Era muito importante não dizer a ninguém que aquela peça me agradava: a partir do instante em que deixasse ver a minha paixão, contraía o compromisso de mostrar como me comportava com ela e como viria a tocar essa peça depois. Com este compromisso, não só a aventura perdia encanto: também deixava de ser uma aventura exclusivamente minha, era dar aos outros participação nela. Em contrapartida, quando ia para a rua com o escondido propósito de ver o que me ocorria se a encontrava e a estudava, quando recordava que os outros tinham ouvido essa peça no concerto ou no sarau e ela tinha sido um pouco de todos, eu pensava que os outros a teriam esquecido e agora seria exclusivamente minha; então apressava os passos até me doerem as pernas; ia ao seu encontro sem saber onde a encontraria; como se fosse procurar uma mulher adormecida algures num bosque; e embora ela não me conhecesse eu teria o privilégio de poder pegar-lhe e iniciar com ela toda a espécie de simpatias. Embora muitos outros a tivessem tocado e ela os conhecesse a todos, agora não teria outro remédio que permitir-me uma experiência pessoal e nessa experiência ela seria completamente outra e completamente minha. Se apesar daquela peça ter sido ouvida por muitos, a ninguém em Montevideu lhe ocorreria estudá-la – refiro-me a uma peça que tivesse dado a conhecer um concertista de passagem –, então eu teria o privilégio de levá-la para minha casa e fechar-me com ela como se tivesse travado o passo de uma mulher estrangeira. Embora na casa de música houvesse vários exemplares, eu pensava que ela era uma só; ver vários era como que um defeito da visão. Saía com ela nas mãos sem dar tempo que ma embrulhassem. Antes de chegar ao meu piano tinha tropeçado em mil coisas pelo caminho, e tinha olhado e deixado de olhar a peça mil vezes e já sabia de cor o cheiro do papel e da tinta.»
[Felisberto Hernández, Contos Reunidos; em tradução para a Colecção Ovelha Negra, Oficina do Livro]
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