18 de abril de 2010

Nem sempre a lápis (3)

Estava mesmo necessitado de passar os olhos pelo campo, nem eu imaginava quanto; cabeças de gado nos prados do Baixo, viçoso e alagado. Depois do dilúvio da noite passada, aproveitei a alternância do Sol para fazer hoje, terça-feira, o que mais me apetecia no domingo. Como ainda é cedo para ir ao Norte, rumei sem destino prévio até ao Sul, digamos que motivado pela comodidade de transferir o seguro em Lagoa; os quilómetros coavam-se, nos marcos da Nacional. Chama-se Catraia, a carrinha; o nome foi-me sugerido pelo que vejo a boiar nas margens do Samouco, para continuar a faina interrompida pela Margot, homónima do barco de costa com maior calado, assim o deixei (até Jajouka). Ultrapassei duas auto-caravanas, uma alemã e a outra holandesa, futuras vizinhas do condomínio à beira da Costa Vicentina estacionado. Acabei por vir ter ao quarto onde dormi em Outubro, agora com o jantar deduzido no preço do alojamento e a mesma vista para o passeio marítimo que passou a substituir a frente de mar; sem sinal das palmeiras centenárias, nem sinal de vegetação. Secura. Depois de ter escrito, à máquina, que vim cá para me sentar à varanda a confirmar que era «uma memória estragada», só eu me impedia de ver Armação sem ela. Estou num sítio qualquer, acompanhado pela presença do mar e da praia, ansioso por ligar o computador e ir cumprimentar o cigano de Porches; ficar descansado. Fui acumulando notas de cabeça durante a viagem, sem as depositar no bloco as duas vezes que parei, na Mimosa e a seguir a Ourique; a primeira gasolineira estava fora-de-serviço. Ontem adormeci com 2666 em cima do peito. Tenho fisgado um longo período entre parêntesis – acaso ou coincidência com o título póstumo que reúne textos dispersos e de circunstância, de Bolaño – seguido do monólogo sobre ela, a coincidência, proferido aos archimboldianos ortodoxos pelo pintor Edwin Johns. A mulher internou-o num discreto e luxuoso manicómio suíço, depois de ter amputado a mão direita para concluir o seu último auto-retrato. E Gogh nem sequer pediu licença, que lhe dava, para se colar à leitura. Antes, uma passagem sobre modestos escritores convidados para leituras na província, onde montavam uma banquinha para vender os seus produtos, coincidiu com a ideia de tirar uma foto à Catraia; a Cicatriz pendurada numa corda com uma mola e o preço escrito num cartão, feirante. Conduzir sem horário nem destino foi sempre uma das minhas preferidas «atitudes de trabalho»; ganhou consistência sob a forma do escritor moçambicano Agostinho Caramelo, que um dia apareceu em Mortágua ao volante de uma carrinha Citroën AMI 6 – matrícula francesa, em trânsito – vestido com uma camisa de flanela para vender um romance semi-clandestino, suponho e a recordação ajuda, intitulado Fogo. Permanece em lume brando entre os livros que não saíram de casa dos meus pais.

Contraída a virose, é possível que muito em breve me sente ao lado da carrinha com um caixote de livros, os calções, a toalha e um exemplar pendurados numa corda, pelas praias que amanhã tenciono levantar, a partir de Lagos, e chegar a casa sem a sensação de ter vindo ao Algarve, se fizesse o percurso inverso. Não sei se me faço entender.

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