12 de setembro de 2011

«É bom trabalhar nas Obras» (98)

«Sentiu familiaridade com o catálogo dos “detidos”. Um bêbado ao longo do banco de madeira, um estudante a sangrar vítima de uma bastonada, a vendedora ambulante sem licença, o dirigente sindical algemado.
Duas horas sem que nenhum funcionário desse início a qualquer tipo de diligência. De vez em quando, assomava um oficial, lançava uma vista de olhos ao grupo e desaparecia numa divisão traseira. A prisão era sempre assim. A sensação de um tempo infinito, inútil. Uma antessala para o incerto. Esse interlúdio que incha com a desolação. A humilhante espera. Tempo para se imaginar os entes queridos preocupados com a nossa ausência. O agente de serviço a teclar numa velha máquina Remington um relatório que, meses mais tarde, talvez um juiz local viesse a ler.
A última vez que o prenderam, quiseram dar-lhe uma tareia exemplar. Tinha participado num protesto de rua contra o aumento dos transportes, para resgatar uma jovem arrastada para o furgão policial por uns agentes à civil. Sem estar organicamente ligado a esse acto, seguiu o impulso do seu coração, e no interrogatório não soube dar o nome de contactos, nem a direcção dos revoltosos do movimento, simplesmente porque os ignorava.
Às vezes, o seu maldito coração fazia-o agir imprudentemente mais depressa do que a cabeça.
Outras vezes, a língua saía-lhe disparada com as verdades a arder na ponta. Dizia-as, mesmo sabendo que viria a sofrer as consequências. Em todas essas ocasiões tinha sido ele, somente o seu corpo quem estava em jogo. Mas agora tudo podia desembocar numa catástrofe que implicaria muita gente: se as imagens da campanha do “Não” chegassem às mãos do ministro do Interior, não só iria pôr em risco as pessoas que tinham emprestado os seus rostos para cantar e contestar o ditador, como denunciaria o carácter da sua campanha aos seus rivais do "Sim a Pinochet": iria dar-lhes tempo para desenharem um antídoto e criarem uma estratégia que anulasse as improváveis virtudes de comunicação que a sua ingénua obra pudesse ter.
Sentiu-se um traidor por ter bebido álcool na embaixada, sabendo que levava a fita U-Matic no automóvel.
Era compreensível, porque estava nervoso, irritado, inseguro. Ia mostrar pela primeira vez a sua obra-prima aos dirigentes políticos do "Não" e temia o seu veredicto. Tão brutalmente fora de training. Maldita a hora em que tinha sucumbido, contra toda a análise ou lógica, à vaidade de assumir a tentação de… salvar o Chile! Corrigiu esse pensamento patético. O Chile não tinha sido salvo pelos mártires dos movimentos de resistência, nem pelos militares disciplinados, nem pelas centenas de milhares de amantes da liberdade que, aqui e ali, enfrentavam a repressão, e ele, sumo pontífice dos néscios, tinha aceitado dirigir essa campanha que, em vez de o levar à glória, o iria conduzir ao inferno.
Carente de ideias, entregara-se aos delírios do meia-leca: o tal Raúl Alarcón, com a sua Valsa do Não. Agora o seu vídeo desastroso podia cair nas mãos do inimigo.
E o factor azar. Bateu. Mas bateu contra um furgão de carabineiros! Com um bocadinho de má vontade, ao inspeccionarem a sua ficha de detenções e invocando a sua incendiária Valsa do Não no vídeo, os carabineiros podiam entregá-lo aos agentes da secreta, que lhe aplicariam a Lei Anti-terrorista.
A outra clavícula.
Talvez o fémur.
E isto, com sorte.
Vindo da rua, entrou um oficial superior que fez soar as chaves do seu automóvel como castanholas.
- Bettini! – chamou.»
[Antonio Skármeta, Os dias do arco-íris; em breve na Teodolito;
catálogo]

7 comentários:

Cristina Torrão disse...

Obrigada :)

fallorca disse...

Recíproco :)
Já agora, quantos dias/episódios faltam para a conquista de Lisboa?

Cristina Torrão disse...

A seguir ao de hoje, faço uma pausa, os três finais só devem vir em Outubro.

A gente tem de vender o fabrico próprio. E os títulos dão muito jeito nas pesquisas Google ;)

Cristina Torrão disse...

Enganei-me, na quinta-feira ainda vem outro, depois é que faço a pausa...

fallorca disse...

Percebo, mete-se o fim-de-semana e mouros e cruzados vão até ao Bairro Alto confraternizar :)

Cristina Torrão disse...

:)

Isto agora fez-me lembrar a entrevista de Afonso Henriques, protagonizada pelo Herman José. Ele tinha desses laivos geniais. A RTP até acabou por censurar essas entrevistas a personagens históricas...

fallorca disse...

Para mim, foram os momentos do Herman, conduzidos pelo MEC