«O pequeno mariola azeri que recolhia os passaportes, detetando em mim o papalvo ocidental ponto a ser depenado, aplicou-me uma taxa de vinte dólares para me atribuir uma cabine liuks. Olia, uma gorducha loura bastante complacente, guiou-me até lá, tropeçando de sono. O estado de sujidade e deterioração em que se encontrava a minha cabine “de luxo” era quase divertido. Nada estava intacto, cadeiras sem espaldar, de estofos rasgados, interruptores arrancados, falta de lâmpadas, fios eléctricos caídos do teto, cabides partidos, chapas quebradas, lavatório cheio de baratas e de manchas acastanhadas, etc. Sob o acrílico inchado que cobria a mesa, cheio de queimaduras de cigarro, um antigo ocupante colocara uma folha onde estava inscrita a tinta vermelha, agora quase sumida, a lista dos sinais de perigo. Uma placa na porta, Vratch, informou-me que se tratava do médico de bordo, na época áurea em que transportavam passageiros regularmente e se preocupavam com a sua saúde. Um tio meu, aquele que quando eu era pequeno me levava à pesca do lúcio, fora médico dos paquetes da Companhia Geral Transatlântica (foi assim que tratou o passageiro Hemingway, que simpatizou com ele ao ponto de o convidar para a pesca ao espadarte ao largo de Cojimar). Lembrava-me do deslizar muito lento e majestoso dos grandes transatlânticos diante de Sainte-Adress, das ondas que a esteira fazia rebentar na praia muito tempo depois da sua passagem, dos rebocadores que manobravam nas bacias do Havre para trazer para o cais esses mastodontes. Assim, era como se estivesse na cabine do meu tio. Enfim, é uma maneira de dizer – a dele, no Île-de-France, no Liberté e mais tarde no France, era muito mais sumptuosa. Uma camada pegajosa de gordura antiga cobria a cama onde me deitei, com um misto de alívio e de repugnância. Muito tempo depois, imaginaria sentir na cabeça o rastejar dos piolhos ou, no baixo-ventre, dos percevejos. É ilógico, mas, no caso de criaturas tão pequenas, não bastará o medo para as engendrar? “Fortis imaginatio generat casum”, dizia Montaigne: uma forte imaginação cria a coisa.»
[Olivier Rolin, Baku, últimos dias; trad. Manuela Torres, Sextante Editora, Dezembro 2011]
6 de maio de 2012
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1 comentário:
Pena que o LeV, em Matosinhos, tenha sido cancelado. Teria gostado de o conhcer lá, como estava previsto.
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