30 de maio de 2012

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

(Alfredo Bryce Echenique)


Às vezes, lá calha...

«A minha vida não é passado, a minha arte não pode ser a arte da memória. O que me vai acontecer ainda não aconteceu. Sou um ponto cego que se lança, de olhos bem abertos, na goela escancarada do futuro.»
(J. M. Coetzee)

Nem sempre a lápis (284)




6. A casa de ninguém é o arquétipo da chegada do Turismo às praias familiares. (Ver caderneta predial.) É a primeira porta de um prédio com quatro andares, direito e esquerdo, no começo de uma rua que traçaram desafogada até à Escola Primária e termina, hesitante, num largo com diferentes sentidos.
A casa de ninguém fica no segundo andar, acima de quatro lanços e meio de escada suave, tendo em conta os degraus que a separam da entrada; a recepção muda. É composta por um hall, cozinha e casa de banho, um quarto de casal e outro com duas camas e um divã desdobrável, uma sala, uma varanda comum às duas anteriores divisões, a sala e o segundo quarto, implacavelmente voltadas a Norte. O chão é de parquet, as portas e as cercaduras e os rodapés envernizados, as janelas e portadas de madeira pintadas de branco. As paredes conservam uma aguada de verde mal diluído; realçam a ocupação africana que se pretende esquecida e colonizada pelo abandono dos herdeiros.
Não sendo dele (e porque não é sua) o cavalheiro elabora vários projectos para a reabilitação da casa de ninguém. É um arquitecto sentado num sofá. Hoje, derruba a parede e liga a sala ao quarto, substitui as duas portas por outras de correr, envidraçadas; amanhã, trata da cozinha e da dispensa e da varanda para o logradouro; ontem, ocupou-se com a casa de banho e o chão.
Só uma dúvida se mantém insolucionável: onde colocar a mesa de trabalho no novo espaço e, a havê-lo, como pendurar a sacola com livros nas maçanetas das portas de correr sem a sensação de se ter trancado por dentro.

Papiro do dia (224)

«É difícil acreditar nisto. Se tiver irmãos, não podem estar na cidade, devem ter sido todos arrasados pela grande epidemia da meningite; não acredito que as relações fraternais não me tivessem deixado marcas e não há dúvida que não há sequer o mais leve vestígio. Em contrapartida, a única marca que me foi deixada resulta das minhas relações com o deserto, a solidão, o nada. Também não acredito que alguma vez me tenham contado a história de Noé, sentada, num círculo, com outras crianças. A minha aprendizagem tem em si o cheiro da tinta de impressora e não a ressonância de uma voz humana contando histórias. Mas talvez a nossa professora não fosse uma boa professora, talvez passasse os dias sentada à secretária, apática, batendo com a cana na mão, a ruminar insultos, a pensar no dia em que iria dali para fora, enquanto os alunos liam, penosamente, o livro de leitura, numa atmosfera em que nem sequer se ouvia uma mosca. De outra maneira, como é que se explica que eu tenha aprendido a ler, para já não falar em escrever?»
[J. M. Coetzee, No Coração Desta Terra; trad. Maria João Delgado, cortesia da revista “Sábado”, 3€]

29 de maio de 2012

(com vídeo)

28 de maio de 2012

27 de maio de 2012

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«O arrebatamento do desejo, no domínio das palavras, leva à mania da enumeração. Debato-me com os provérbios do Inferno.»
(J. M. Coetzee)

Nem sempre a lápis (283)




5. O cavalheiro consultava as suas considerações e apanhava o voo das gaivotas, previamente anunciado pelos grasnidos. Levantava-se e percorria os diferentes acessos à praia com os cães, sugeridos pela comunicação das trelas. Só duas etapas se conservavam inalteráveis: a vista desafogada da Fortaleza e o regresso pausado pela rampa do Casino, de visita aos nomes.
Percorrida a imprevisível centena de metros – não só pela maré e pela época do ano – o cavalheiro chamava os cães pelo sexo e punha-lhes as trelas e ficava atrelado pelo pulso.
Subia as escadas pausadamente, disfarçava o cansaço, volteava a aproximação ao carro e tirava as trelas aos cães pelo sexo, abria a porta e eles pulavam, ligava a ignição e arrancava, contornava a rotunda na totalidade possível das regras de trânsito e era a certeza do fim da manhã na Europa; onde o cavalheiro ouviu dizer que choveu, essa tarde.

