«Escrevo lentamente. Esforçando-me por revelar a trama significativa de uma vida num conjunto de factos e de escolhas, tenho a impressão de perder pouco a pouco a figura particular do meu pai. O desenho tende a ocupar todo o quadro, a ideia a correr sozinha. Se, pelo contrário, deixo deslizar as imagens da recordação, vejo-o tal como ele era, o seu riso, o seu andar, conduz-me pela mão à feira e os carrosséis aterrorizam-me, todos os sinais de uma condição partilhada com outros, são-me indiferentes. A cada momento, procuro sair da armadilha do individual.
Naturalmente, nenhuma felicidade em escrever, neste empreendimento em que procuro cingir-me o mais possível às palavras e às frases ouvidas, sublinhando-as por vezes com itálicos. Não para indicar ao leitor um duplo sentido e dar-lhe o prazer de uma cumplicidade, que recuso em todas as formas: nostalgia, patético ou ridículo. Simplesmente porque essas palavras e essas frases definem os limites e a cor do mundo em que viveu o meu pai, no qual vivi também. Aqui nenhuma palavra podia ser tomada por outra.»
[Annie Ernaux, O Lugar; trad. António Moreira e Joel Gomes, Fragmentos, Dezembro 1987]
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