4 de setembro de 2011

Papiro do dia (123)

«Com o avançar dos anos, os meus ideais – que normalmente nego ter – alteraram-se definitivamente. O meu ideal é ser livre de ideais, livre de princípios, livre de doutrinas e de ideologias. Quero viver no oceano da vida como um peixe vive no mar. Quando era novo, preocupava-me muitíssimo com o estado do mundo, hoje, embora ainda barafuste e delire, contento-me com deplorar o estado das coisas. Pode parecer presunçoso dizê-lo, mas isto significa, na realidade, que me tornei mais humilde, mais consciente quer das minhas limitações quer das das outras pessoas. Já não tento converter ninguém à minha visão das coisas, nem tão pouco curá-las. Nem me sinto superior quando me parecem falhos de inteligência. Podemos combater o mal, mas contra a estupidez somos totalmente impotentes. Penso que a condição ideal para a humanidade seria viver em estado de paz, em amor fraterno, mas devo confessar que não conheço nenhum caminho para o alcançar. Aceitei o facto, por muito difícil que seja, de que os seres humanos tendem a comportar-se de formas que fariam corar os animais. O que é irónico e trágico é comportarmo-nos muitas vezes de forma ignóbil por motivos que julgamos serem os mais elevados. O animal não pede desculpa por matar a sua presa; o animal humano, pelo contrário, consegue invocar a bênção divina quando massacra os seus semelhantes. Esquece-se de que Deus não está do seu lado mas ao seu lado.»
[Henry Miller, Viragem aos Oitenta; trad. Sofia Castro Rodrigues, Fenda Luminosa 4, Fevereiro 1999]

5 comentários:

sonia disse...

Quer queiramos ou não admitir, aos 80 anos (ou menos até) já não conseguimos escrever textos sem parecer algo do tipo "reflexões" ou "auto-ajuda". Não li esse livro, mas mesmo gostando demais de Henry Miller ousaria dizer que o auge dele foi na trilogia Nexus, Plexus, Sexus e no melhor livro dele, a meu ver, O Colosso de Marússia.

fallorca disse...

Olá, Sónia,
realmente a vitalidade de Miller era (é) impressionante. E concordo consigo, «O Colosso de Maroussi» e «O Sorriso aos pés da escada», entre outros, são grandes livros.
Abraço

imo disse...

Não conhecia :) Obrigada!

fallorca disse...

imo,
vou procurar; deve haver mais

imo disse...

Não, deixa estar, obrigada. Devo conseguir encontrá-lo :)