Papiro do dia (223)

«Hendrik deseja constituir família, uma família humilde, só sua, paralela à família do meu avô e do meu pai, para apenas falar destes. Hendrik gostava de ter uma casa cheia de filhos e filhas. Foi por isso que se casou. O segundo filho, pensa ele, o obediente, ficará lá, aprenderá o trabalho de lavoura, será o seu braço direito, casará com uma boa rapariga e dará continuidade à família. As filhas, pensa ele, trabalharão na cozinha da fazenda. Aos sábados à noite, serão cortejadas por rapazes de herdades vizinhas que virão de muito longe, pelo veld fora nas suas bicicletas, de guitarras a tiracolo, e farão filhos fora do casamento. O primeiro filho, o mais resmungão, o que nunca diz sim, sairá de casa para ir procurar trabalho nos caminhos-de-ferro, será esfaqueado numa briga, morrerá sozinho e deixará a mãe de coração desfeito. Quanto aos outros filhos, os mais apagados, talvez também partam em busca de trabalho e nunca mais se saberá deles ou então morrerão durante a infância juntamente com algumas das filhas e assim, embora a família se ramifique, não se ramificará muito. São estas as ambições de Hendrik.»
[J. M. Coetzee, No Coração Desta Terra; trad. Maria João Delgado, cortesia da revista “Sábado”, 3€;
stand by me]

26 de maio de 2012

encomendado aqui,
vindo daqui

25 de maio de 2012

Ordinarices




24 de maio de 2012

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Já não preciso de me atormentar a pensar como vou preencher os meus dias. Infringi um mandamento e, como se sabe, os culpados nunca se aborrecem.»
(J. M. Coetzee)

Nem sempre a lápis (282)




4. Chegados a este ponto do relato, é crucial revelar um pormenor: o cavalheiro acreditou no erro mais crasso que se possa imaginar. Acreditou na vida e, como se não bastasse, viveu-a.

Papiro do dia (222)

«Cresci com os filhos dos criados. Falava como eles antes de aprender a falar assim. Brincava com eles com pedras e paus antes de perceber que podia ter uma casa de bonecas com o pai, a mãe, o filhinho e a filhinha nas suas caminhas e com roupinha arrumada na cómoda, com gavetas que se abriam e fechavam enquanto o Pluto, o cão, e o Félix, o gato, dormitavam à frente das brasas. Andava, com os filhos dos criados, pelo veld à procura de raízes de khamma, alimentava os cordeiros órfãos com leite de vaca, empoleirava-me na cerca para ver as ovelhas serem lavadas e o porco de Natal a ser morto. Sentia o cheiro dos cubículos bafientos onde eles dormiam todos a monte como coelhos, sentava-me aos pés do velho avó cego a vê-lo talhar molas da roupa e a contar as suas histórias de tempos idos quando os homens e os animais transumavam do pasto de Inverno para o pasto de Verão e viviam em conjunto. Foi aos pés de um velho que me deleitei com o mito de um passado em que animais, homens e amos partilhavam uma vida tão inocente quanto as estrelas no céu – e não estou a brincar. […] O meu mundo perdido é um mundo de homens, de noites frias, de fogueiras, de olhos cintilantes e uma longa história de heróis mortos contada numa língua que não desaprendi.»
[J. M. Coetzee, No Coração Desta Terra; trad. Maria João Delgado, cortesia da revista “Sábado”, 3€]

