«Apesar de tudo, ao andarem às voltas em torno de si mesmos, os deslocados preservam a sua identidade e improvisam um abrigo. Feito de quê? Feito de hábitos, penso eu, feito com a matéria bruta da repetição, assim transformada em abrigo. Os hábitos implicam palavras, piadas, opiniões, gestos, actos e até a maneira como se põe o boné na cabeça. Os objectos físicos e os lugares – uma peça de mobília, uma cama, o canto de uma sala, determinada taberna, a esquina de uma rua – dão enquadramento e cenário ao hábito; mas não são os objectos que protegem, o hábito sim. O betão que sustenta a casa-lar improvisada – até mesmo para uma criança – é a memória. Dentro dela ordenam-se as recordações visíveis e tangíveis – fotografias, troféus, lembranças – mas o tecto e as quatro paredes que constituem a salvaguarda da vida, essas, pertencem ao domínio do não-visível, do intangível, do biográfico.
Para os desfavorecidos, a casa-lar é representada menos pela habitação em si do que por uma prática ou conjunto de práticas. Cada pessoa possui as suas. Tais práticas, verdadeiramente escolhidas e não impostas, oferecem, na sua repetição e apesar do seu carácter efémero, mais permanência e abrigo do que qualquer tecto. A casa-lar já não é habitação mas a história não contada de uma vida que está a ser vivida. No limite, se quisermos ser ainda mais brutais, a casa-lar não representa mais do que o nome que cada um tem – sendo que a maioria das pessoas nem sequer nome tem.»
[John Berger, E os Nossos Rostos, Meu Amor, Fugazes como Fotografias; trad. Helder Moura Pereira, Quasi, Janeiro 2008;
agulha]
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