30 de abril de 2011

O comércio dos livros
não me interessa,
só enquanto sinónimo
de convivência.

29 de abril de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

Nem sempre a lápis (156)

Há dias, a ajudar a Nico a varrer as folhas mortas que se acumulam no logradouro, encontrei três pranchas de casquinha com a patine de três anos encostadas à parede, necessárias para fazer o tampo de uma mesa decente. Tenho vindo a engendrá-la aos poucos, apoiada em dois cavaletes nivelados à altura anatómica de quem se senta num cadeirão de tabua para escrever ao Sol, sob o toldo de jasmim e cachos de glicínias e rubis de buganvílias e novelos de madressilva. Penso aparafusar o tampo com porcas de orelhas para conferir personalidade à estabilidade do conjunto; desmontável. Depois eu mostro, não sou invejoso. Trabalhar na mesa do atelier está tão fora de questão, como fazer de conta que trabalho aqui no sofá – no ninho da garça –, com o portátil à altura dos joelhos. Deitei-me para acabar A Tábua das Marés, a Nico continua a deambular pelos trilhos de Disse-me um adivinho, e levantei-me para ir buscar Entrevistas da Paris Review e ler a de Hemingway. Trabalhava de pé, escrevia numa prancha para ler apoiada numa estante – e a elaboração da mesa a interromper-me a leitura. Amanhã, meço a largura das três pranchas encostadas e vou a uma grande superfície de bricolage confirmar se bate certa com o apoio dos cavaletes, comprá-los e os parafusos cabeça de tremoço com porcas de orelhas. A seguir, tenciono carregar o puzzle e ir ao João marceneiro, situado num quintal de favas em frente do Paulinho das Bifanas, para casar as pranchas e abrir os furos. Não precisa colar; trato eu do resto, acompanhado pela curiosidade dos cães. Passei horas nisto, a afinar o projecto, a lamentar que as pernas do cavalete não venham bronzeadas, curtidas como o tampo da mesa e eu; a escrever ao Sol, em casa da Nico e de cabeça, na esplanada da rampa. Junto das três pranchas há duas mais pequenas com um dos cantos arredondados. Há pouco, identifiquei o providencial achado: foram as primeiras prateleiras para livros, ainda na cozinha do Monte Alto. Três anos depois, utilizo-as como mesa de trabalho, a rever as provas de Nem sempre a lápis, em casa da Nico.

Papiro do dia (62)

«Possuíamos uma reserva de livros que Sylvia Beach me deixara levar para o Inverno e dispúnhamos também da possibilidade de jogar o boliche com a gente da terra, na alameda que dava para o jardim de Verão do hotel. Uma ou duas vezes por semana, jogava-se poker na sala de jantar do hotel, onde então se fechavam todas as janelas e se aferrolhava a porta. É que, nesses tempos, era proibido jogar na Áustria. Eu jogava com Herr Nels, o gerente do hotel, com Herr Lent, da escola de esqui alpino, com um banqueiro da cidade, com o promotor público e com o capitão da Polícia. Jogava-se com rigor. Os meus companheiros eram todos bom jogadores de poker, à excepção de Herr Lent, que jogava sem pensar, preocupado como andava por a escola de esqui não render nada. O capitão da Polícia levava o dedo ao ouvido quando sentia o par de polícias, que andava de ronda, parar do lado de fora da porta, e todos nos mantínhamos calados até que eles se afastavam.

Schruns era um sítio excelente para o trabalho. Sei isso porque foi lá que realizei a tarefa mais dura de correcção da minha vida. Foi no Inverno de 1925 para 1926, época em que tive de transformar num romance o primeiro rascunho de O Sol Também se Levanta, que havia escrito num prazo de seis semanas. Não me lembro dos contos que lá escrevi. Foram vários e, no entanto, todos me saíram bem.

Certo dia de Natal representou-se uma peça de Hans Sachs orientada pelo mestre-escola. Era uma boa peça, e eu escrevi para o jornal da região uma crítica que o gerente do hotel se encarregou de traduzir. Noutro ano, um antigo oficial da marinha alemã veio, com a sua cabeça rapada e coberta de cicatrizes, fazer uma conferência sobre a batalha da Jutlândia. As projecções mostravam os movimentos das duas esquadras, e o oficial de Marinha serviu-se de um ponteiro de bilhar para indicar pormenores quando salientou a covardia de Jellicoe. Por vezes, exaltou-se ao ponto de lhe falhar a voz. O mestre-escola estava com medo que ele enfiasse o ponteiro pela tela dentro. Finalmente, o antigo oficial de marinha não conseguiu dominar a exaltação e toda a gente que estava no Weinstube se sentiu constrangida. Só o promotor público e o capitão de Polícia beberam com ele, e ainda assim numa mesa à parte. Herr Lent, que era natural das margens do Reno, não quis assistir à conferência. Havia um casal de Viena que viera para esquiar, mas ele e ela não queriam ir para a alta montanha; partiram para Zurs, onde, segundo mais tarde soube, morreram numa avalancha. O homem disse que o conferente pertencia ao número daqueles porcos que haviam arruinado a Alemanha e que, daí a vinte anos, o tornariam a fazer. A mulher que o acompanhava aconselhou-o em francês a manter-se calado, acrescentando que aquilo era uma terra pequena e que nunca se sabia o que poderia acontecer.»

[Ernest Hemingway, Paris É Uma Festa; trad. Virgínia Motta, Livros do Brasil, Colecção Dois Mundos, s.d.]

27 de abril de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

"No confundir las moscas con las estrellas; / oh la vieja victrola de los sofistas. / Maten, maten poetas para estudiarlos. / Coman, sigan comiendo bibliografía".
(1917 - 2011)

Às vezes, lá calha...

Nem sempre a lápis (155)

Arrasado o Minigolfe, passaram a chamar o Bar do Gato pelo nome do calcetado; tiveram essa póstuma atenção, em fóiaite. Para mim, é a esplanada da rampa; assunto encerrado, em estreita sinergia com o desembaraço com que arrumaram a Palhota, o Mar da Palha e o do Pedro, junto à lota. Mudei de praia; o meu horizonte fica entre o Casino e a Praia dos Beijinhos, cá os espero.

