do javali e do porco-espinho. Ele é muito parecido comigo. Tenho receio de me reconhecer na sua cara feia. Sou forçada a recordar a minha posição inferior, aqui onde estou, e do meu pouco conhecimento. Sinto-me vexada por os meus desejos e humores se reflectirem na monstruosidade deles, e sinto que o meu refinamento é ridículo, porque esta vulgar criatura de quatro patas prova-me que é supérfluo. Desprezo-os, à sua força, à sua astúcia, o seu auto-evidente poder neste mundo. Desprezo os babuínos, sem excepção. Estes comilões de bochechas gordas revoltam-me. A sua horrível cópula pública, o rebaixamento das fêmeas ao implorar, a submissão delas às pesadas mãos dos machos e a rouca repreensão, e os olhos muito juntos como se vê nos animais irracionais, e que penso ser também um sinal de cupidez. Conheço-os demasiado bem para meu gosto. Dentro de uma jaula seria bem capaz de me rir deles. Quanto ao que eles sabem sobre mim, nada revelam naqueles olhares de soslaio. Suponho que para eles não passo de um estorvo. Uma estranha, afastada do seu mundo de actividades.»
[Wilma Stockenström, Viagem ao Baobá; trad. Fernando Luís Sampaio, Assírio & Alvim, col. Outros Lugares, Lisboa 2006]
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