10 de setembro de 2011

«É bom trabalhar nas Obras» (97)

«Ao chegar à esquina, levou instintivamente a mão ao nariz para tapar o espirro. Bastou esse segundo para o seu automóvel se enfaixar contra o veículo da frente. Não tinha sido grande coisa, apenas mais uma ferida no velho Fiat, mais um rasgão na sua vida, nada comparável com a amolgadela maior que lhe ia na alma.
Saltou da resignação fatalista para o pânico quando descobriu que o veículo contra o qual se tinha enfaixado, era um furgão de carabineiros. Num lampejo de lucidez, escondeu a fita U-matic com a campanha do "Não" debaixo do assento do condutor e, resignadamente, accionou o manípulo que a abria a janela do lado dele.
As buzinadelas dos condutores, impacientes com este novo engarrafamento, aumentou através da janela aberta. Faziam-lhe ranger os nervos, precisamente neste momento em que necessitava de calma, delicadeza, esperteza. Moderação. Bom ânimo.
Ali estava agora o carabineiro e o seu característico excesso de formalidade a ordenar-lhe com azedume:
- Os seus documentos.
Quando enterrou a mão no bolso, veio junto com a carteira o convite para o acto cultural da embaixada da Argentina. Sentiu que havia ali a possibilidade de um refúgio, um breve estratagema para amortecer a pancada que viria a seguir.
Estendeu-lhe o convite com o escudo transandino. Depois de o olhar sem interesse, o polícia devolveu-lho, indiferente.
- Os seus documentos, senhor.
- Sim, sim, meu tenente – disse Bettini, a procurar na carteira. Enquanto o fazia, como se exibisse um absurdo salvo-conduto, acrescentou –: Fique o senhor a saber que venho de uma recepção na embaixada da Argentina. Perto daqui. A dois quarteirões. Em Vicuña Mackenna. Uma recepção do senhor embaixador. O agente pegou nos documentos protegendo-os da morrinha com a mão esquerda.
- O seu nome é Adrián Bettini?
- Sim, meu tenente. Venho de uma recepção na embaixada da Argentina. A embaixada da irmã República Argentina.
- Desligue o motor e saia.
- Com muito gosto. Não sei como aconteceu este lamentável acidente. O asfalto molhado…
- O asfalto está molhado para todos. Só o senhor é que se estampa.
- Sim, meu oficial. É que eu vinha de uma recepção da embaixada da Argentina…
- Consumiu álcool?
Absurdamente, agora procurou tapar o hálito. Absurdamente também, respondeu:
- Não me parece.
- Vai ter de me acompanhar à esquadra, cavalheiro. O seu colega desviou o trânsito para um lado e indicou a Bettini que estacionasse o automóvel em cima do passeio.
- Vai dentro. Condução sob o efeito de álcool e danos num veículo oficial das Forças Armadas e da Ordem.
Assim que deixou o automóvel à beira de um plátano oriental, Bettini desceu do veículo e, depois de o fechar, quis guardar as chaves no bolso. O carabineiro segurou-lhe o pulso.
- Eu fico com as chaves.
- É que… - É que, o quê?... Acha que os carabineiros lhe vão roubar o seu automóvel?
Não podia dizer que o quê.
Estava ali a campanha do "Não", que dentro de poucos dias ia ser apresentada diante do Chile inteiro. Para sua humilhação. Para seu funeral. O seu apocalipse.
Para quê dizer, nada?
- Venho de uma recepção na embaixada da Argentina…»
[Antonio Skármeta, Os dias do arco-íris; em breve na Teodolito;
esbirro]

2 comentários:

Cristina Torrão disse...

Já lhe sentia a falta ;)

O meu irmão enfaixou-se contra um carro da polícia com 18 anos, tinha acabado de tirar a carta. Claro que não tinha o problema de uma campanha de "Não" e não me consta que o acidente tenha sido causado por um espirro. Mesmo assim, os polícias tentaram imputar-lhe a culpa. Felizmente, sem sucesso.

fallorca disse...

Ainda bem para o teu irmão.
Quanto à falta que sentias, vais ser (espero) consolada