Papiro do dia (61)

«Qual seria o melhor treino intelectual para o aspirante a escritor?
Digamos que ele devia enforcar-se por ter descoberto que escrever bem é tremendamente difícil. Depois, devia ser esquartejado sem piedade e forçado por si próprio a escrever tão bem quanto possível para o resto da vida. Pelo menos, teria logo a história do enforcamento para começar.
E quanto àqueles que ingressaram na vida académica? Considera que os muitos escritores que ganham a vida no ensino comprometeram as suas carreiras literárias?
Depende daquilo a que chamar comprometer. Usa a palavra no sentido da mulher que está comprometida? Ou trata-se do compromisso do estadista? Ou do compromisso que se estabeleceu com o merceeiro ou com o alfaiate no sentido de lhe pagar um pouco mais mas apenas mais tarde? Um escritor que escreve e ensina deve ser capaz de fazer as duas coisas. Há muitos escritores competentes que já provaram que isso é possível. Eu sei que não seria capaz de o fazer e admiro aqueles que o conseguem. Creio, no entanto, que a vida académica poderia colocar um ponto final na experiência exterior, o que poderia talvez limitar um maior conhecimento do mundo. O conhecimento, contudo, requer uma maior responsabilidade por parte do escritor e torna a escrita mais difícil. Tentar escrever algo com um valor intemporal é uma ocupação a tempo inteiro, mesmo que a tarefa de escrever propriamente dita ocupe apenas algumas poucas horas por dia. Um escritor pode ser comparado com um poço. Há tantos tipos de poços quanto escritores. O importante é ter boa água no poço, e é melhor tirar dele uma quantidade regular do que usar uma bomba de água, secá-lo e esperar que ele volte a encher-se. Reparo que estou a afastar-me da questão, mas é que a questão não era lá muito interessante.
Sugeriria a um jovem escritor que trabalhasse num jornal? Que importância teve a sua formação no The Kansas City Star?
No Star éramos obrigados a aprender a escrever uma frase declarativa simples. O que é útil para toda a gente. O trabalho de jornal não prejudica um jovem escritor e pode mesmo ajudá-lo se ele sair de lá a tempo. Esta frase é uma das mais poeirentas de que há memória e peço desculpa por isso. Mas quando as perguntas são velhas e gastas você arrisca-se a receber de volta respostas gastas e velhas.»
[Ernest Hemingway, Entrevistas da Paris Review; trad. Carlos Vaz Marques, Tinta da China, Outubro 2009]

26 de abril de 2011

Breve interlúdio musical

25 de abril de 2011

25 de Abril de 1974

Lembro-me como se fosse agora,
e não como é hoje

23 de abril de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Oops! They Did It Again
ou de como, sinceramente

Às vezes, lá calha...

«No fundo, todos sabemos o que se passou nesta divisão e, ainda que seja em sonhos, vamos em direcção da panela para receber a nossa ração. Se preferirem, no entanto, leiam e interpretem o que o vapor negro da panela escreve na parede.»

Nem sempre a lápis (154)

Quando cheguei a casa da Nico, pronto a enumerar a prioridade das conclusões memorizadas pelo caminho, ela já tinha as mesmas na ponta da língua, para a troca: a casa a vender não é a de Carnaxide, mas a de Portimão. Admito que possa ser chato, mas já não temos idade para brincar às casinhas. Faz uma brasa do caraças, não me decido entre escrever ao Sol ou esticar-me na sala a olhar para as lombadas, a observar Os Jogos e Os Homens (Roger Caillois), os cães não me largam um segundo, mas não apreciaram muito a ida à praia; estávamos esquecidos. Prevaleceu o bom senso e eu ainda sinto a mordedura do Sol e o diapasão da coluna, quando me atirei à água para afogar quatro épocas sem praia; cu na areia e veleiros no horizonte, demorem-se eles.

Papiro do dia (60)

«O homem maduro senta-se à mesa, perto do fogo, e começa a escrever a carta.
O homem maduro não procura a inspiração no papel em branco e olha, concentrado, as chamas intermitentes de um fogo recém-nascido do qual parece esperar palavras.
As palavras esperadas não chegam e no seu lugar o homem maduro vê-se acossado por uma multidão de imagens que se projectam como sombras do seu passado na parede da lareira.
O homem maduro vê a mãe na parede da lareira, afastando-se dele cada vez que a sua imagem de menino estende os braços para ela.
A mulher idosa é mais jovem na fuligem e move-se como se estivesse a brincar às escondidas. Mas o homem maduro sabe que não brinca, que não sabe brincar.
Quando o homem maduro quer escrever a sua culpa à mulher madura, a culpa dilui-se num passado tão denso como o bosque, no qual tenta recordar palavras e o odor que as pronunciava.
Por um momento, o homem maduro duvida do rancor que sente sobre si mesmo, projectando-se no fogo, alimentando-o. Depois, incapaz de encontrar essas palavras que o salvariam, o homem maduro inventa sobre o papel uma verdade da qual perde, rapidamente o rasto.
O homem maduro amachuca o papel entre as mãos e atira-o ao fogo.
No outro lado da ponte de fumo, o homem jovem escreve a confissão do seu crime.
O que o homem jovem faz é retratar a decoração, enumerar com extremo cuidado os detalhes, decompô-los habilmente em poderosas sequências geométricas, visualizar todos os seus átomos.
O homem jovem tenta envergonhar-se do seu crime, registando-o, quando o que faz, na realidade, é analisá-lo para aperfeiçoar o seguinte.
O homem jovem entrega o seu novo projecto ao fogo e este digere-o em forma de fumo.»
[Menchu Gutiérrez, A Tábua das Marés; trad. Luís Filipe Sarmento, Teorema / Gabinete de Curiosidades, Junho 2000;

21 de abril de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Por cima do telhado,
a chuva atravessa o fumo que sobe pela chaminé,
sem o molhar.»

«É bom trabalhar nas Obras» (86)

«Atrás das jaulas ergue-se a estação do comboio. Muitas crianças entram nele, às vezes acompanhadas pelos pais. Quando o comboio arranca, sobressaltam-se. Depois, olham com júbilo os bosques, o mato, a cadeia de lagos, as montanhas, os túneis. O que é singular neste comboio, é que nunca regressa. E quando o faz, as crianças já são adultos e estão cheios de medo e de ressentimento.»
[José Emilio Pacheco, O princípio do prazer; em tradução para a colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro]

Papiro do dia (59)

