«(Como podia o homem que tem o pão na mesa, o sal para salgar, a carne e o vinho, contar a história de um faminto? como podia o pai, Pedro, ter omitido tanto nas tantas vezes que contou aquela história oriental? terminava confusamente o encontro entre o ancião e o faminto, mas era com essa confusão terapêutica que o pai deveria ter narrado a história que ele mais contou nos seus sermões; o soberano mais poderoso do Universo confessava de fato que acabara de encontrar, à custa de muito procurar, o homem de espírito forte, carácter firme e que, sobretudo, tinha revelado possuir a virtude mais rara de que um ser humano é capaz: a paciência; antes porém que esse elogio fosse proferido, o faminto – com a força surpreendente e descomunal da sua fome. desfechara um murro violento contra o ancião de barbas brancas e formosas, explicando-se diante de sua indignação: “Senhor meu e louro da minha fronte, bem sabes que sou o teu escravo, o teu escravo submisso, o homem que recebeste à tua mesa e a quem banqueteaste com iguarias dignas do maior rei, e a quem por fim mataste a sede com numerosos vinhos velhos. Que queres, senhor, o espírito do vinho subiu-me à cabeça e não posso responder pelo que fiz quando erguia a mão contra o meu benfeitor.»
[Raduan Nassar, Lavoura Arcaica; Relógio D’Água, Outubro 1999;
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