«Os objectos da sua infância não estão contaminados pelo desprezo do presente, porque já não são seus, e porque também já não podem sê-lo, estão também a salvo dela.
Ainda que se sente no cavalo e passe os dedos pela secretária, os objectos estão a salvo de sua corruptora possessão e a mulher madura sente-se feliz por vê-los tão longe, tão bem protegidos pela inconsistência da sua memória.
A mulher madura abre as caixas e as arcas numa correria nervosa e de uma delas retira um velho bastidor. No círculo do tecido há meia rosa bordada com um fio vermelho. Uma rosa vermelha interrompida no tempo.
A mulher madura senta-se no chão, com o bastidor entre as mãos, e sente o pulsar do seu coração, regressivo, intimando-a a actuar.
Desce as escadas e dirige-se ao quarto onde está o cestinho da costura. Pega na tesoura, na caixa das agulhas e procura um carrinho de linhas vermelhas. Quando o encontra, sente tal alegria que quer dar as graças, mas a quem?, à igreja branca?
A mulher madura volta a subir as escadas e, quase sem alento, fecha a porta do quarto.
Sentada no chão, por debaixo da janela, e com o bastidor entre as pernas, enfia a agulha com a linha vermelha.
Ao molhar a linha com saliva, sentiu os seus mamilos a endurecerem-se, e, agora, ao espetar a agulha, por debaixo do bastidor, no primeiro ponto – a mulher sente a primeira onda de calor sobre as coxas.
A mulher madura espeta a agulha no tempo e o tecido do bastidor serve-lhe de cortina entre o passado e o presente, entre a vontade e o destino.»
[Menchu Gutiérrez, A Tábua das Marés; trad. Luís Filipe Sarmento, Teorema / Gabinete de Curiosidades, Junho 2000]
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