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Também não concordo com a declaração de que o Sr. Whittaker terá sido levado dali em lágrimas. As “pequeninas contas alumiadas” na sua face eram, creio, gotículas de Chablis que uma das senhoras – uma encorpada, de calções vermelhos – lhe tinha lançado à cara. Quando estavam a empurrá-lo para dentro do carro, reparei que o copo de papel amachucado ainda estava alojado na gola do seu casaco. Um símbolo ajustado, creio, a todo o episódio. A lançadora do copo, veio-se a ver, era uma amiga de Eunice Baker, que tinha lido partes do seu livro de poesia nessa tarde. Miss Backer, para as legiões que nunca ouviram falar dela, é co-editora da Notícias da Arte. Foi durante a leitura dela que Whittaker saltou para o palco da primeira vez. Segundo a vossa repórter: “Whittaker roubou o microfone e começou a vociferar contra a poesia da autora [Baker]”. Este não é de modo nenhum o tipo de exactidão que se espera de um jornalista profissional. Como homem de ciência, prezo bastante a exactidão. O que significa vociferar? O que foi dito, precisamente, durante essa particular instância de “vociferação”? Um relato factual seria mais ou menos assim: “O Sr. Whittaker, em voz alta (tinham-lhe desligado o microfone), mas com bastante calma, fez uma breve análise crítica do desempenho de Miss Baker, na qual descreveu a sua apresentação como ‘um mugido de menopausa’ e os seus poemas como sendo ‘traques’ de vaca’”. O vosso repórter diz então que o público “reagiu com vaias constantes”. Embora isto seja em geral correcto, houve pelo menos um par de rapazes, na parte de trás da multidão, que se ria às gargalhadas. As ondas de hilaridade desses dois alegres compadres flutuaram como estandartes sobre o burburinho geral e emprestaram uma tonalidade bastante diferente ao episódio. E este é precisamente o que quis sublinhar na carta anterior: a nossa cidade e o nosso estado precisam de pessoas como Whittaker, pessoas que se recusam a amaciar, e não têm medo de afrontar a “opinião pública” quando crêem que essa opinião está errada. E as pessoas que riem não merecem ter também o seu porta-voz?»
[Sam Savage, O Grito da Preguiça; trad. Fernando Villas-Boas, Planeta, Fevereiro 2010]
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