«Os objectos da sua infância não estão contaminados pelo desprezo do presente, porque já não são seus, e porque também já não podem sê-lo, estão também a salvo dela.
Ainda que se sente no cavalo e passe os dedos pela secretária, os objectos estão a salvo de sua corruptora possessão e a mulher madura sente-se feliz por vê-los tão longe, tão bem protegidos pela inconsistência da sua memória.
A mulher madura abre as caixas e as arcas numa correria nervosa e de uma delas retira um velho bastidor. No círculo do tecido há meia rosa bordada com um fio vermelho. Uma rosa vermelha interrompida no tempo.
A mulher madura senta-se no chão, com o bastidor entre as mãos, e sente o pulsar do seu coração, regressivo, intimando-a a actuar.
Desce as escadas e dirige-se ao quarto onde está o cestinho da costura. Pega na tesoura, na caixa das agulhas e procura um carrinho de linhas vermelhas. Quando o encontra, sente tal alegria que quer dar as graças, mas a quem?, à igreja branca?
A mulher madura volta a subir as escadas e, quase sem alento, fecha a porta do quarto.
Sentada no chão, por debaixo da janela, e com o bastidor entre as pernas, enfia a agulha com a linha vermelha.
Ao molhar a linha com saliva, sentiu os seus mamilos a endurecerem-se, e, agora, ao espetar a agulha, por debaixo do bastidor, no primeiro ponto – a mulher sente a primeira onda de calor sobre as coxas.
A mulher madura espeta a agulha no tempo e o tecido do bastidor serve-lhe de cortina entre o passado e o presente, entre a vontade e o destino.»
[Menchu Gutiérrez, A Tábua das Marés; trad. Luís Filipe Sarmento, Teorema / Gabinete de Curiosidades, Junho 2000]

19 de abril de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

«caro colega, só agora deparo com o lençol, provavelmente já nem vai ler este comentário.
A tradução literária não é uma "prestação de serviço" no sentido fiscal. É um trabalho criador, a retenção deve ser de 11,5% ou 8,25% (incidência sobre 50%), e isso deve constar do contrato. Se não houver contrato escrito, funciona do mesmo modo a Lei do Direito de Autor. Temos de nos bater por isso. Não devemos vender traduções como quem vende t-shirts, toma lá dá cá. Ainda segundo a lei, se o editor não editar a tradução, perde o direito a ela, embora a tenha pago. Pode editá-la sem problemas noutra editora. O tradutor é um autor, os técnicos da SPA já chegaram a essa conclusão. O editor trafulha e merceeiro deve ser combatido.»

Às vezes, lá calha...

«O resto do quarto está na penumbra, o que faz ainda mais íntimo o reconhecimento, a solidão ainda mais acolhedora.»
[L'Échappée onirique]

Nem sempre a lápis (153)

Tocaram a campainha à hora agendada e não combinada. Não são visitas; em três anos, contam-se pelos dedos de uma mão e sobram, as que houve. Mostrei a casa a uma interessada, a uma pretendente do meu espaço, acompanhada pela consultora imobiliária. Os termos e a atitude com que tenho lidado na última semana; pasmo a lê-los. Não há-de ser nada. Saíram e fui arejar, disposto a beber um chá para me serenar a garganta defumada. Dei por mim a acelerar o passo, temível, à vista da minha mesa desocupada. Marquei-a com a lata e a onça de tabaco, ofegante, trémulo, e cai em mim: pareci o choné que deambula pelo pátio do centro a cravar cigarros; com faro e perícia de perdigueiro.

Papiro do dia (58)

«O espelho tem sido sempre uma surpresa: cada dia uma cara. A diferença apoia-se em que antes cada cara diferente era uma cara dela e, agora, o espelho é cada dia a mesma cara, mas de outra.
A mulher jovem não se diz nada. Cada vez que olha no espelho, emudece interiormente. Não se diz nada porque esses olhos parecem dizer-lhe tudo: ao instrumento interrogador responde um idêntico instrumento.
A mulher jovem recorda o domingo anterior. Recorda os seus passos que se dirigiam, como de costume, à igreja branca. Recorda o caminho limpo e o som do carrilhão. Recorda como sentiu que duas mulheres se aproximaram por detrás dela e como as odiou. Recorda como, de repente, saltou para um lado do caminho e se escondeu atrás dos roseirais, deixando-as passar; como escondeu os livros e ali os deixou; como voltou ao caminho e retrocedeu até à ponte. Recorda como soube chegar à outra margem, onde não vive ninguém e onde só se vai por uma coisa.
A mulher jovem recorda a sabedoria que não se partilha com ninguém, nem sequer com o espelho.»
[Menchu Gutiérrez, A Tábua das Marés; trad. Luís Filipe Sarmento, Teorema / Gabinete de Curiosidades, Junho 2000;

18 de abril de 2011

... e a partir de agora,

passamos a ter o teorema
visto pela Teodolito

(clique para focar)

17 de abril de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«A barca desliza pela água com extrema suavidade. Mais do que golpear a água, os remos pensam-na, saboreiam-na. E a água, mais do que tolerar, recebe o suave peso. De tanto pensar a água, de puro norte, a barca está desorientada.»

Nem sempre a lápis (152)

Acabou-se a lapiseira Novotel azul, equipada com uma providencial borracha laranja na extremidade, que trouxe da Póvoa de Varzim em 2004. Aproveitei a oportunidade para apagar um pequeno quadro com uma pena e outras simbologias que não recordo, mas comprovava a minha presença dois anos antes. Os tais objectos, rastos curriculares. Em breve me desprenderei de outro, onde se dá conta de que li ao desafio com o Miguel Manso, uma tal 5.ª feira na Trama. Estranhei não atenderem o telefone e fui confirmar no blogue se o número estava actualizado. É possível que esteja, mas desapareceu das formas de contacto com os livreiros. Mandei um e-mail, como se faz neste tipo de circunstâncias, e até hoje, nada. Ora, eu tinha lido o desapontamento de manuel a. domingos pela interrupção no circuito literário por ruas da Capital e, como dois mais dois são quatro, quando vi a porta fechada e perguntei na modista ao lado, teve a amabilidade de informar: Às vezes fecham às segundas, mas hoje ainda não vi ninguém. Reparei que a famigerada cortina de ferro estava subida, no vidro da porta nada constava, e visível na montra, só o abandono. Mudei de passeio e entrei na Galeria Diferença para ver a exposição recomendada pela minha curadora Ana Vidigal (repus aqui o YouTube para uma pequena sessão), mas deparei-me com a porta fechada e a nota «Montagem de exposição, é favor tocar a campainha». Encontrei-me sentado no sofá da Loja de História Natural, à conversa com o Pedro Eiras – estagiário e guarda-nocturno na noite em que a Trama acabou; ponto final –, sobre alojamento para alugar no triângulo compreendido entre o Rato, a Estrela e o Príncipe Real. Admito um desvio para as Avenidas Novas; mas mais, não. Esperei pelo Luis Manuel Gaspar sentado à mesa da primeira esplanada de quem vem do Rato; nunca na outra, tinha bomba de gasolina e tem colunáveis locais. O quiosque de bebidas passou a substituir a árvore e o banco, onde vivi um momento satori, há coisa de 37 anos, confirmado bastante mais tarde por John Berger em Aqui nos vemos. Desde que desci nas Amoreiras e percorri o caminho até esse ancoradouro, fiz os possíveis por desligar e ouvir tudo o que a cidade segreda, vocifera, empurra, apita, ao passeante, ao estorvo à circulação. Não gostei, sejamos francos. Assusta-me a perspectiva de não precisar de ir a Lisboa, de perder o prazer de preparar a deslocação, de autocarro ou de carro, de me perder. Enquanto esperava pelo Luís, ensaiei uma possível atitude de residente e deu-se esta situação deliciosa: fingindo-se alheio, o meu ex-colega de rádio e agora actor, olhava-me pelo canto do olho, que o evitava, indiferente às cotoveladas de quem o reconhecia sem dar por mim, mas eu e ele conhecendo-nos de amarga ginjeira. O Luís chegou e tive na mão os desenhos que fez para Nem sempre a lápis. Conversámos e fez-se tarde. Liguei ao Miguel Martins, mas não estava na Poesia Incompleta, onde o ilustrador ia deixar os desenhos. Melhor assim, enquanto o editor entrega o material à Inês Mateus, a paginadora, tenho pretexto para sábado à noite ir até ao Bartleby e à ZDB. Pedi ao Luis que aceitasse e apresentasse as desculpas da minha caixa torácica por não o acompanhar e cumprimentar o Changuito, e retomei o caminho a pé até ao Marquês, para apanhar o autocarro. Se houver problema de espaço, anula-se um texto escrito a lápis; é preferível um desenho a tinta-da-china.

