«Mas a Jolie, turista incansável que ela era, ou parecia ser, não deixou que isso lhe alterasse os planos. Nos primeiros dias, enganado pelos modos dela (o exterior agradável que já mencionei) e pela convicção de que, com toda a certeza, conhecia a Jolie, não suspeitei de nada. Ao chegar a casa ao fim da tarde, palradora que nem uma carriça, ela chutava os sapatos – “absolutamente estoirada” por “palmilhar” Paris inteira – e sentava-se na minha cama, ou no chão do corredor, de costas para a casa de banho, se era lá que eu estava, e falava-me dos sítios onde tinha estado. Como é que eu podia ter adivinhado que ela sacava as descrições do guia de viagens? É certo que, quando me beijava a despedir-se para sair, todas as manhãs, o beijo era na testa, em vez de nos lábios, como antes. Reparei mas achei que estava só a evitar os meus micróbios. Foi o cheiro que finalmente a denunciou. Os meus poderes olfactivos são normalmente bastante ténues – tenho praticamente de enfiar uma rosa pelo nariz para cheirá-la. Talvez a brandura purgante das batatas cozidas e da água de Vichy os tenha apurado. O facto é que o cheiro a traiu. Nessa altura, os hotéis baratos de Paris não tinham banheiras, nem sequer chuveiros – estou a falar do género de hotéis a que um par de amantes poupados pode recorrer por uma tarde – e a Jolie, inocente como era, não fazia ideia do que fazer com um bidé. Uma manhã, estava eu a rastejar debaixo do lençol à procura de umas meias, quando a verdade me foi apresentada.
Para encurtar esta história – de facto não é muito comprida, apenas pareceu durar uma eternidade – acabámos num ménage à trois com o jovem Gustave Lepp, professor numa escola secundária perto do nosso apartamento. (Esta não é a parte divertida.) A Jolie tinha-o conhecido no bistro do pequeno-almoço, no segundo dia da nossa estada em Paris. Era uma dessas pessoas com quem podemos passar um serão e ficar perfeitamente seduzidos, arrebatados pela inteligência e erudição, pelo facto de que parecem inteiramente interessados em nós, para acordarmos na manhã seguinte com a sensação de que fomos enrolados.»
[Sam Savage, O Grito da Preguiça; trad. Fernando Villas-Boas, Planeta, Fevereiro 2010]
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