1 de abril de 2011

«É bom trabalhar nas Obras» (83)

«Não guardei recortes da forma como fui insultado nos jornais e agora lamento-o. A rádio difundiu a notícia, os vespertinos já não a apanharam. Em contrapartida, os diários da manhã escarrapacharam na primeira página e a oito colunas o que a partir de então se passou a chamar “O mistério de Chapultepec”.
Um pasquim já desaparecido atreveu-se a afirmar que Olga tinha relações com os dois toureirinhos. Chapultepec era o cenário dos seus encontros. A criança era a encobridora inocente que, ao tomar conhecimento da verdade, teve de ser eliminada.
Outro jornal defendeu que hipnotizaram Olga e que lhe fizeram crer que tinha visto o que contou. Na realidade, a criança foi vítima de um bando de “ladrões de putos”. (O termo, traduzido à letra de kidnapers, entrou na moda naquela época devido ao grande número de sequestros que se deram no México durante a Segunda Guerra Mundial.) Os bandidos não tardariam a pedir resgate ou a mutilar Rafael para o sujeitarem à mendicidade.
Ainda mais irresponsável, uma certa folha imunda enganou os seus leitores com a hipótese de Rafael ter sido capturado por uma seita que adora deuses pré-hispânicos e pratica sacrifícios humanos em Chapultepec. (Como o senhor sabe, Chapultepec foi o bosque sagrado dos astecas.) Segundo os membros da seita, a gruta escondida neste lugar é um dos umbigos do planeta e a entrada no mundo inferior. Semelhante ideia, parece basear-se num filme de Cantinflas, El signo de la muerte.
Enfim, as pessoas encontraram um escape para a miséria, as tensões da guerra, a escassez, a carestia, os apagões preventivos contra um bombardeamento aéreo que, felizmente, nunca chegou, o descontentamento, a corrupção, a incerteza… E durante algumas semanas, apaixonou-se pelo caso. Depois, foi tudo esquecido para todo o sempre.
Cada um tem a sua maneira de pensar, cada cabeça é um mundo e ninguém chega a acordo em nada. Era um segredo murmurado que, em 1946, don Maximino ambicionava suceder a don Manuel na presidência. Os seus adversários afirmavam que não hesitaria em recorrer ao golpe militar e ao fratricídio. Portanto, de maneira inevitável deu-se uma conotação política a este imbróglio: através de um semanário da oposição, os seus inimigos civis difundiram a calúnia de que don Maximino tinha ordenado o assassinato de Rafael com o objectivo da criança não informar o engenheiro Andrade sobre as relações que o seu protector mantinha com Olga.
O que escreveu esta infâmia acordou morto perto de Topilejo, na estrada de Cuernavaca. Na sua roupa, foi encontrada uma carta de suicida em que o jornalista manifestava o seu remorso, fazia o elogio de Ávila Camacho e desculpava-se perante os Andrade. No entanto, a difamação encontrou um terreno fértil, porque don Maximino, personagem extraordinário, teve sempre uma queda proverbial pelas chamadas “aventuras”. Além disso, a discrição, o profissionalismo, o respeito pela sua dor e pelas suas actuais cãs, impediram-me de dizer diante do senhor que em 1943, Olga era lindíssima, tão bela como as estrelas de Hollywood, mas sem a intervenção da maquilhagem nem do cirurgião plástico.»
[José Emilio Pacheco, O princípio do prazer; em tradução para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro;

4 comentários:

ZMB disse...

Desculpe usar o comentário para uma pergunta de português: o que significa "cãs"?
Eu conheço os Khans da Mongolia mas não recordo haver uma Khan.
Seria assim tão absurdo "cãs" querer dizer "cadela" em algum dialeto espanhol?
Eu de espanhol, niente! não percebo nada.

fallorca disse...

ZMB, o termo tem vindo a cair um pouco em desuso; recorri a ele, em vez de cabelo branco ou grisalho, para situar a época em que foi escrito ou a que este conto se refere.
Já percebi que não conhece (eu também não conhecia até não há muito tempo) o Dicionário Priberam, que deixo linkado com a respectiva palavra: cã

http://www.priberam.pt/DLPO/default.aspx?pal=cã

ZMB disse...

obrigado

fallorca disse...

Disponha sempre; assim eu possa