Papiro do dia (57)

«Madeira e água desejam-se.
Há dois lábios de água para cada pedaço de madeira e uma boca de água para cada remo. O céu do paladar dessa boca de água é feito de espuma tranquila e a tranquilidade é o ensino que reparte o prazer, na forma de erecção deslizante.
O homem assiste a este espectáculo da suavidade com a boca seca e chama em seu auxílio a saliva. Apercebe-se de que não governa os remos, que os imita; apercebe-se de que acaricia os punhos, em círculos que se encerram na palma das suas mãos.
Da mesma maneira a água pule a madeira, a madeira é o polimento da água e os olhos aquosos do homem que rema sem remar parecem pérolas nesta cena nacarada.
Durante um longo tempo, o homem não se atreve a abandonar este estado nem a persistir nele.
Agora, a madeira está a ponto de incendiar a água e está a ponto de arder. Levanta o olhar e, do centro da ria, o homem contempla as margens.
Um denso bosque tomou conta da margem esquerda e fechou todas as suas entradas com os persuasivos cadeados das silvas. Coroando um monte inacessível, ergue-se a igreja negra. A agulha da torre do campanário parece cravar-se nas nuvens que chovem sobre a igreja e a fazem brilhar como charão.
A margem direita é um jardim prolongado. O homem segue do barco a linha de cores até chegar ao roseiral, em cujo centro se ergue uma igreja branca.
Olha a igreja branca, na sua margem impudicamente soalhada e estremece quando a torre do campanário desperta com o som do carrilhão, que se expande rapidamente.
O homem dispõe-se a remar até à margem direita quando o único sino da igreja negra começa a repicar. Volta a cabeça para a margem esquerda. Os espinhos das silvas parecem ganhar vida e cravar-se no som, e o som profundo do sino parece trespassá-las. A música da igreja negra concentra-se.
O homem faz por remar para a margem direita, mas a margem esquerda impede-o. O homem vira as costas à margem esquerda quando na realidade quer ir ao seu encontro.
As mãos agarram-se agora aos remos, que começam a golpear a água. Madeira e água repelem-se, chamando-se. Madeira e água deixam de se acariciar e tocam-se.
Começa a levantar-se a ondulação, a água começa a subir a costa e a madeira a baixá-la, começa o outro prazer.
E o homem que olha a marulhada e que é parte dela, o homem que mal escuta agora o débil carrilhão da igreja branca, sente um intenso desejo de se atirar à água, de se despedaçar nela.»
[Menchu Gutiérrez, A Tábua das Marés; trad. Luís Filipe Sarmento, Teorema / Gabinete de Curiosidades, Junho 2000;

15 de abril de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

Estou deitado, a ler. Faço uma pausa e levanto-me da cadeira à sombra rala da figueira e vou até ao canto do quintal onde morrem os cães, a olharem para Sueste. Sou o próximo, sem saber ladrar; sem um latido.

Nem sempre a lápis (151)

Desconheço as comunicações e as conclusões da mesa Os escritores que fogem da fama – a sete pés, suponho, embora não seja de desprezar a versão Os escritores malditos – do tão blogobadalado Festival Literário da Madeira (FLM); votos de insular continuidade. Mas esta, eu li surpreendido e deliciado com a autenticidade do decalque. Só reconheço dois tipos de marginal necessariamente antagónicos; assanhados pela libido (e alívio) das desavenças, das rupturas, da competição. Um, senta-se na margem a contemplar o curso do rio – é um sábio; o outro, estrebucha exausto contra a corrente – é o parvo. O primeiro, conhece os ritmos da água, o espectro da reverberação, os humores do caudal, antecipa a mais imperceptível oscilação. O segundo, obstina-se em desviar o curso que se desvia dele, o evita, compadecido. E lembro-me, inevitavelmente, da resposta de Luiz Pacheco aos jornalistas do Libération quando lhe perguntaram pelos marginais, na semana do 25 de Abril: «Foram todos para a Madeira.»

