30 de outubro de 2013

Nem sempre a lápis (447)

Memória descritiva
Cal
Não me cega.
Quando a calma esturrica os campos do Baixo, procuro-lhe a frescura do tacto.
O repouso do olhar.
Em criança, aprendi a vê-la ferver na água, e a ouvir reprimendas por deixar que me sujasse a roupa.
Apanhávamos pequenos pedaços de cal nas obras, e aprendíamos a distinguir a viva da cozida.
A luz da cal atraía-me como um insecto.
O sabor também.
Disfarçadamente, passava a língua na parede das casas de férias, em Salgueirais.
Depois seguiu-se a festa alentejana, que ainda hoje me deixa aturdido.
Os meus olhos nunca tinham visto tanto volume numa parede branca, até onde o ar se separa da terra.
Tanta brancura, tanta cal, purificam o olhar e a alma.
Em Évoramonte, um ácido mostrou-me a cal a latejar junto à tijoleira do chão.
Eu sabia que transferia os movimentos da minha respiração para a cal indefesa da parede.
Cheguei mesmo a ouvir a cal caída no chão, bater como uma vaga.
O marulhar de um mar interior.
Depois disso, passei a achar repousante que se cubram os cadáveres com cal.

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