23 de abril de 2011

Papiro do dia (60)

«O homem maduro senta-se à mesa, perto do fogo, e começa a escrever a carta.
O homem maduro não procura a inspiração no papel em branco e olha, concentrado, as chamas intermitentes de um fogo recém-nascido do qual parece esperar palavras.
As palavras esperadas não chegam e no seu lugar o homem maduro vê-se acossado por uma multidão de imagens que se projectam como sombras do seu passado na parede da lareira.
O homem maduro vê a mãe na parede da lareira, afastando-se dele cada vez que a sua imagem de menino estende os braços para ela.
A mulher idosa é mais jovem na fuligem e move-se como se estivesse a brincar às escondidas. Mas o homem maduro sabe que não brinca, que não sabe brincar.
Quando o homem maduro quer escrever a sua culpa à mulher madura, a culpa dilui-se num passado tão denso como o bosque, no qual tenta recordar palavras e o odor que as pronunciava.
Por um momento, o homem maduro duvida do rancor que sente sobre si mesmo, projectando-se no fogo, alimentando-o. Depois, incapaz de encontrar essas palavras que o salvariam, o homem maduro inventa sobre o papel uma verdade da qual perde, rapidamente o rasto.
O homem maduro amachuca o papel entre as mãos e atira-o ao fogo.
No outro lado da ponte de fumo, o homem jovem escreve a confissão do seu crime.
O que o homem jovem faz é retratar a decoração, enumerar com extremo cuidado os detalhes, decompô-los habilmente em poderosas sequências geométricas, visualizar todos os seus átomos.
O homem jovem tenta envergonhar-se do seu crime, registando-o, quando o que faz, na realidade, é analisá-lo para aperfeiçoar o seguinte.
O homem jovem entrega o seu novo projecto ao fogo e este digere-o em forma de fumo.»
[Menchu Gutiérrez, A Tábua das Marés; trad. Luís Filipe Sarmento, Teorema / Gabinete de Curiosidades, Junho 2000;

2 comentários:

Cristina Torrão disse...

Gostei.

fallorca disse...

Se tiver oportunidade, não perca :)