22 de maio de 2012

21 de maio de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Explicar é perdoar, ser explicado é ser perdoado, mas – espero e ao mesmo tempo temo – eu sou inexplicável, imperdoável.»
(J. M. Coetzee)

Nem sempre a lápis (281)




3. A esplanada ficava a dois passos da casa de ninguém. Depois da seriedade dos Correios, seguindo por um passeio; depois de estabelecimentos diferenciados por gaiolas com canários e pintassilgos à porta, seguindo pelo passeio oposto. Comum aos dois, uma rotunda e uma ilha ecológica, superlotada. O recanto da esplanada fazia parte do loteamento e urbanização que foi empurrando a casa de ninguém para a praia, assoreando-a com uma via com quatro faixas de rodagem a ligar um arquipélago de rotundas. A recta rural entre vinhas – interceptada por uma curva de noventa graus (à má fila) que o cavalheiro conheceu na juventude – tinha-se afastado mais do dobro da distância da casa de ninguém até às escadas mais próximas da frente de mar.
Bem vistas as coisas do patamar, era a responsável pela identificação dos comércios: Doce Mar, Mar à Vista, Mar da Palha, entre outros que não ocorriam ao cavalheiro por dá cá aquela palha; digamos assim.

Papiro do dia (221)

«Vivi, durante toda a minha vida, numa casa a que o destino deu a forma de um H, num cenário de pedra e de sol, cercado por quilómetros e quilómetros de arame farpado, deslizando de quarto em quarto, assombrando os criados – soturna filha-viúva de um pai taciturno. De pôr do Sol a pôr do Sol sentávamo-nos à frente um do outro separados pelo carneiro, as batatas, a abóbora, comida desenxabida cozinhada por mãos desenxabidas. E falávamos um com o outro? Não, era impossível, devíamos ficar frente a frente, em silêncio, a mastigar, de olhos – os olhos pretos dele e os meus olhos pretos que herdei dele – fixos no vácuo. Depois, íamos dormir, sonhar com alegorias de desejos frustrados que, felizmente, não conseguíamos interpretar; e, de manhã, competíamos, com um ascetismo gélido, para ver quem era o primeiro a levantar-se, a acender o lume na lareira fria. Assim era a vida na quinta.»
[J. M. Coetzee, No Coração Desta Terra; trad. Maria João Delgado, cortesia da revista “Sábado”, 3€]

19 de maio de 2012

18 de maio de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

NIKIAS SKAPINAKIS (continuando) 2012.
Uma primeira projecção no Dia Internacional dos Museus,
amanhã, às 15h30, no Auditório Museu Berardo

Às vezes, lá calha...

«Às vezes penso que a finalidade da vida é reconciliar-nos com a sua eventual perda esgotando-nos, e provando, por muito tempo que leve, que a vida não é tão boa como se diz.»
(Julian Barnes)

Nem sempre a lápis (280)




2. Esta noite choveu e na lota, no mercado, na drogaria, na padaria, e também na farmácia, era voz corrente que o cavalheiro habitava a casa de ninguém que alguém lhe emprestara. Certezas, só a de que tomava o pequeno-almoço sempre na mesma esplanada, substituindo a saudação matinal pela afirmação, convicta, de que era o melhor pequeno-almoço dali e arredores.
«Da Europa», retribuía o empregado; resumindo, numa palavra, o nome do estabelecimento.
O cavalheiro recolhia o troco, recebido com o galão e a torrada, dava os bicos duros do papo-seco aos cães para roerem e demorava a laboriosa degustação, alheado. O currículo insistia em pedir-lhe um cigarrinho, no final.