Papiro do dia (56)

«Foi a única fase da minha vida em que tentei escrever um diário. Não, não foi a única. Anos mais tarde, em circunstâncias de isolamento moral, deitei no papel as ideias e factos decorridos ao longo de algumas dezenas de dias. Mas era a primeira vez. Não me lembro como foi que começou, nem como o caderno de apontamentos e o lápis me vieram ter à mão. Não posso imaginar-me a procurá-los com a menor deliberação. Calculo que tenham sido eles a salvar-me daquela atitude dementada de falar sozinho.
É muito estranho, nos dois casos, que eu tenha dado em escrever um diário em circunstâncias que não contava – por assim dizer, na linguagem de todos os dias – ver-me livre do sarilho em que estávamos metidos. Não esperava sequer que aquele registo me viesse a sobreviver. O que mostra que se tratava de uma pura necessidade pessoal e de alcance íntimo, e não de uma exigência egoísta de amor-próprio.
Revelo aqui um novo extracto desse diário, um número reduzido de linhas, que possuem agora uma aparência de horror aos meus olhos, e que transcrevo do que garatujei precisamente naquele mesmo dia à noite:»
[Joseph Conrad, A Linha de Sombra; trad. Maria Teresa Sá e Miguel Serras Pereira, colecção Mil Folhas, jornal Público, Abril 2003]

13 de abril de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«A geometria especulativa,
como as demais ciências,
tem os seus jogos, as suas inutilidades.»
(Chateaubriand)

«É bom trabalhar nas Obras» (85)

«Jamais esquecerei o dia da invasão. A cidade ficou petrificada num desvario de terror. O primeiro movimento foi correr para as igrejas. Nem sequer houve a ideia de uma resistência organizada. Falou-se que se tentaria travar batalha nos arredores de Tapachula, unicamente para mostrar ao mundo que tínhamos vitalidade, pois a palavra de ordem foi sempre alistar-se na linha Veracruz-Puebla-Acapulco para defender a capital.
Era o dia de aniversário do Nuñez, o meu vizinho. Na sala pesava a mesma angústia que na rua. Os rumores eram todos absurdos. Em cada frase podia sentir-se o abatimento. Ninguém pensava em resistir e, perante o perigo, o egoísmo levanta-se feroz e brutal. O ódio ao inimigo era terrível, não pela perda da pátria, mas pelos desastres particulares que a derrota traria consigo.
Uns temiam o seu emprego no governo, outros perguntavam-se se iam continuar a pagar juros aos bancos. Com a perda do Estado via-se o fim da comodidade pessoal. Tal indignação esgotava o patriotismo que aquelas pessoas davam de si. No fundo de cada proposta havia a ideia imutável da capitulação, o horror pela luta, a ânsia de não perder o lugar, o receio de que os juros não fossem pagos.
Na nossa fraqueza egoísta, cada um de nós julgava o país vítima do seu próprio abatimento. A sugestão de criar guerrilhas que apoiassem o nosso reduzido exército, de formar milícias ou colunas móveis, era tomada com um encolher de ombros –: Para quê? Não se pode fazer nada. Seja como for, vão esmagar-nos.
Abeirei-me da janela. A colina e o seu castelo recortavam-se com uma tristeza enorme no firmamento sujo. Senti que algo tinha terminado para sempre. Perto do nosso bairro, no Paseo de la Reforma, havia uma multidão silenciosa. Dos edifícios mais altos caía o mesmo sentimento de aterrada abstenção, de concentração egoísta, de medo obscuro.
Vindos pela Avenida Veracruz apareceu um numeroso grupo de jovens a cantarem o Hino Nacional e incentivavam a multidão. Nenhum gesto lhes respondeu. Naquele silêncio gelado, o seu entusiasmo abateu-se como uma bandeira que por falta de brisa cai ao longo do mastro. A tentativa de heroísmo apagou-se entre a indiferença pública. Disse para comigo: – Estamos perdidos.
Nuñez tirou-me das minhas reflexões. Queria mostrar-nos o novo leitor de vídeo e o televisor de ecrã enorme que tinha adquirido no contrabando com os seus dólares depositados em Brownsville, Texas. Pusemo-nos a ver uma comédia musical enquanto o exército inimigo atacava por ar, mar e terra.»
[José Emilio Pacheco, O princípio do prazer; em tradução para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro]

Papiro do dia (55)

«Um dia descobrira-se que o velho marinheiro sem coração, terrível, curtido pelo vento, rude, salgado pelo mar, com a idade de 65 anos, era, para além de artista, um homem enamorado. Em Haiphong, depois de lá ter atracado no decurso de uma série de peregrinações inúteis (e entretanto o navio quase naufragara por duas vezes), pusera-se de cama e mesa, como dizia Burns, com certa mulher. O imediato não conhecera directamente este enredo amoroso, mas dele existiam provas materiais consistentes numa fotografia tirada em Haiphong. Fora dentro de uma das gavetas do camarote do capitão que Burns a descobrira.
Também eu veria o espantoso documento, que, passado algum tempo, acabei por deitar ao mar. Lá estava o capitão, sentado, as mãos repousando nos joelhos, calvo, com as costas curvadas, o cabelo grisalho e de pêlos hirsutos, lembrando um pouco um urso por domar; ao lado dele, dominando-o, de pé, uma horrível mulher branca, de idade madura, narinas ávidas, olhar cheio de uma fatalidade vulgar numas órbitas enormes. Um traje qualquer semi-oriental servia-lhe para se mascarar. Dava a impressão de uma espírita de segunda ou de uma cartomante de meia tigela. Apesar disso, era verdadeiramente impressionante. Uma feiticeira de bairros duvidosos. Era incompreensível. Havia qualquer coisa de horrível na ideia de ter sido ela a última cintilação da esfera das paixões para essa alma irada, que nos parecia contemplar através do rosto sarcástico e duro do velho lobo do mar. Mas ao mesmo tempo reparei que havia na fotografia um instrumento de cordas – uma viola ou um bandolim qualquer. Talvez fosse esse o motivo secreto do sortilégio.»
[Joseph Conrad, A Linha de Sombra; trad. Maria Teresa Sá e Miguel Serras Pereira, colecção Mil Folhas, jornal Público, Abril 2003;

12 de abril de 2011

"Pagam de empurrão", mas pagam...

