21 de maio de 2012

Papiro do dia (221)

«Vivi, durante toda a minha vida, numa casa a que o destino deu a forma de um H, num cenário de pedra e de sol, cercado por quilómetros e quilómetros de arame farpado, deslizando de quarto em quarto, assombrando os criados – soturna filha-viúva de um pai taciturno. De pôr do Sol a pôr do Sol sentávamo-nos à frente um do outro separados pelo carneiro, as batatas, a abóbora, comida desenxabida cozinhada por mãos desenxabidas. E falávamos um com o outro? Não, era impossível, devíamos ficar frente a frente, em silêncio, a mastigar, de olhos – os olhos pretos dele e os meus olhos pretos que herdei dele – fixos no vácuo. Depois, íamos dormir, sonhar com alegorias de desejos frustrados que, felizmente, não conseguíamos interpretar; e, de manhã, competíamos, com um ascetismo gélido, para ver quem era o primeiro a levantar-se, a acender o lume na lareira fria. Assim era a vida na quinta.»
[J. M. Coetzee, No Coração Desta Terra; trad. Maria João Delgado, cortesia da revista “Sábado”, 3€]

3 comentários:

Anónimo disse...

Um livro que não terminei por muito pouco, e o tanto que li gostei bastante :)
(Entrou na família outro livro mais apetecível e desejado, nao resisti, talvez um dia volte a este)

fallorca disse...

Às vezes, lá calha... ;)

Anónimo disse...

Bem verdade! ;)