4 de setembro de 2011

Nem sempre a lápis (207)

Começou por me pedir o isqueiro, mas quando lhe respondi que sim, que cozinhava, receei que me pedisse a mão. São os riscos da mudança de tempo; do virar de Lua, em Agosto. Depois da noite abafada em que regressei ao pátio vindo de Mortágua, dei com ele cheio de moinantes e casais grudados pelo hábito e coristas bronzeadas à força no Algarve; mas choveu durante a noite e tive de esperar que escampasse depois do pequeno-almoço, para ir ao supermercado. Estendi-lhe o isqueiro e saiu-me o comentário de que estava muito mais magra. Uma pessoa também se cansa de ouvir sempre o mesmo; reparti a atenção com ela, mas afirmou qualquer coisa sobre a silhueta a responder que nunca teve cão. Era o modo como fuma, separei-as quando lhe voltei a estender o isqueiro e lembrei a devolução ao vê-la abrir o saco; tinha lá um. Acontece a todos, eu sei. Somos contemporâneos há mais de trinta anos e creio nunca termos trocado uma palavra, as vezes que nos cruzámos a fumar; com ela e com a do bichon maltês, muito snobes. Em contrapartida, durante uma hora trocámos as mais improváveis impressões sobre Carnaxide; desde cá de cima do mercado, até lá abaixo ao largo da igreja, a rever os estabelecimentos da avenida principal. Disse mal de quase toda a gente; alguns, tive de me esforçar e obrigá-la a seguir outro caminho para os identificar. Técnica analista reformada, nascida ou criada em duas ilhas de Cabo Verde, apreciadora de café e de tabaco, guiou-me pelos guetos da droga e da intimidade do adultério e da homossexualidade no bairro, obviamente masculina, seguida pelos episódios de maduras despeitadas e seduzidas por intérpretes da canção do bandido que as deixaram nas lonas; obviamente. Nem lhe passa pela cabeça que na noite anterior tivessem tido a atenção de partilhar com o «mais-velho» umas bolotas fresquíssimas, acabadinhas de cagar. E eu a ouvir e a enrolar cigarros; ela usa a antecipação dos já feitos. Não chegámos a apresentarmo-nos; fiquei sem saber a sua graça, embora alguma lhe tenha achado. Parva, não é; o resultado da análise apenas difere do microscópio. A sorna tinha vindo do bar de tapas que abriu ao lado e sentou-se à mão de isqueiro. Trocámos impressões sobre a ementa e disse que era caro, tendo o cuidado de salvaguardar que os rapazes até são muito simpáticos, mas dois euros e tal por uma sopa, nem pensar. A sopa, exacto, creme de cenoura com nabiça, sem que o tempo e uma indesmentível vontade de a ouvir me fizessem ir às compras. Numa pausa entre os palitos e a insolvência, pedi a uma das empregadas para ir ao supermercado. E foi então que ela, depois de desancar a minha anterior mulher da limpeza, perguntou: «O senhor sabe cozinhar?» Ao que respondi que sim, sem adiantar pitéus, fazendo questão de esclarecer que só não sei passar a ferro e tenho preguiça de pegar no aspirador. Varro a área de trabalho, às vezes. Ocupa-se disso e de lavar as janelas e fazer a cama de lavado, a são-tomense mãe do puto Dário, ajudante de cozinha na esplanada cosmopolita; brasileiras, uma ucraniana, a Naty e o goês Dinis que, volta e meia, me oferece um chá de especiarias para me quedar no nirvana. Uma aberta interrompeu a conversa e quando voltei do supermercado, ela já se tinha ido embora. Entretanto, entrou um par de ancas tipo escola de samba e perguntei à Simone se não apresentava a amiga. Que era casada; e eu ralado, não fazia a menor intenção de casar com ela. E foi então que a marota, tendo topado o invulgar diálogo e o pedido de socorro para ir ao supermercado, se saiu com esta a levantar as toalhas da chuva: «Faz alergia, né, Djorgi?» Exacto, a contaminação da proximidade. Cumprimentamo-nos com «Todo o dia / ela faz / tudo sempre igual» e servem-me umas bronzeadas, e não torradas, com a manteiga necessária para distrair o colesterol, que classificamos capa de revista; topam-me à légua e eu fico todo contente.

2 comentários:

Claudia Sousa Dias disse...

Portugal não era um país pequeno.

fallorca disse...

Mas é enorme, pantera, enorme :)