Papiro do dia (220)

«Aproximamo-nos do fim da vida – não, não da vida em si, mas de uma outra coisa: o fim de qualquer probabilidade de mudança nessa vida. É-nos consentido um longo momento de pausa, tempo para perguntar: que mais fiz mal? Pensei num bando de miúdos em Trafalgar Square. Pensei numa rapariga a dançar, uma vez na vida. Pensei no que já não podia saber nem compreender, em tudo o que não podia nunca ser sabido nem compreendido. Pensei na definição de história dada por Adrian. Pensei no filho dele a encostar a cara a uma prateleira de papel higiénico acolchoado, para me evitar. Pensei numa mulher a estrelar ovos de maneira desenvolta e descuidada, calma quando um deles rebentou na frigideira; e a mesma mulher, mais tarde, a fazer um gesto secreto, horizontal, sob uma árvore iluminada pelo sol. E pensei na crista duma onda, água iluminada pela lua, a despenhar-se e a fugir rio acima, perseguida por um bando de estudantes a latir, com os focos das lanternas que se cruzavam no escuro.
Há acumulação. Há responsabilidade. E, para além delas, há agitação. Há uma grande agitação.»
[Julian Barnes, O Sentido do Fim; trad. Helena Cardoso, Quetzal 2011;
a ordem das coisas]

17 de maio de 2012

Desgraçados!

15 de maio de 2012

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...




«Parece-me que pode ser esta uma das diferenças entre a juventude e a idade: quando somos jovens, inventamos futuros diferentes para nós; quando somos velhos, inventamos passados diferentes para os outros.»
(Julian Barnes)

Nem sempre a lápis (279)

A casa de ninguém


1. O cavalheiro recuou dois passos para voltar a ver-se no reflexo da vitrina. Ajeitou ligeiramente a cabeça, satisfeito. Sentia-se favorecido por aquela posição. Nunca de perfil; sempre de viés, apenas visível a arcada da sobrancelha esquerda. Habituou-se a ver-se assim, captado nas fotos que se seguiram à infância. A partir daí, só concedia o lado direito para memória futura. Guardava, oculto, o outro lado do rosto. E a música assomava-lhe aos lábios, irrevogável.

Papiro do dia (219)

«Quando somos novos, toda a gente com mais de trinta anos parece de meia-idade, toda a gente com mais de cinquenta é antiga. E o tempo, à medida que passa, confirma que não estávamos assim tão enganados. Esses pequenos diferenciais etários, tão cruciais e flagrantes quando somos mais novos, desfazem-se. Acabamos por pertencer todos à mesma categoria, a dos não jovens. Nunca me importei muito com isso.
Mas há excepções à regra. Para algumas pessoas, os diferenciais de tempo irrefutáveis na juventude nunca desaparecem realmente: o idoso permanece idoso, mesmo quando são os dois velhotes e se babam. Para algumas pessoas um intervalo de, digamos, cinco meses significa que, perversamente, se verão sempre como mais sábios e mais bem informados do que o outro, por mais que o contrário seja evidente. Ou talvez porque o contrário é evidente. Porque é perfeitamente claro para qualquer observador imparcial que o equilíbrio se deslocou para a pessoa ligeiramente mais nova, a outra mantém a pretensão de superioridade ainda com mais rigor. Ainda mais neuroticamente.»
[Julian Barnes, O Sentido do Fim; trad. Helena Cardoso, Quetzal 2011;
porque]

13 de maio de 2012

12 de maio de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...




«Descobrir por exemplo que, à medida que os espectadores da nossa vida diminuem, há menos confirmação e por isso menos certeza do que somos e do que fomos.»
(Julian Barnes)

Nem sempre a lápis (278)

Creio ter ouvido pela primeira vez os sinos e chocalhos comprados numa feira de Castro, pendurados no barrote do telheiro; entre o jasmim e a glicínia. A ideia surgiu terminadas as obras, pedida emprestada à memória – à ideia lida que fazia – de mosteiros e retiros e cabanas zen. Mas não só. Comprados numa feira anual, também de gado e de arreios, ouvi o leve tilintar dias depois de ter passado o rebanho; compreendi a coexistência.

