19 de abril de 2010

À mão de ler (3)

«Cheguei por vezes a ter dificuldade em conter a minha raiva quando isto acontecia, se a Jolie não estava em casa, e tinha de ser eu a pôr-me de joelhos e andar à tacada com a vassoura. Por fim, não tive outra escolha senão tirar os ímanes todos. E, para mais eu arquivava tudo. Tudo o que não fosse arquivado numa pasta identificada num dos cinco arquivos (em gavetas que eu mantinha tão oleadas que corriam para dentro e para fora quase sem um sussurro) era arquivado na minha mente, em pequenos separadores espalhados ao longo das paredes do meu crânio. Sabia sempre exactamente, a qualquer hora do dia, onde estava a minha escova de dentes, ou o meu exemplar d’O Trópico de Câncer. Se queria alguma coisa, era só estender a mão e pegar-lhe. Sendo assim, como é possível que eu ande a perder coisas a torto e a direito? Não condiz com o meu carácter. Lembras-te, com certeza, do meu carácter. Tenho uma natureza metódica. Lembras-te de como tinha o quarto da residência da faculdade bem arrumado. Lembras-te de como te obrigava a ficares na cama enquanto eu lavava o chão. Tenho medo que alguma mudança orgânica esteja a decorrer no meu cérebro, devida talvez a uma falta de oxigénio. O cérebro usa vinte por cento da reserva total de oxigénio do corpo. É muito mais do que se possa pensar, considerando tudo o resto que se passa lá dentro, as engrenagens e pistões orgânicos a baterem e a rodarem constantemente, cada pequenina célula a gritar pelo seu pedaço de pão. Sou obrigado a respirar fundo a toda a hora.
Tinha a certeza de ter pousado a caneca de café – a minha primeira do dia – em cima de uma caixa, na sala. Era uma caneca azul-clara, com margaridas. Fumegava. O café estava mesmo por cima da linha do meio, caso contrário ver-se-ia uma marca. Estava ao nível da margarida mais baixa. A caixa em que eu tinha pousado a caneca era a mais alta da segunda pilha de caixas à esquerda das janelas da frente. Era a caixa onde antes tinha guardado duas dúzias de toalhas turcas. Esta informação estava à vista em grandes letras azuis no lado da caixa. Digo isto tudo para mostrar que tenho a imagem exacta do local em que pousei a caneca. Trazia-a na minha mão esquerda. Na minha mão direita segurava quatro pregos galvanizados, e pousei-os também em cima da caixa, mesmo ao pé da caneca. Tilintaram ao bater na loiça. Estou a ver a minha mão enquanto a estendia para pousar a caneca na caixa, o osso do meu pulso a sair do seu esconderijo dentro da manga, os pêlos do meu pulso a espetarem-se, assim que escapam à pressão do tecido. Isso foi imediatamente antes de eu descer à cave à procura de um martelo para pregar as lonas das janelas da frente. O sol estava muito claro. As lonas eram azuis.»
[Sam Savage, O Grito da Preguiça; trad. Fernando Villas-Boas, Planeta, Fevereiro 2010]

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