Para que se compreenda – e recorde, a quem acompanhou e continua a recorrer à mesma fonte de tráfego – o motivo deste lençol, esticado entre mim e a senhora Joana Pinto Coelho, suponho tratar-se da pessoa que me contactou por volta das 23h00 do dia 12 de Fevereiro do corrente ano, para – entre a interminável quinquilharia da conversa, sem descolar para eu ir até ao Bartleby –, suponho ser a pessoa que me contactou a tentar dissuadir quanto à oportunidade de publicação deste post, agendado para as 00h00 do dia seguinte, como se verificou. Quanto à decisão de publicar a tradução de Miguel Serras Pereira do posfácio, em detrimento da minha tradução do prefácio, surpreende-me a atitude do tradutor do livro por eu não saber:
a) era do conhecimento dele a existência de um prefácio em tradução por outro tradutor?
b) tendo enviado a tradução às 15h49 do dia 20 de Janeiro, quando é que Miguel Serras Pereira se viu confrontado com a necessidade de acabar o livro, traduzindo o posfácio, após o famigerado fim-de-semana de 12 de Fevereiro?
Ilmºs. Senhores,
Aguardei o tempo que considerei razoável para o pagamento da minha tradução do prefácio – agora, posfácio – de Enrique Vila-Matas, para o livro «Contos Carnívoras, bem como o envio de um exemplar.
Para minha surpresa, e total desconhecimento, não só acabo de ver o livro em questão à venda na Fnac da Guia (Algarve), como a atribuição da autoria do texto de Vila-Matas – por mim publicamente traduzido a partir do original impresso em folhas A4 que me foi enviado no envelope das Ahab Edições em meu poder – ao tradutor Miguel Serras Pereira, que terá traduzido «Contos Carnívoros».
Concedo às Edições Ahab o prazo até à próxima sexta-feira, 15 de Março de 2011, para liquidação do valor em dívida, através do NIB 001800010020068223378, ou qualquer outro meio.
Sem outro assunto,
Jorge Fallorca
(Sócio da SPA)
De: Ahab Edições [mailto:info@ahabedicoes.com]
Enviada: segunda-feira, 11 de Abril de 2011 14:42
Para: Jorge Fallorca
Assunto: Re: Pagamento de prestação de serviço
Exmo. Senhor Jorge Fallorca,
Solicito, por favor, que me informe do seguinte:
a) Encontra-se Va. Exa. sujeito a retenção na fonte de IRS? Caso a reposta seja positiva, solicito que me indique a taxa de retenção.
b) Liquida Va. Exa. IVA?
Assim que me conceder a informação requerida, procederemos à transferência da quantia de ?65,55 (sessenta e cinco euros e cinquenta e cinco cêntimos).
Por último, e atento o teor do segundo parágrafo do e-mail em resposta, informamos Va. Exa. de que o texto que traduziu, da autoria de Enrique Vila-Matas, não foi utilizado pela Ahab Edições. A tradução constante da edição publicada da obra «Contos Carnívoros» foi realizada por Miguel Serras Pereira, o que, de resto, poderá comprovar se tiver o cuidado de o ler.
Sem mais por ora,
Fico a aguardar a Sua resposta.
Joana Pinto Coelho
Citando Jorge Fallorca :
Ilmºs. Senhores,
a) Afirmativo, 21,5%. (stop)
b) Afirmativo, 23%, (stop)
Concedida a informação requerida, aguardo os elementos das Edições Ahab para emitir o respectivo recibo verde.
Atento ao teor do recíproco segundo parágrafo, pergunto quando e através de que meio as Edições Ahab me informaram da decisão e motivos, bem como a solicitação dos elementos anteriormente fornecidos.
Satisfeitas as suas perguntas fico a aguardar as suas respostas; respostas que devo aos leitores do meu blogue e que continuam a utilizar como fonte de tráfego: fallorca ahab; julio ramon ribeyro ahab, por exemplo.
Jorge Fallorca
> -----Mensagem original-----
Exmo. Senhor Jorge Fallorca,
Foi efectuada a transferência bancária para a conta bancária com o NIB 001800010020068223378, no valor de ?66,54 (sessenta e seis euros e cinquenta e quatro cêntimos), conforme documento anexo. Passo a indicar os cálculos:
?66,55 x 21,5% = ?14,09 (valor liquidado a título de IRS e retido nos termos legais);
?66.55 x 23% = ?15,08 (valor liquidado a título de IVA e adicionado nos termos legais)
Os dados da Ahab são os seguintes:
Ahab Edições, Lda., com sede na Rua de Vilar, n.º 10, 2.º, 4050-625 Porto. NIF 508.895.995.
No que respeita à data da informação solicitada, a mesma é a seguinte:
11 de Abril de 2011; 14h42, via e-mail.
Quanto à decisão de não utilização da tradução feita por V. Exa., encontro-me, por urbanidade, obrigada a informar somente o seguinte: a mesma cabe no livre arbítrio do Editor, que é sensível a muitos factores, para além da qualidade do serviço prestado.
Uma última nota quanto a este assunto: a contratação de serviços em apreço impôs as seguintes obrigações, de parte a parte:
O Tradutor, Va. Exa., obrigou-se a traduzir um texto fornecido pela Ahab, da língua castelhana para português.
A Editora, Ahab Edições, obrigou-se a pagar a quantia de ?8,00 (oito euros), por cada página de 1800 caracteres.
Va. Exa. procedeu à tradução e a Ahab procedeu ao pagamento há momentos.
Sem mais,
Joana Pinto Coelho

11 de abril de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

«Eu acho que sei qual é esse dom, é algo apenas possível em quem descobriu o seu lugar, a sua casa, e pode aí viver numa tumultuosa paz com os seus íntimos fantasmas.»
[THE HORSE WHISPERER]

Às vezes, lá calha...

«Toda a gente tem uma excelente opinião acerca dos benefícios da experiência. Mas, de facto, a experiência significa sempre algo de desagradável, contrariando a sedução e a candura das ilusões.»

Nem sempre a lápis (150)

Termino o rascunho de O princípio do prazer em simultâneo com A Linha de Sombra. E é precisamente nela que me encontro, uma vez mais. Terminei a tradução contrariado: nem a folga que me proponho para a começar a ler e a trabalhar, nem A Tábua das Marés que aguarda na pilha ao lado da cama, me animam o suficiente. Na sexta-feira, movido por um impulso aproximei-me da mesa onde almoçavam dois funcionários de uma imobiliária, e à noite já tinha a casa leiloada na Net, com fotos e tudo para que não houvessem dúvidas. Não discuto a técnica nem a qualidade; simplesmente, não têm nada a ver com as que tirei para aconchegar anotações no blogue. É muito possível que não acabe aqui o ano; que volte a esperar por Setembro, pelo fim das férias, para regressar a Lisboa. Recorrendo ao justificável argumento da sobrecarga orçamental, decidi pô-la à venda e alugar uma casa em Lisboa; não para comprar outra mais pequena, em Carnaxide. Não é preciso, já cá estou quase há três anos; hoje, decorridos quase trinta e cinco, nem os que passei no Algarve parecem interrupção. Resta-me esperar que a regressão não me conduza ao circuito dos quartos alugados; com serventia de cozinha, a conceder-se ainda o privilégio, a mordomia. Deixo a conclusão aos cuidados da delegação vienense, apaniguados & detractores associados. Vim para aqui viver em Dezembro de 1976; semanas antes, José Henrique Santos Barros e Ivone Chinita abriram a porta para mostrar a casa. Nunca nos tínhamos visto e nunca mais nos voltámos a ver. Conhecíamo-nos dos suplementos dos jornais. Ele dirigia ou coordenava um no jornal açoriano patriarcal e mais reaccionário que se possa imaginar, A União, onde colaboravam David Mestre, Rui Knopfli, entre outros representantes da poética que lavrava o vasto Império, no estertor dos anos 70. Lamento, apenas em termos de rigor, já não ter esses exemplares e a correspondência trocada; o mesmo sucederá aos objectos, aos rastos curriculares que vão aqui ficar com várias gerações de pacíficos fantasmas, senis. Só concebo a mudança como forma de aligeirar, depurar; polimento até o gesto ficar supenso no ar. Esta tarde, quando fechei a porta depois de a abrir a uma interessada, encaixei a estocada; já aqui não vivo, sou a pessoa que mostra a casa. Entre copiar excertos para o blogue e arrumar o livro, dei-me com ele na mão; parado e desnecessário o cuidado: «A vida era para ele um favor… – aquela sua vida precária e penosa… – e ele sentia-se totalmente aterrorizado consigo próprio.» Como há três anos, vou atender interessados e aguardar por Maio para seguir A Tábua das Marés: «A barca desliza pela água com extrema suavidade. De tanto pensar a água, de puro norte, a barca está desorientada.»