Papiro do dia (218)

«Para o fim da tarde tirámos fotografias; ela pediu “uma com os teus amigos”. Educadamente, eles fizeram fila mas ela reordenou-os: Adrian e Colin, os dois mais altos, um de cada lado, e Alex ao lado de Colin. A imagem que daí resultou fazia-a parecer ainda mais pequena do que era em carne e osso. Muitos anos depois, quando voltei a examinar a foto à procura de respostas, fiquei a pensar no facto de ela nunca usar saltos nenhuns. Lera algures que, se queremos fazer com que as pessoas dêem atenção ao que dizemos, não levantamos a voz, baixamo-la: é isso o que de facto prende a atenção. Talvez o truque dela com a altura fosse semelhante.»
[Julian Barnes, O Sentido do Fim; trad. Helena Cardoso, Quetzal 2011;
uma com os meus amigos]

11 de maio de 2012

10 de maio de 2012

À luz do sapal

9 de maio de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Mas não estavam nos anos sessenta? Sim, mas só para algumas pessoas e só nalgumas partes do país.»
(Julian Barnes)

Nem sempre a lápis (277)

Julian Barnes é três anos mais velho do que eu. Ele é de Leicester e eu sou beirão. Nesse tempo, em O Sentido do Fim, essa diferença era importante. Leio uma página ao acaso e fecho os olhos a ver episódios de Amarcord; e está lá tudo.

Papiro do dia (217)

«É melhor eu explicar o que significava então o conceito de “andar” com alguém, já que o tempo o alterou. Falei recentemente com uma amiga, cuja filha chegara ao pé dela num estado de aflição. Estava no segundo trimestre da universidade e tinha dormido com um rapaz que andava – abertamente e com conhecimento dela – a dormir com várias outras raparigas ao mesmo tempo. O que ele fazia era uma audição a todas, antes de decidir com qual viria a “andar”. A filha estava perturbada não tanto pelo sistema – embora em parte se apercebesse da sua injustiça – mas pelo facto de, no fim, não ter sido escolhida.
Instalei-me numa rotina aprazível de trabalho, tempos livres com Veronica e, de volta ao meu quarto de estudante, masturbação explosiva com fantasias dela deitada por baixo ou em arco sobre mim. A intimidade diária fazia-me sentir orgulhoso de perceber de maquilhagem, práticas de vestuário, depilação feminina e o mistério e consequências da menstruação da mulher. Dei por mim a invejar esse aviso regular de uma coisa tão totalmente feminina e definidora, tão ligada ao grande ciclo da natureza. Posso tê-lo expressado assim, mal, quando tentei explicar o sentimento.
“Estás só a romancear aquilo que não tens. A sua única finalidade é dizer-me que não estou grávida.”
Dada a nossa relação, aquilo pareceu-me atrevido.
“Bem, espero que não estejamos a viver em Nazaré.”
Seguiu-se uma daquelas pausas em que os casais concordam tacitamente em não discutir um assunto. E o que havia para discutir? Só talvez os termos não escritos do acordo.»
[Julian Barnes, O Sentido do Fim; trad. Helena Cardoso, Quetzal 2011]

7 de maio de 2012

6 de maio de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Um escritor só pode viver no esquecimento daquilo que escreveu e na ignorância daquilo que talvez não tenha nem o tempo nem a força de escrever.»

Nem sempre a lápis (276)

A idade – suponho que é da idade – tem aspectos muito interessantes: posso andar por casa sem saber quando chego.

