16 de setembro de 2011

Papiro do dia (129)

«- Não sei ao certo, comandante. Assustar-se-ia se soubesse como o compreendo e como nos defrontamos tão de perto. A sua vida, comandante, seria a única que eu poderia ter vivido, se não me tivesse já decidido pela minha vida, ou melhor, pelas minhas três vidas. Já lhe contei a primeira, em que fiquei com o escritório de advogado do meu irmão. Ora bem, a segunda vida resultou da primeira: ao exercer a profissão de advogado cheguei rapidamente à conclusão de que, desde que se queira, é sempre possível provocar a existência de um passado de culpa em cada ser humano. Todos, sem excepção, podem servir de réus: ricos e pobres, viúvas e órfãos: escolha qualquer pessoa ao acaso, e garanto-lhe que se conseguirá descobrir uma falta que lhe valeria bem dois anos de prisão de acordo com as leis em vigor, mesmo sem aplicar o código penal de forma draconiana. Que a Terra inteira ainda não se tenha tornado num imenso tribunal deve-se ao excesso de trabalho dos juízes e ao facto de não ter ainda aparecido alguém que os acusasse a eles. Está a ver, foi assim que encontrei uma nova vida: queria saber qual era o limite, quantos crimes era possível cometer sem que isso se visse na cara ou atraísse a atenção dos tribunais. Foi assim que, a par da minha vida de advogado, levei uma vida – sim, tenho de confessar –, uma vida de bandido em liberdade. Sob o nome de um conhecido empresário, montei a maior empresa de justiça – chamaria a isso chantagem – que jamais existiu na Alemanha Ocidental. Especializei-me em investigar a vida de pessoas muito conhecidas e aparentemente honradas e em comunicar-lhes os resultados dos meus esforços… acompanhados por uma conta. Não quero deixar de reconhecer que devo o meu êxito ao facto de vivermos hoje na era dos juristas, em que qualquer patrãozinho pede um parecer jurídico sobre as eventuais consequências de dormir com a secretária. Obtive, ainda assim, com a minha segunda vida, um êxito que nunca poderia ter conseguido com a minha vida de advogado. Finalmente, a minha terceira vida, que pude financiar graças à segunda, fez de mim um modesto construtor naval: recordado da morte do meu irmão, especializei-me, no meu estaleiro, na construção de barcos salva-vidas insubmersíveis – para vapores, barcos de pesca, em resumo, para toda a espécie de naufrágios possíveis. O barco onde nos encontrou é, aliás, produzido por mim, um protótipo antigo.»
[Siegfried Lenz, O Barco-Farol; trad. Inês Madeira de Andrade, Fragmentos, Setembro 1987;

4 comentários:

MCS disse...

Bom, lá vai mais uma para a minha lista.

fallorca disse...

Não faço ideia onde poderá encontrar

MCS disse...

Pois... foi o que eu pensei. Mas vou conseguir,não tenho pressa. Demorei dois anos para encontrar "A lição de alemão", mas consegui.
O meu record são cerca de sete anos à procura de um russo (Ribakov, "Os filhos da Rua Arbat"), editado pela extinta Difusão Cultural que consegui bem baratinho e quase novo. O livro não é nenhuma obra-prima, acho que foi uma birra e teimosia da minha parte :-)

fallorca disse...

Eu não procuro muito, para não os afastar. Quando dou por ela, nos sítios e situações mais improváveis, acabo por encontrar o que procurava ou o que ainda não me tinha lembrado de encontrar.
Boa sorte, garimpeiro :)