«No Verão de 1986, acabei de escrever o meu livro The Songlines [O Canto Nómada, também editado pela Quetzal], em condições difíceis. Apanhara, na China, uma doença motivada por um fungo extremamente raro que ataca a medula dos ossos. Sabendo que ia morrer, decidi terminar esse livro quanto antes e pôr a minha vida entre as mãos dos médicos. A minha obra ficaria, assim, concluída.
O último terço do manuscrito era uma banal compilação de situações e de retratos destinados a reforçar a argumentação principal. Preparei tudo isso durante os dias caniculares, enrolado em xailes e tremendo de frio diante do fogão da cozinha. Era uma corrida contra o tempo.
The Songlines começa por uma investigação sobre o labirinto de pistas invisíveis que os Aborígenes australianos denominam "pegadas dos antepassados", ou "caminho da lei". Os Europeus conhecem-nas pelo nome de songlines, "itinerários cantados" ou "pistas dos sonhos".
Os Aborígenes acreditam que o antepassado totémico de cada espécie se cria a si mesmo na lama do seu buraco de água original. Depois, dá um passo e canta o seu nome, que constitui o verso pelo qual começa um canto. Dá um segundo passo, que é uma paráfrase do primeiro verso, e termina o dístico. Parte então para uma longa viagem, passo a passo e cantando o mundo para fazê-lo existir: as rochas, as escarpas, as dunas de areia, as árvores, etc.
Contava empregar este espantoso conceito como um trampolim a partir do qual pudesse explorar a agitação inerente ao homem, essa fundamental incapacidade de ficar no mesmo lugar.
Após o aparecimento de The Songlines recebi numerosas cartas de leitores. O correio da manhã trazia-me, por vezes, tesouros maravilhosos. Assim, por exemplo, uma leitora de Connecticut enviou-me uma fotocópia, tirada da obra de Anne Cameron, Daughters of the Copper Woman, na qual uma velha Nootka explica como os seus antepassados atravessavam os oceanos a bordo de canoas. Os Nootka, os Bela Coola, os Haida e os Kwakiutl, tribos da costa noroeste dos EUA, encontravam-se, tecnicamente, na fase da caça, da pesca e da colheita, mas o mar abundava de salmões e a floresta de animais. A abundância era tal que se tornaram sedentários, construindo grandes casas de madeira e dividindo a sua sociedade em nobres, trabalhadores e escravos.
Eis o texto da navegadora:
"Tudo o que sempre soubemos sobre os movimentos do mar foi conservado nos versos de uma canção. Durante milhares de anos íamos aonde queríamos e voltávamos sem perigo graças ao canto. Nas noites sem nuvens guiávamo-nos pelas estrelas e, em tempo de neblina, pelas correntes e os rios que desaguam em Klin Otto…"
Klin Otto é a corrente marinha que vai da Califórnia às ilhas Aleutas.
"Havia um canto para chegar à China e um outro para chegar ao Japão, um canto para a grande ilha e outro para a pequena. O canto era a única coisa que era preciso aprender para sabermos onde nos encontrávamos. E, para regressar, entoávamos o canto ao contrário…"»
[Bruce Chatwin, O Que Faço Eu Aqui; trad. José Luís Luna, Quetzal Editores, Lisboa 1996]
Sem comentários:
Enviar um comentário