Há dois lábios de água para cada pedaço de madeira e uma boca de água para cada remo. O céu do paladar dessa boca de água é feito de espuma tranquila e a tranquilidade é o ensino que reparte o prazer, na forma de erecção deslizante.
O homem assiste a este espectáculo da suavidade com a boca seca e chama em seu auxílio a saliva. Apercebe-se de que não governa os remos, que os imita; apercebe-se de que acaricia os punhos, em círculos que se encerram na palma das suas mãos.
Da mesma maneira a água pule a madeira, a madeira é o polimento da água e os olhos aquosos do homem que rema sem remar parecem pérolas nesta cena nacarada.
Durante um longo tempo, o homem não se atreve a abandonar este estado nem a persistir nele.
Agora, a madeira está a ponto de incendiar a água e está a ponto de arder. Levanta o olhar e, do centro da ria, o homem contempla as margens.
Um denso bosque tomou conta da margem esquerda e fechou todas as suas entradas com os persuasivos cadeados das silvas. Coroando um monte inacessível, ergue-se a igreja negra. A agulha da torre do campanário parece cravar-se nas nuvens que chovem sobre a igreja e a fazem brilhar como charão.
A margem direita é um jardim prolongado. O homem segue do barco a linha de cores até chegar ao roseiral, em cujo centro se ergue uma igreja branca.
Olha a igreja branca, na sua margem impudicamente soalhada e estremece quando a torre do campanário desperta com o som do carrilhão, que se expande rapidamente.
O homem dispõe-se a remar até à margem direita quando o único sino da igreja negra começa a repicar. Volta a cabeça para a margem esquerda. Os espinhos das silvas parecem ganhar vida e cravar-se no som, e o som profundo do sino parece trespassá-las. A música da igreja negra concentra-se.
O homem faz por remar para a margem direita, mas a margem esquerda impede-o. O homem vira as costas à margem esquerda quando na realidade quer ir ao seu encontro.
As mãos agarram-se agora aos remos, que começam a golpear a água. Madeira e água repelem-se, chamando-se. Madeira e água deixam de se acariciar e tocam-se.
Começa a levantar-se a ondulação, a água começa a subir a costa e a madeira a baixá-la, começa o outro prazer.
E o homem que olha a marulhada e que é parte dela, o homem que mal escuta agora o débil carrilhão da igreja branca, sente um intenso desejo de se atirar à água, de se despedaçar nela.»
[Menchu Gutiérrez, A Tábua das Marés; trad. Luís Filipe Sarmento, Teorema / Gabinete de Curiosidades, Junho 2000;
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