23 de outubro de 2013

Nem sempre a lápis (444)

Memória descritiva
Bilha
Sem querer, assisti a um ritual da água.
Estava num café em Barrancos, e num nicho na parede, junto ao balcão, repousavam duas bilhas de barro.
Aparentemente inúteis.
Velhas, encardidas pela sofreguidão das mãos sequiosas que as levaram à boca.
A minha ignorância urbana pretendia-as esquecidas, não lhes concedendo sequer as veleidades do artesanato.
Que turismo se desloca a um café de Barrancos para ver duas bilhas abandonadas num nicho?
À falta de espargos com ovos, saboreava o catalão assado, e foi quando me dei conta que os fregueses iam ao pátio encher as bilhas.
Ponderavam a frescura de cada uma, e levantavam-nas acima da cabeça.
Bebiam como os vizinhos espanhóis, deixando que a água lhes caísse directamente na boca.
Sem que os lábios tocassem o gargalo.
Mal os ouvia, e a discrição com que se saciavam, não me concedia a oportunidade de ouvir barranquenho.
Creio que é por aqui que há tocadores de pedras.
Escolhem-nas entre os seixos do leito calcinado do rio, e interpretam-nas à maneira que a sede os ensinou.
Como só é possível entre povos que conhecem a graça da água.

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