«Cresci com os filhos dos criados. Falava como eles antes de aprender a falar assim. Brincava com eles com pedras e paus antes de perceber que podia ter uma casa de bonecas com o pai, a mãe, o filhinho e a filhinha nas suas caminhas e com roupinha arrumada na cómoda, com gavetas que se abriam e fechavam enquanto o Pluto, o cão, e o Félix, o gato, dormitavam à frente das brasas. Andava, com os filhos dos criados, pelo veld à procura de raízes de khamma, alimentava os cordeiros órfãos com leite de vaca, empoleirava-me na cerca para ver as ovelhas serem lavadas e o porco de Natal a ser morto. Sentia o cheiro dos cubículos bafientos onde eles dormiam todos a monte como coelhos, sentava-me aos pés do velho avó cego a vê-lo talhar molas da roupa e a contar as suas histórias de tempos idos quando os homens e os animais transumavam do pasto de Inverno para o pasto de Verão e viviam em conjunto. Foi aos pés de um velho que me deleitei com o mito de um passado em que animais, homens e amos partilhavam uma vida tão inocente quanto as estrelas no céu – e não estou a brincar. […] O meu mundo perdido é um mundo de homens, de noites frias, de fogueiras, de olhos cintilantes e uma longa história de heróis mortos contada numa língua que não desaprendi.»
[J. M. Coetzee, No Coração Desta Terra; trad. Maria João Delgado, cortesia da revista “Sábado”, 3€]
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