29 de abril de 2011
Nem sempre a lápis (156)
Papiro do dia (62)
Schruns era um sítio excelente para o trabalho. Sei isso porque foi lá que realizei a tarefa mais dura de correcção da minha vida. Foi no Inverno de 1925 para 1926, época em que tive de transformar num romance o primeiro rascunho de O Sol Também se Levanta, que havia escrito num prazo de seis semanas. Não me lembro dos contos que lá escrevi. Foram vários e, no entanto, todos me saíram bem.
Certo dia de Natal representou-se uma peça de Hans Sachs orientada pelo mestre-escola. Era uma boa peça, e eu escrevi para o jornal da região uma crítica que o gerente do hotel se encarregou de traduzir. Noutro ano, um antigo oficial da marinha alemã veio, com a sua cabeça rapada e coberta de cicatrizes, fazer uma conferência sobre a batalha da Jutlândia. As projecções mostravam os movimentos das duas esquadras, e o oficial de Marinha serviu-se de um ponteiro de bilhar para indicar pormenores quando salientou a covardia de Jellicoe. Por vezes, exaltou-se ao ponto de lhe falhar a voz. O mestre-escola estava com medo que ele enfiasse o ponteiro pela tela dentro. Finalmente, o antigo oficial de marinha não conseguiu dominar a exaltação e toda a gente que estava no Weinstube se sentiu constrangida. Só o promotor público e o capitão de Polícia beberam com ele, e ainda assim numa mesa à parte. Herr Lent, que era natural das margens do Reno, não quis assistir à conferência. Havia um casal de Viena que viera para esquiar, mas ele e ela não queriam ir para a alta montanha; partiram para Zurs, onde, segundo mais tarde soube, morreram numa avalancha. O homem disse que o conferente pertencia ao número daqueles porcos que haviam arruinado a Alemanha e que, daí a vinte anos, o tornariam a fazer. A mulher que o acompanhava aconselhou-o em francês a manter-se calado, acrescentando que aquilo era uma terra pequena e que nunca se sabia o que poderia acontecer.»
[Ernest Hemingway, Paris É Uma Festa; trad. Virgínia Motta, Livros do Brasil, Colecção Dois Mundos, s.d.]
28 de abril de 2011
27 de abril de 2011
Porque a Net fornece um novo dia
"No confundir las moscas con las estrellas; / oh la vieja victrola de los sofistas. / Maten, maten poetas para estudiarlos. / Coman, sigan comiendo bibliografía".
Nem sempre a lápis (155)
Papiro do dia (61)
26 de abril de 2011
25 de abril de 2011
23 de abril de 2011
Às vezes, lá calha...
Nem sempre a lápis (154)
Papiro do dia (60)
21 de abril de 2011
Às vezes, lá calha...
«É bom trabalhar nas Obras» (86)
Papiro do dia (59)
19 de abril de 2011
Porque a Net fornece um novo dia
«caro colega, só agora deparo com o lençol, provavelmente já nem vai ler este comentário. 
Às vezes, lá calha...
 
Nem sempre a lápis (153)
Papiro do dia (58)
«O espelho tem sido sempre uma surpresa: cada dia uma cara. A diferença apoia-se em que antes cada cara diferente era uma cara dela e, agora, o espelho é cada dia a mesma cara, mas de outra. 18 de abril de 2011
17 de abril de 2011
Às vezes, lá calha...
