«O polegar na boca e o sono a chegar. O sabor do nosso próprio corpo a envolver-nos, tal e qual como no sono. O nosso próprio corpo não pode fazer-nos mal.
Raiva. A encher de choro uma caverna de medo e ira. O choro flutua no ar como folhas vermelhas, já desprendido de quem chorava mas caindo sobre o seu rosto, provocando mais choro ainda.
Consolação depois do choro. O estômago deixa de andar às voltas. Uma calma doçura, como se fosse mel, espalha-se pelo peito. Só o céu-da-boca permanece seco. As causas inexplicáveis desapareceram misteriosamente.
A incapacidade de recordar pode ser, em si mesma, uma memória. Pode ter-se já vivido com a experiência do inominado: havia certas forças elementares que eram reconhecíveis – o calor, o frio, a dor, a doçura. E também algumas pessoas. Mas não havia verbos nem substantivos. Mesmo a primeira pessoa do singular correspondia mais a uma convicção que se ia desenvolvendo do que a um facto concreto. Devido a esta ausência, não podia haver recordações (consideradas como distintas de outras funções da memória).
Outrora viveu-se no universo sem costura do inominado. O inominado implica que tudo seja contínuo. O sonho de uma língua universal que tudo dissesse em simultâneo talvez provenha da recordação de um tempo em que não havia recordações.»
[John Berger, E os Nossos Rostos, Meu Amor, Fugazes como Fotografias; trad. Helder Moura Pereira, Quasi, Janeiro 2008]
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