«O espelho tem sido sempre uma surpresa: cada dia uma cara. A diferença apoia-se em que antes cada cara diferente era uma cara dela e, agora, o espelho é cada dia a mesma cara, mas de outra.
A mulher jovem não se diz nada. Cada vez que olha no espelho, emudece interiormente. Não se diz nada porque esses olhos parecem dizer-lhe tudo: ao instrumento interrogador responde um idêntico instrumento.
A mulher jovem recorda o domingo anterior. Recorda os seus passos que se dirigiam, como de costume, à igreja branca. Recorda o caminho limpo e o som do carrilhão. Recorda como sentiu que duas mulheres se aproximaram por detrás dela e como as odiou. Recorda como, de repente, saltou para um lado do caminho e se escondeu atrás dos roseirais, deixando-as passar; como escondeu os livros e ali os deixou; como voltou ao caminho e retrocedeu até à ponte. Recorda como soube chegar à outra margem, onde não vive ninguém e onde só se vai por uma coisa.
A mulher jovem recorda a sabedoria que não se partilha com ninguém, nem sequer com o espelho.»
[Menchu Gutiérrez, A Tábua das Marés; trad. Luís Filipe Sarmento, Teorema / Gabinete de Curiosidades, Junho 2000;
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