16 de abril de 2010

Nem sempre a lápis (2)

«Acha que tenho boa voz para escrever à máquina?», não é pergunta que se faça a quem congemina a oportunidade de escrever «À beira da Costa Vicentina estacionado», enquanto me atendia. Trauteava uma ária qualquer, pareceu-me a caricatura de uma ária, rematada sempre com «café». Não é louco, nem estava no Outono quando respondeu «Mandei-o lavar», a quem lhe perguntou pelo cabelo. À saída da tua rua, um jipe distraído com os netinhos ou a digestão do almoço em família, marcou parte do lado esquerdo com o pneu. Hesitei entre confirmar a carícia ou seguir em frente com a carripana; «choca» estocada por engano. Primeiro fui ao supermercado levantar dinheiro e comprar líquido para o radiador. Ainda peguei num bloco e passei os olhos pela oferta de lápis para equipar a carrinha; habituá-la à estrada, na minha mão. Como vinha da Moita, achei mais sensato «pegar» a curva onde mandei o Volvo para a sucata, há três semanas; bandarilhas, fitas a sinalizar o rail, nada a sinalizar a boa visibilidade das manchas e detritos na via, seca. Aguardemos serenamente. Por acaso tive pena de não ter a instamatic comigo; cá por coisas. Estrada aberta com o Sol a bater-me em cheio no peito, não me deixei seduzir pela sereia da terra molhada e a brisa do rio. Tenho perdido demasiado tempo com carros; pareceu-me mais acertado vir para casa ou ir confirmar se o Tucha continuava junto da estação da Cruz Quebrada, onde o encontrei com o portão entreaberto a restaurar e a envenenar UMM’s; virtualmente excitado, o João Pedro atendia o MSN na recepção, com os barcos pendurados nos estaleiros. A surpresa com que me recebem corresponderá à surpresa com que os reencontro? A mesma cara com o cabelo mais branco – a contar lérias como se nos tivéssemos visto ontem, há quase dez anos – sem saber por onde pegar num motor que metia dó, fui-lhe dando a atenção necessária a sondar a sucata, para ver se me desenrascava. Expliquei-lhe que é só uma porta que não fecha e mais umas coisitas; o empurrão suficiente para ele desabafar «Há oito anos que não sei o que é um fim-de-semana», encaminhávamo-nos para a carrinha. Até ao fim do mês não aceita mais nenhum carro, ia-me prevenindo à medida que a via com olhos de raio X e foi buscar uma chave de velas. «Telefona-me depois de almoço, lá mais para o meio da semana», despedimo-nos. Posso estar errado, mas saí de lá com a impressão de que não tarda muito vou dormir umas noites dentro dela, à beira da Costa Vicentina estacionado. Utilização que melhor terá conhecido, a avaliar pelos capítulos windsurf grafitados no forro do tejadilho.
Aqui entre nós: «Acha que tenho boa voz para escrever à máquina?»

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