29 de abril de 2011

Papiro do dia (62)

«Possuíamos uma reserva de livros que Sylvia Beach me deixara levar para o Inverno e dispúnhamos também da possibilidade de jogar o boliche com a gente da terra, na alameda que dava para o jardim de Verão do hotel. Uma ou duas vezes por semana, jogava-se poker na sala de jantar do hotel, onde então se fechavam todas as janelas e se aferrolhava a porta. É que, nesses tempos, era proibido jogar na Áustria. Eu jogava com Herr Nels, o gerente do hotel, com Herr Lent, da escola de esqui alpino, com um banqueiro da cidade, com o promotor público e com o capitão da Polícia. Jogava-se com rigor. Os meus companheiros eram todos bom jogadores de poker, à excepção de Herr Lent, que jogava sem pensar, preocupado como andava por a escola de esqui não render nada. O capitão da Polícia levava o dedo ao ouvido quando sentia o par de polícias, que andava de ronda, parar do lado de fora da porta, e todos nos mantínhamos calados até que eles se afastavam.

Schruns era um sítio excelente para o trabalho. Sei isso porque foi lá que realizei a tarefa mais dura de correcção da minha vida. Foi no Inverno de 1925 para 1926, época em que tive de transformar num romance o primeiro rascunho de O Sol Também se Levanta, que havia escrito num prazo de seis semanas. Não me lembro dos contos que lá escrevi. Foram vários e, no entanto, todos me saíram bem.

Certo dia de Natal representou-se uma peça de Hans Sachs orientada pelo mestre-escola. Era uma boa peça, e eu escrevi para o jornal da região uma crítica que o gerente do hotel se encarregou de traduzir. Noutro ano, um antigo oficial da marinha alemã veio, com a sua cabeça rapada e coberta de cicatrizes, fazer uma conferência sobre a batalha da Jutlândia. As projecções mostravam os movimentos das duas esquadras, e o oficial de Marinha serviu-se de um ponteiro de bilhar para indicar pormenores quando salientou a covardia de Jellicoe. Por vezes, exaltou-se ao ponto de lhe falhar a voz. O mestre-escola estava com medo que ele enfiasse o ponteiro pela tela dentro. Finalmente, o antigo oficial de marinha não conseguiu dominar a exaltação e toda a gente que estava no Weinstube se sentiu constrangida. Só o promotor público e o capitão de Polícia beberam com ele, e ainda assim numa mesa à parte. Herr Lent, que era natural das margens do Reno, não quis assistir à conferência. Havia um casal de Viena que viera para esquiar, mas ele e ela não queriam ir para a alta montanha; partiram para Zurs, onde, segundo mais tarde soube, morreram numa avalancha. O homem disse que o conferente pertencia ao número daqueles porcos que haviam arruinado a Alemanha e que, daí a vinte anos, o tornariam a fazer. A mulher que o acompanhava aconselhou-o em francês a manter-se calado, acrescentando que aquilo era uma terra pequena e que nunca se sabia o que poderia acontecer.»

[Ernest Hemingway, Paris É Uma Festa; trad. Virgínia Motta, Livros do Brasil, Colecção Dois Mundos, s.d.]

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