23 de abril de 2010

À mão de ler (6)

«Enfim, Harold, demorei bastante tempo a contar-te isto tudo – a minha pequena Olivetti está a deitar fumo, e não pouco – e agora pergunto-me para que me incomodo. Sim, tenho pensado sobre a dor, e numa carta anterior falei do modo como os falantes do francês a exprimem. A mente, foi uma coisa que descobri, não passa de uma coisa a seguir à outra, especialmente nos últimos tempos, mas isso não chega para justificar a intimidade do que acabei de te contar. Parece-te impróprio? Acho que é fácil para mim falar contigo porque não me lembro de ti muito bem. É como falar com a mobília, mas com o interesse acrescido de que no teu caso a mobília compreende, ou pelo menos finge que compreende. Desde que me escreveste tenho tentado ver a tua imagem. No princípio, ocorria-me o tipo cheiinho e rubicundo que eu costumava derrotar no pingue-pongue todos os sábados, mas claro que esse que eu conheci não podias ser tu ainda, por isso tenho tentado actualizar a imagem com pedaços de informação que me tens dado nas tuas cartas, e fiquei-me, admito que vagamente, por alguém metido numas jardineiras.

O teu velho amigo,

Andy

[Sam Savage, O Grito da Preguiça; trad. Fernando Villas-Boas, Planeta, Fevereiro 2010]

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