30 de março de 2012

«É bom trabalhar nas Obras» (109)

«Essa tarde tinha combinado jantar em casa de Alejandro Zambra, escritor e meu amigo. Quando cheguei, contei-lhe a história e pedi-lhe que me acompanhasse ao apartamento daquela mulher. Não era longe de onde ele vivia e aceitou de bom grado. Quando a mãe de Ximena abriu a porta, vi o quadro na parede maior da sua sala. Tratava-se de uma pintura com um poder de atracção igual ao que pode ter um rosto com muito magnetismo. Pelo menos, foi esse o efeito que teve sobre mim. Era, efectivamente, um retrato da nossa árvore, se é que as árvores pertencem a alguém. Sobre as pedras vulcânicas, as silhuetas de algumas crianças sentadas de frente ou de costas, cujos rostos não se conseguiam ver com nitidez; crianças meditabundas que não brincavam, nem sozinhos nem entre si. Crianças como ela e como eu. A pintura emocionou-me até às lágrimas. De repente, revivi a sensação de desamparo constante daqueles anos, mas, tal como nesse tempo, em que o choro em frente dos outros era a última coisa que me permitia, contive-me. Os comportamentos adquiridos durante a infância acompanham-nos sempre, e embora tenhamos conseguido, à custa de uma grande vontade, mantê-los à margem, agachados num lugar tenebroso da memória, quando menos esperamos atiram-se-nos à cara como gatos enfurecidos. Entretive-me a olhar as outras pinturas que a mãe de Ximena me mostrava e a responder delicadamente às perguntas que me fazia. A conversa não foi longa. Creio que nenhuma das duas estava disposta a abrir a comporta das emoções com medo do caudal que teria caído em cima de cada uma; era mais como o assomar das pontas de dois icebergues em movimento submarino. Embora fosse o meu dia livre, estava em viagem de trabalho, e não queria entrar nessa zona de vulnerabilidade que se impõe cada vez que invoco com palavras todas essas recordações e da qual levo vários dias a sair. Também não desejava magoá-la e pô-la num estado semelhante. Naquela casa, Alejandro e eu tomámos um chá e falámos de literatura, deixámos o meu filho brincar com um tambor marroquino que havia por ali. Fiquei a saber que Paula, a sua outra filha, também tinha voltado para Santiago, que tinha sido mãe como eu e era fã de Manu Chao. Depois, fomos embora. Sem deixar mais rasto do que um chupão esquecido.»
[Guadalupe Nettel, O corpo em que nasci; em tradução para a Teodolito;

1 comentário:

Cristina Torrão disse...

Continua deslumbrante.

Às vezes, também me acontece emocionar-me até às lágrimas, perante uma pintura, ou uma imagem.
Ou uma frase. Ou estes textos de Gaudalupe Nettel.

Há um comentário, ali em baixo, de F.:
"Direi que, quando lemos algo que nos toca, que ressoa em nós, é porque também já era nosso."