Papiro do dia (54)

«O que sentia na altura era já um tal turbilhão de impressões que aquela informação vertiginosa parecia não fazer a mais ligeira diferença. Deixei-a cair dentro do caldeirão a ferver do meu cérebro e aí a guardei para comigo, após uma breve, mas expressiva, viagem de despedida com R. O favor dos grandes deste mundo desprende um halo à volta do objecto bafejado pela sua escolha. Por isso aquele excelente R. gostaria de saber se lhe seria possível fazer por mim alguma coisa. Conhecia-me apenas de vista e sabia perfeitamente que não voltaria a pôr-me a vista em cima; eu era, na companhia dos outros marinheiros do porto, um novo motivo de escritas oficiais, campo onde ele preenchia os respectivos modelos com toda a sofisticada superioridade de um homem de caneta e papel em relação aos outros homens que, entretanto, se encontram em luta com a realidade da vida fora dos muros sagrados dos edifícios públicos. Que fantasmas não devíamos nós, homens do mar, ser para ele! Meros símbolos de jogos malabares nos livros e nos registos volumosos, privados de cérebro, de cuidados, de dificuldades; coisas de grande utilidade, mas decididamente de natureza inferior.
E ele agora, terminado o serviço da repartição, queria saber se não me poderia ser útil nalguma coisa!»
[Joseph Conrad, A Linha de Sombra; trad. Maria Teresa Sá e Miguel Serras Pereira, colecção Mil Folhas, jornal Público, Abril 2003;

9 de abril de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Se as minhas palavras não me tivessem saído dos lábios naquele instante (e a minha vontade nada teve a ver com aquilo) toda a minha existência teria sido, sem dúvida, igualmente a de um homem do mar, mas seguindo linhas de orientação que se tornaram, hoje, para mim, impossíveis de imaginar.»
[In Memoriam: João Bafo]

Nem sempre a lápis (149)

Hoje não trabalho, vou-me deixar ficar só a curtir e a descansar. É domingo e acordei às duas e tal da tarde. Quando saí de casa, senti-me empurrado pelo desfile de um festival de bandas de música até ao fim da vila. Tomei o pequeno-almoço onde antes ficava o olival e as terras de cultivo ao lado da igreja – naturalmente empoleirada em cima da várzea – e, quase sem dar por isso, desatei a caminhar em direcção ao rio, como se voltasse para casa depois da escola, com um casaquinho de malha cinzento claro e uma indestrutível pasta de couro na mão. Não há canto possível que permita identificar e retomar esse longínquo percurso: a curva e a ponte, fronteiras do meu território infantil, foram substituídas por uma rotunda que engoliu a barroca, onde molhava os pés numa vala que até passava por baixo de casa; a serração de madeira transformou-se num alvo indefeso apedrejado pelo abandono; o marco da estrada, amparei ali pela primeira vez a morte nos meus braços adolescentes e incrédulos, foi actualizado por uma placa que converteu a Estrada Nacional em Rua da Caniveta; a escada, onde uma amiga chateada me despertou com um safanão, que partiu um vaso à mãe que não deixou as filhas virem brincar connosco, agora esconde-se envergonhada atrás da vegetação galopante e vingativa, «benfeita…» Vim ter ao incansável rio onde acabámos por aprender a nadar, depois de engolirmos muitos pirolitos; as mulheres lavavam a roupa que punham a secar nas silveiras carregadas de amoras, mas enxotavam-nos a rir quando lavavam roupa menstruada; esqueci o meu primeiro relógio no pulso de uma videira, para ir nadar; vi pela primeira vez um cão morto, inchado e a ser devorado por uma segunda pele de vermes; vi, também pela primeira vez, um verdilhão rasar a água com um chilreio repenicado e trocista, uma lontra esgueirar-se por entre as raízes submersas dos freixos e salgueiros; rio, onde, há quase cinquenta e nove anos, o meu pai teve de ir a correr apanhar uns peixes minúsculos para a minha mãe «matar os desejos» e eu me decidir a nascer. Transformaram as abandonadas margens do rio numa agradável praia fluvial, com percursos por entre a relva e mesas com bancos de pedra à sombra dos abetos e freixos, sentado a escrever, de frente para o Sol e de costas para a ponte do comboio e o Cabeço do Senhor do Mundo, enquanto vejo a minha mãe cada vez mais encantada com a corte que o doutor Alzheimer lhe fez. Há dias, encontrei a melhor amiga da minha infância e adolescência; não a via há mais de vinte anos. Fez-me uma surpresa: abriu os cordões à bolsa e, num passe maroto, mostrou-me uma foto de grupo do colégio, talvez tirada em mil e novecentos e sessenta e cinco ou sessenta e seis. E, à medida que me ajudava a identificar este ou aquele rosto, ia-me contando como a morte prematura, a natural separação e a previsível fuga, foram estilhaçando a foto amarelecida que segurávamos comovidos com o reencontro, donde sabemos que também já nos ausentámos.