Nem sempre a lápis (152)
Acabou-se a lapiseira Novotel azul, equipada com uma providencial borracha laranja na extremidade, que trouxe da Póvoa de Varzim em 2004. Aproveitei a oportunidade para apagar um pequeno quadro com uma pena e outras simbologias que não recordo, mas comprovava a minha presença dois anos antes. Os tais objectos, rastos curriculares. Em breve me desprenderei de outro, onde se dá conta de que li ao desafio com o Miguel Manso, uma tal 5.ª feira na Trama. Estranhei não atenderem o telefone e fui confirmar no blogue se o número estava actualizado. É possível que esteja, mas desapareceu das formas de contacto com os livreiros. Mandei um e-mail, como se faz neste tipo de circunstâncias, e até hoje, nada. Ora, eu tinha lido o desapontamento de manuel a. domingos pela interrupção no circuito literário por ruas da Capital e, como dois mais dois são quatro, quando vi a porta fechada e perguntei na modista ao lado, teve a amabilidade de informar: Às vezes fecham às segundas, mas hoje ainda não vi ninguém. Reparei que a famigerada cortina de ferro estava subida, no vidro da porta nada constava, e visível na montra, só o abandono. Mudei de passeio e entrei na Galeria Diferença para ver a exposição recomendada pela minha curadora Ana Vidigal (repus aqui o YouTube para uma pequena sessão), mas deparei-me com a porta fechada e a nota «Montagem de exposição, é favor tocar a campainha». Encontrei-me sentado no sofá da Loja de História Natural, à conversa com o Pedro Eiras – estagiário e guarda-nocturno na noite em que a Trama acabou; ponto final –, sobre alojamento para alugar no triângulo compreendido entre o Rato, a Estrela e o Príncipe Real. Admito um desvio para as Avenidas Novas; mas mais, não. Esperei pelo Luis Manuel Gaspar sentado à mesa da primeira esplanada de quem vem do Rato; nunca na outra, tinha bomba de gasolina e tem colunáveis locais. O quiosque de bebidas passou a substituir a árvore e o banco, onde vivi um momento satori, há coisa de 37 anos, confirmado bastante mais tarde por John Berger em Aqui nos vemos. Desde que desci nas Amoreiras e percorri o caminho até esse ancoradouro, fiz os possíveis por desligar e ouvir tudo o que a cidade segreda, vocifera, empurra, apita, ao passeante, ao estorvo à circulação. Não gostei, sejamos francos. Assusta-me a perspectiva de não precisar de ir a Lisboa, de perder o prazer de preparar a deslocação, de autocarro ou de carro, de me perder. Enquanto esperava pelo Luís, ensaiei uma possível atitude de residente e deu-se esta situação deliciosa: fingindo-se alheio, o meu ex-colega de rádio e agora actor, olhava-me pelo canto do olho, que o evitava, indiferente às cotoveladas de quem o reconhecia sem dar por mim, mas eu e ele conhecendo-nos de amarga ginjeira. O Luís chegou e tive na mão os desenhos que fez para Nem sempre a lápis. Conversámos e fez-se tarde. Liguei ao Miguel Martins, mas não estava na Poesia Incompleta, onde o ilustrador ia deixar os desenhos. Melhor assim, enquanto o editor entrega o material à Inês Mateus, a paginadora, tenho pretexto para sábado à noite ir até ao Bartleby e à ZDB. Pedi ao Luis que aceitasse e apresentasse as desculpas da minha caixa torácica por não o acompanhar e cumprimentar o Changuito, e retomei o caminho a pé até ao Marquês, para apanhar o autocarro. Se houver problema de espaço, anula-se um texto escrito a lápis; é preferível um desenho a tinta-da-china.Papiro do dia (57)
15 de abril de 2011
Às vezes, lá calha...
Nem sempre a lápis (151)
Desconheço as comunicações e as conclusões da mesa Os escritores que fogem da fama – a sete pés, suponho, embora não seja de desprezar a versão Os escritores malditos – do tão blogobadalado Festival Literário da Madeira (FLM); votos de insular continuidade. Mas esta, eu li surpreendido e deliciado com a autenticidade do decalque. Só reconheço dois tipos de marginal necessariamente antagónicos; assanhados pela libido (e alívio) das desavenças, das rupturas, da competição. Um, senta-se na margem a contemplar o curso do rio – é um sábio; o outro, estrebucha exausto contra a corrente – é o parvo. O primeiro, conhece os ritmos da água, o espectro da reverberação, os humores do caudal, antecipa a mais imperceptível oscilação. O segundo, obstina-se em desviar o curso que se desvia dele, o evita, compadecido. E lembro-me, inevitavelmente, da resposta de Luiz Pacheco aos jornalistas do Libération quando lhe perguntaram pelos marginais, na semana do 25 de Abril: «Foram todos para a Madeira.»Papiro do dia (56)
«Foi a única fase da minha vida em que tentei escrever um diário. Não, não foi a única. Anos mais tarde, em circunstâncias de isolamento moral, deitei no papel as ideias e factos decorridos ao longo de algumas dezenas de dias. Mas era a primeira vez. Não me lembro como foi que começou, nem como o caderno de apontamentos e o lápis me vieram ter à mão. Não posso imaginar-me a procurá-los com a menor deliberação. Calculo que tenham sido eles a salvar-me daquela atitude dementada de falar sozinho. 13 de abril de 2011
Às vezes, lá calha...
