16 de setembro de 2011

«É bom trabalhar nas Obras» (100)

«No estúdio da produtora de cinema Filmo Centro, foram convocados os voluntários que queriam prestar o seu testemunho como estavam a sofrer a ditadura: mães com filhos desaparecidos, mulheres violadas, adolescentes torturados, operários com os rins moídos à pancada, idosos surdos, desempregados sem lar, estudantes expulsos da universidade, pianistas com os pulsos fracturados, mamilos mordidos por cães, empregados de escritório com o olhar perdido, crianças com fome. Uma mulher de cinquenta anos aproximou-se de Bettini acompanhada por um guitarrista.
- Quero que apresente a minha cueca* no seu programa.
- Uma cueca, vem a calhar – disse o publicitário. – É uma coisa alegre.
- Este jovem é meu filho, Daniel. É guitarrista.
- Olá, Daniel. - É uma cueca dedicada ao meu marido. Detido e desaparecido.
- Com quem a vai dançar?
- Com ele, cavalheiro. Com o meu marido.
Tirou um lenço branco do peito e agitou-o delicadamente entre o indicador e o polegar da mão direita. O rapaz fez os rasgados preliminares e com voz aguda introduziu o primeiro verso: "Minha vida, em tempos fui feliz…"
O facto da mulher reagir aos passos de dança do seu desaparecido, com uma dignidade sem ênfase, tornava a sua dança ainda mais demolidora.
Bettini desculpou-se com uma expressão vaga e foi à casa de banho.
Deixou correr a água na nuca sem se importar que salpicasse a camisa. E esfregou o rosto debaixo do jorro como se quisesse que lhe pulverizasse a palidez.
E foi dessa maneira que também as suas lágrimas se dissolveram no lavatório.
* Abreviatura de zamacueca, dança popular chilena.»
[Antonio Skármeta, Os dias do arco-íris; em breve na Teodolito;
com quem vai dançar?]