Papiro do dia (214)

«O pequeno mariola azeri que recolhia os passaportes, detetando em mim o papalvo ocidental ponto a ser depenado, aplicou-me uma taxa de vinte dólares para me atribuir uma cabine liuks. Olia, uma gorducha loura bastante complacente, guiou-me até lá, tropeçando de sono. O estado de sujidade e deterioração em que se encontrava a minha cabine “de luxo” era quase divertido. Nada estava intacto, cadeiras sem espaldar, de estofos rasgados, interruptores arrancados, falta de lâmpadas, fios eléctricos caídos do teto, cabides partidos, chapas quebradas, lavatório cheio de baratas e de manchas acastanhadas, etc. Sob o acrílico inchado que cobria a mesa, cheio de queimaduras de cigarro, um antigo ocupante colocara uma folha onde estava inscrita a tinta vermelha, agora quase sumida, a lista dos sinais de perigo. Uma placa na porta, Vratch, informou-me que se tratava do médico de bordo, na época áurea em que transportavam passageiros regularmente e se preocupavam com a sua saúde. Um tio meu, aquele que quando eu era pequeno me levava à pesca do lúcio, fora médico dos paquetes da Companhia Geral Transatlântica (foi assim que tratou o passageiro Hemingway, que simpatizou com ele ao ponto de o convidar para a pesca ao espadarte ao largo de Cojimar). Lembrava-me do deslizar muito lento e majestoso dos grandes transatlânticos diante de Sainte-Adress, das ondas que a esteira fazia rebentar na praia muito tempo depois da sua passagem, dos rebocadores que manobravam nas bacias do Havre para trazer para o cais esses mastodontes. Assim, era como se estivesse na cabine do meu tio. Enfim, é uma maneira de dizer – a dele, no Île-de-France, no Liberté e mais tarde no France, era muito mais sumptuosa. Uma camada pegajosa de gordura antiga cobria a cama onde me deitei, com um misto de alívio e de repugnância. Muito tempo depois, imaginaria sentir na cabeça o rastejar dos piolhos ou, no baixo-ventre, dos percevejos. É ilógico, mas, no caso de criaturas tão pequenas, não bastará o medo para as engendrar? “Fortis imaginatio generat casum”, dizia Montaigne: uma forte imaginação cria a coisa.»
[Olivier Rolin, Baku, últimos dias; trad. Manuela Torres, Sextante Editora, Dezembro 2011]

5 de maio de 2012

(artigo não em promoção)

4 de maio de 2012

3 de maio de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Para um velho, ia depressa. E sobre a sua cabeça, no céu bem vazio, havia um voo de gansos selvagens.»
(Marguerite Yourcenar)

Nem sempre a lápis (275)

Levantava a saqueta com as pontas dos dedos até não tocar no chá e ficava a vê-la rodar dentro da chávena; bem centrada a escorrer. As pernas e o braço estendido adormeciam e o rodar da saqueta cedera lugar à sensibilidade da oscilação. Ainda não conseguiu vê-la parada, assim como se interroga sobre o direito de escrever, quando outros escreveram muito melhor o que se atrevesse a escrever.

Papiro do dia (213)

«Aceita-se hoje em história de Roma que o assassínio de César, impedindo-o de levar por diante o seu projecto de romanização do mundo europeu, do Báltico aos Urais, veio pôr depois todos os problemas que resultaram da existência de bárbaros não romanizados; veio pôr o problema da Prússia e veio pôr o problema da Rússia. Uma Península livre e una, com regiões culturalmente autónomas e com descentralização administrativa; uma Península a que se tivesse estendido o sistema de governo peculiar da Idade-Média portuguesa, isto é, o de, numa prefiguração da Commonwealth, haver uma companhia de repúblicas unificadas por uma coroa; uma Península que tivesse conservado aquele gosto de conversação, de “vida conversável”, como diria mais tarde um navegador, para cristãos, judeus e árabes, essa Península, para lá de todas as contingências económicas, teria dado modelo ao mundo. Teria, como numa renda de bilros, dado o “pique” ao mundo. E o dito mundo, Europa inclusive, se podiam depois ter dado à tarefa de ir plantando alfinete e lançando ponto. Que foi de certo modo, o que fizeram, mesmo só com o trabalho de Portugal.»
[Agostinho da Silva, Reflexão, Guimarães Editores, s. d.]

2 de maio de 2012

Fernando Lopes

1 de maio de 2012