 
«É bom trabalhar nas Obras» (85)
«Jamais esquecerei o dia da invasão. A cidade ficou petrificada num desvario de terror. O primeiro movimento foi correr para as igrejas. Nem sequer houve a ideia de uma resistência organizada. Falou-se que se tentaria travar batalha nos arredores de Tapachula, unicamente para mostrar ao mundo que tínhamos vitalidade, pois a palavra de ordem foi sempre alistar-se na linha Veracruz-Puebla-Acapulco para defender a capital. Papiro do dia (55)
«Um dia descobrira-se que o velho marinheiro sem coração, terrível, curtido pelo vento, rude, salgado pelo mar, com a idade de 65 anos, era, para além de artista, um homem enamorado. Em Haiphong, depois de lá ter atracado no decurso de uma série de peregrinações inúteis (e entretanto o navio quase naufragara por duas vezes), pusera-se de cama e mesa, como dizia Burns, com certa mulher. O imediato não conhecera directamente este enredo amoroso, mas dele existiam provas materiais consistentes numa fotografia tirada em Haiphong. Fora dentro de uma das gavetas do camarote do capitão que Burns a descobrira. 12 de abril de 2011
"Pagam de empurrão", mas pagam...
11 de abril de 2011
Porque a Net fornece um novo dia
 
Às vezes, lá calha...
 
Nem sempre a lápis (150)
Termino o rascunho de O princípio do prazer em simultâneo com A Linha de Sombra. E é precisamente nela que me encontro, uma vez mais. Terminei a tradução contrariado: nem a folga que me proponho para a começar a ler e a trabalhar, nem A Tábua das Marés que aguarda na pilha ao lado da cama, me animam o suficiente. Na sexta-feira, movido por um impulso aproximei-me da mesa onde almoçavam dois funcionários de uma imobiliária, e à noite já tinha a casa leiloada na Net, com fotos e tudo para que não houvessem dúvidas. Não discuto a técnica nem a qualidade; simplesmente, não têm nada a ver com as que tirei para aconchegar anotações no blogue. É muito possível que não acabe aqui o ano; que volte a esperar por Setembro, pelo fim das férias, para regressar a Lisboa. Recorrendo ao justificável argumento da sobrecarga orçamental, decidi pô-la à venda e alugar uma casa em Lisboa; não para comprar outra mais pequena, em Carnaxide. Não é preciso, já cá estou quase há três anos; hoje, decorridos quase trinta e cinco, nem os que passei no Algarve parecem interrupção. Resta-me esperar que a regressão não me conduza ao circuito dos quartos alugados; com serventia de cozinha, a conceder-se ainda o privilégio, a mordomia. Deixo a conclusão aos cuidados da delegação vienense, apaniguados & detractores associados. Vim para aqui viver em Dezembro de 1976; semanas antes, José Henrique Santos Barros e Ivone Chinita abriram a porta para mostrar a casa. Nunca nos tínhamos visto e nunca mais nos voltámos a ver. Conhecíamo-nos dos suplementos dos jornais. Ele dirigia ou coordenava um no jornal açoriano patriarcal e mais reaccionário que se possa imaginar, A União, onde colaboravam David Mestre, Rui Knopfli, entre outros representantes da poética que lavrava o vasto Império, no estertor dos anos 70. Lamento, apenas em termos de rigor, já não ter esses exemplares e a correspondência trocada; o mesmo sucederá aos objectos, aos rastos curriculares que vão aqui ficar com várias gerações de pacíficos fantasmas, senis. Só concebo a mudança como forma de aligeirar, depurar; polimento até o gesto ficar supenso no ar. Esta tarde, quando fechei a porta depois de a abrir a uma interessada, encaixei a estocada; já aqui não vivo, sou a pessoa que mostra a casa. Entre copiar excertos para o blogue e arrumar o livro, dei-me com ele na mão; parado e desnecessário o cuidado: «A vida era para ele um favor… – aquela sua vida precária e penosa… – e ele sentia-se totalmente aterrorizado consigo próprio.» Como há três anos, vou atender interessados e aguardar por Maio para seguir A Tábua das Marés: «A barca desliza pela água com extrema suavidade. De tanto pensar a água, de puro norte, a barca está desorientada.» Papiro do dia (54)
«O que sentia na altura era já um tal turbilhão de impressões que aquela informação vertiginosa parecia não fazer a mais ligeira diferença. Deixei-a cair dentro do caldeirão a ferver do meu cérebro e aí a guardei para comigo, após uma breve, mas expressiva, viagem de despedida com R. O favor dos grandes deste mundo desprende um halo à volta do objecto bafejado pela sua escolha. Por isso aquele excelente R. gostaria de saber se lhe seria possível fazer por mim alguma coisa. Conhecia-me apenas de vista e sabia perfeitamente que não voltaria a pôr-me a vista em cima; eu era, na companhia dos outros marinheiros do porto, um novo motivo de escritas oficiais, campo onde ele preenchia os respectivos modelos com toda a sofisticada superioridade de um homem de caneta e papel em relação aos outros homens que, entretanto, se encontram em luta com a realidade da vida fora dos muros sagrados dos edifícios públicos. Que fantasmas não devíamos nós, homens do mar, ser para ele! Meros símbolos de jogos malabares nos livros e nos registos volumosos, privados de cérebro, de cuidados, de dificuldades; coisas de grande utilidade, mas decididamente de natureza inferior. 9 de abril de 2011
Às vezes, lá calha...
