7 de outubro de 2013

Papiro do dia (439)

«A notícia de um visitante iminente desconcertou-me – perdi o fio àquilo em que queria ponderar esta manhã. Ah, pois, o que acontece às pessoas que têm completo poder sobre os outros. Este seria um lugar muito melhor e mais afável se alguém preocupado connosco se desse ao trabalho de olhar em redor, de sentir as coisas, de observar, e de ver as nossas vigilantes com um olhar descomprometido. Mas iniciativas deste tipo são coisa que parece não existir – há uma timidez fundamental no que diz respeito a interferir. Afinal de contas, as filhas e os filhos dos pobre velhos que aqui estão podem pensar, não é da nossa conta, e o pai está a perder o juízo, como podemos acreditar no que diz? É-lhes dito, sem dúvida, pelas assistentes sociais e talvez mesmo pelos médicos, embora estes raramente parem por aqui, que os velhos se tornam “mentais”, palavra que sempre me divertiu por parecer sugerir o oposto do que significa. Dizem-lhes, julgo eu, que os velhos ficam naturalmente deprimidos, e que essa depressão “vem de dentro”, e que a forma de a tratar é com drogas, não com imaginação ou amabilidade. E a maior parte deles são gente simples, terrificada pela atmosfera própria de um hospital ou de um “lar”, pouco à-vontade, incapazes de serem eles próprios. O comportamento de Harriet com eles é conspiratório. Falam em sussurros uns com os outros, e em tons de falsa jovialidade com os pacientes, e o filho ou a filha parte sentindo que fez tudo o que podia ao vir de visita. O resto é com a “instituição”. Não são gente que alguma vez tenha tido a coragem de despoletar uma guerra. A polícia, os patrões que têm, no caso de serem operários, a “empresa”, o “governo”, são tudo poderes aterrorizadores que não podem controlar nem sequer compreender.»
[May Sarton, Prepara-te para a morte e segue-me; trad. Bárbara Smith, Cotovia, Março 1997;
ficheiros]

4 comentários:

Claudia Sousa Dias disse...

cada vez mais.

Cristina Torrão disse...

Impressionante.

fallorca disse...

É um livro lindíssimo; saldado por 1 ou 2€ (cf. blog de A Cotovia)

F disse...

Do despojamento:

"O Homem é a única criatura que vê a sua morte a chegar; e, quando isso acontece, faz com que a sua mente se concentre maravilhosamente. Prepara-se para a morte libertando-se de ligações e objectivos mundanos, voltando-se para o cultivo do seu jardim interior. Tanto Jung como Freud exemplificam esta mudança. Ambos sobreviveram até aos oitenta, e ambos quase abandonaram o interesse pela psicoterapia favorecendo, por sua vez, ideias e teorias acerca da natureza humana. Na velhice, há uma tendência para nos voltarmos para a abstração em vez da empatia; de nos envolvermos menos nos dramas da vida, e de nos concentrarmos mais nos seus padrões." (tradução livre)

Anthony Storr, in Solitude — A Return to the Self



"Nos nossos romances, é a música, de entre todas as artes, que isola o indivíduo da sociedade dos seus contemporâneos, que o torna consciente do quanto é 'separado' e, finalmente, que fornece um significado pessoal à sua vida independentemente das suas obrigações pessoais ou sociais. É a medida de sobrevivência, por excelência, que nunca falha." (tradução livre)

Alex Aronson citado por Anthony Storr, in Solitude — A Return to the Self

https://www.youtube.com/watch?v=kW8wdpfkpM0