4 de março de 2012

«É bom trabalhar nas Obras» (105)

«Uma tarde, enquanto procurava o meu elástico para o cabelo, assomei, quase sem me dar conta, ao espaço que havia entre o chão e o colchão da cama dela. Então, descobri um dos seus melhores esconderijos. Encontrei ali um saco de lichias, completamente estragadas, que tinha trazido para casa três semanas antes, uma caixa de bolachas com velhas fotografias de família e uma embalagem de chocolates belgas que, apesar do seu aspecto ainda saudável, não me atrevi a provar. Outro dos hábitos da avó consistia em anotar num caderno pautado e com capa dura, cada acontecimento do dia-a-dia, por mais insignificante que fosse, e também cada objecto ou alimento que comprava, para ela ou para a casa, sem omitir o peso ou a quantidade. Segundo ela mesma me explicou, fazia assim desde o primeiro dia do seu casamento, em 1935, para que o meu avô nunca pudesse acusá-la de esbanjar o dinheiro. E continuava a fazê-lo agora, onze anos depois da morte do seu marido, por inércia ou por motivos que ninguém conseguiu decifrar. Com ela, aprendi que um obsessivo não é forçosamente alguém com as unhas bem tratadas e um penteado impecável, cuja casa se assemelha a uma montra, mas um ser tenso e quase sempre receoso de que o caos tome o controlo da sua vida e dos seus entes queridos por completo.»
[Guadalupe Nettel, O corpo em que nasci; em tradução para a Teodolito]

4 comentários:

Cristina Torrão disse...

Uma boa caracterização de um obsessivo.
Aliás: evitar obsessões obsessivamente também é ser obsessivo.

fallorca disse...

Sou suspeito, e ainda bem pelo prazer que o livro me está a dar a traduzir, mas esta pequena escreve como uma Senhora;)

Cristina Torrão disse...

E numa linguagem tão simples e transparente :)

F disse...

"mas um ser tenso e quase sempre receoso de que o caos tome o controlo da sua vida e dos seus entes queridos por completo."

Ui, esse maldito caos!