 
Nem sempre a lápis (149)
Hoje não trabalho, vou-me deixar ficar só a curtir e a descansar. É domingo e acordei às duas e tal da tarde. Quando saí de casa, senti-me empurrado pelo desfile de um festival de bandas de música até ao fim da vila. Tomei o pequeno-almoço onde antes ficava o olival e as terras de cultivo ao lado da igreja – naturalmente empoleirada em cima da várzea – e, quase sem dar por isso, desatei a caminhar em direcção ao rio, como se voltasse para casa depois da escola, com um casaquinho de malha cinzento claro e uma indestrutível pasta de couro na mão. Não há canto possível que permita identificar e retomar esse longínquo percurso: a curva e a ponte, fronteiras do meu território infantil, foram substituídas por uma rotunda que engoliu a barroca, onde molhava os pés numa vala que até passava por baixo de casa; a serração de madeira transformou-se num alvo indefeso apedrejado pelo abandono; o marco da estrada, amparei ali pela primeira vez a morte nos meus braços adolescentes e incrédulos, foi actualizado por uma placa que converteu a Estrada Nacional em Rua da Caniveta; a escada, onde uma amiga chateada me despertou com um safanão, que partiu um vaso à mãe que não deixou as filhas virem brincar connosco, agora esconde-se envergonhada atrás da vegetação galopante e vingativa, «benfeita…» Vim ter ao incansável rio onde acabámos por aprender a nadar, depois de engolirmos muitos pirolitos; as mulheres lavavam a roupa que punham a secar nas silveiras carregadas de amoras, mas enxotavam-nos a rir quando lavavam roupa menstruada; esqueci o meu primeiro relógio no pulso de uma videira, para ir nadar; vi pela primeira vez um cão morto, inchado e a ser devorado por uma segunda pele de vermes; vi, também pela primeira vez, um verdilhão rasar a água com um chilreio repenicado e trocista, uma lontra esgueirar-se por entre as raízes submersas dos freixos e salgueiros; rio, onde, há quase cinquenta e nove anos, o meu pai teve de ir a correr apanhar uns peixes minúsculos para a minha mãe «matar os desejos» e eu me decidir a nascer. Transformaram as abandonadas margens do rio numa agradável praia fluvial, com percursos por entre a relva e mesas com bancos de pedra à sombra dos abetos e freixos, sentado a escrever, de frente para o Sol e de costas para a ponte do comboio e o Cabeço do Senhor do Mundo, enquanto vejo a minha mãe cada vez mais encantada com a corte que o doutor Alzheimer lhe fez. Há dias, encontrei a melhor amiga da minha infância e adolescência; não a via há mais de vinte anos. Fez-me uma surpresa: abriu os cordões à bolsa e, num passe maroto, mostrou-me uma foto de grupo do colégio, talvez tirada em mil e novecentos e sessenta e cinco ou sessenta e seis. E, à medida que me ajudava a identificar este ou aquele rosto, ia-me contando como a morte prematura, a natural separação e a previsível fuga, foram estilhaçando a foto amarelecida que segurávamos comovidos com o reencontro, donde sabemos que também já nos ausentámos.Papiro do dia (53)
«Mas aquilo de que eu realmente precisava era de ficar sozinho por uns momentos. Assim, peguei na oportunidade que ele me oferecia, a toda a pressa. O meu quarto constituía um tranquilo refúgio numa ala evidentemente desabitada do edifício. Como não tinha absolutamente nada que fazer (já que não chegara a desfazer as malas), sentei-me na cama e entreguei-me às influências do momento. Inesperadas influências… 8 de abril de 2011
7 de abril de 2011
Às vezes, lá calha...
 
«É bom trabalhar nas Obras» (84)
Papiro do dia (52)
«No Verão de 1986, acabei de escrever o meu livro The Songlines [O Canto Nómada, também editado pela Quetzal], em condições difíceis. Apanhara, na China, uma doença motivada por um fungo extremamente raro que ataca a medula dos ossos. Sabendo que ia morrer, decidi terminar esse livro quanto antes e pôr a minha vida entre as mãos dos médicos. A minha obra ficaria, assim, concluída.


