Papiro do dia (53)

«Mas aquilo de que eu realmente precisava era de ficar sozinho por uns momentos. Assim, peguei na oportunidade que ele me oferecia, a toda a pressa. O meu quarto constituía um tranquilo refúgio numa ala evidentemente desabitada do edifício. Como não tinha absolutamente nada que fazer (já que não chegara a desfazer as malas), sentei-me na cama e entreguei-me às influências do momento. Inesperadas influências…
Em primeiro lugar, surpreendia-me o meu estado de espírito. Surpreendia-me não me sentir mais surpreendido com o que se passara. Como era possível? Ali estava eu, dotado de um lugar de comando, num abrir e fechar de olhos, de modo que não se encontrava nada em harmonia com o curso normal das coisas humanas, como se por efeito, pelo contrário, de um passe de artes mágicas. Por isso devia estar louco de espanto. Mas não estava. Sentia-me bastante na situação das pessoas que entram nos contos de fadas. Nada as admira. Quando lhe aparece uma carruagem de gala, completamente equipada, feita de uma abóbora, para a conduzir ao baile, a Gata Borralheira não solta a mais pequena exclamação se surpresa. Sobe para o coche, em perfeito silêncio, e é levada pelos cavalos para seu maior bem na vida.»
[Joseph Conrad, A Linha de Sombra; trad. Maria Teresa Sá e Miguel Serras Pereira, colecção Mil Folhas, jornal Público, Abril 2003;

8 de abril de 2011

Quando {anita}

não é alfarrabista
(logo, a partir das 19 horas, na Rua Nova da Trindade)

7 de abril de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«E, de um momento para o outro, deixei tudo isso. Abandonei-o - digo-o entre nós - com a inconsequência própria de um pássaro que parte a voar de uma ramada confortável. Foi como se, sem fazer a mais pequena ideia, eu tivesse ouvido murmurar ou visto qualquer coisa.»

«É bom trabalhar nas Obras» (84)

«... quando vamos chegar a Veracruz?, em menos de três dias, se fizer bom tempo, respondem;
à noite olho da coberta lá para baixo, as ondas aparecem temíveis a quebrarem-se contra o costado do barco, se tenho medo de uma sublevação quanto mais não temerei um naufrágio, inconveniente sério para alguém que tem de andar de um país para outro da América do Sul com amostras, almanaques e catálogos dos laboratórios Cunningham, e como hei-de fazê-lo senão de barco, felizmente os da Transatlântica Espanhola são os mais confortáveis e seguros do mundo;
a mesma opinião tem o casal que me calhou à mesa, uns noruegueses muito agradáveis, embora não demasiado conversadores, como não sei francês e eles falam um inglês britânico e quase nada de espanhol, só posso mencionar-lhes as obras de Ibsen que vi na Broadway, Espectros e A Casa das Bonecas, e perguntar-lhes se a sua capital, Cristiania, é tão gélida como São Petersburgo, sei um pouco acerca dela, Dav, meu vizinho na Calle 55, é um exilado inimigo do acaso;
o nome do barco parece incompreensível aos noruegueses, graças a ter lido um romance de Galdós faço um brilharete, digo-lhes, Churruca foi o almirante espanhol que, em 1805, perdeu a batalha de Trafalgar contra Horatio Nelson, uma bala de canhão arrancou-lhe uma perna, Churruca continuou a dirigir as suas naves com o corpo metido num barril de farinha para estancar a hemorragia, esvaiu-se em sangue mas morreu de pé como um herói, eu se me visse assim dava-me um balázio, por incrível que pareça, por sua vez o almirante Nelson acabou por morrer a bordo do Victory, para evitar a corrupção o seu cadáver foi levado para Inglaterra num barril de brandy, houve um excesso de tonéis em Trafalgar, os senhores não acham?;
ninguém se ri, conversa acabada, não há mais temas de interesse comum, teria preferido jantar com gente do meu idioma ou norte-americanos, para mim é igual, falo como eles, vivo em Manhattan desde criança, o meu pai foi mais uma vítima de Porfirio Díaz, quando se deu a rebelião de 1879, mas fui o último a chegar e não me devo queixar, foi uma sorte encontrar passagem nestas condições;»
[José Emilio Pacheco, O princípio do prazer; em tradução para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro;

Papiro do dia (52)

«No Verão de 1986, acabei de escrever o meu livro The Songlines [O Canto Nómada, também editado pela Quetzal], em condições difíceis. Apanhara, na China, uma doença motivada por um fungo extremamente raro que ataca a medula dos ossos. Sabendo que ia morrer, decidi terminar esse livro quanto antes e pôr a minha vida entre as mãos dos médicos. A minha obra ficaria, assim, concluída.
O último terço do manuscrito era uma banal compilação de situações e de retratos destinados a reforçar a argumentação principal. Preparei tudo isso durante os dias caniculares, enrolado em xailes e tremendo de frio diante do fogão da cozinha. Era uma corrida contra o tempo.
The Songlines começa por uma investigação sobre o labirinto de pistas invisíveis que os Aborígenes australianos denominam "pegadas dos antepassados", ou "caminho da lei". Os Europeus conhecem-nas pelo nome de songlines, "itinerários cantados" ou "pistas dos sonhos".
Os Aborígenes acreditam que o antepassado totémico de cada espécie se cria a si mesmo na lama do seu buraco de água original. Depois, dá um passo e canta o seu nome, que constitui o verso pelo qual começa um canto. Dá um segundo passo, que é uma paráfrase do primeiro verso, e termina o dístico. Parte então para uma longa viagem, passo a passo e cantando o mundo para fazê-lo existir: as rochas, as escarpas, as dunas de areia, as árvores, etc.
Contava empregar este espantoso conceito como um trampolim a partir do qual pudesse explorar a agitação inerente ao homem, essa fundamental incapacidade de ficar no mesmo lugar.
Após o aparecimento de The Songlines recebi numerosas cartas de leitores. O correio da manhã trazia-me, por vezes, tesouros maravilhosos. Assim, por exemplo, uma leitora de Connecticut enviou-me uma fotocópia, tirada da obra de Anne Cameron, Daughters of the Copper Woman, na qual uma velha Nootka explica como os seus antepassados atravessavam os oceanos a bordo de canoas. Os Nootka, os Bela Coola, os Haida e os Kwakiutl, tribos da costa noroeste dos EUA, encontravam-se, tecnicamente, na fase da caça, da pesca e da colheita, mas o mar abundava de salmões e a floresta de animais. A abundância era tal que se tornaram sedentários, construindo grandes casas de madeira e dividindo a sua sociedade em nobres, trabalhadores e escravos.
Eis o texto da navegadora:
"Tudo o que sempre soubemos sobre os movimentos do mar foi conservado nos versos de uma canção. Durante milhares de anos íamos aonde queríamos e voltávamos sem perigo graças ao canto. Nas noites sem nuvens guiávamo-nos pelas estrelas e, em tempo de neblina, pelas correntes e os rios que desaguam em Klin Otto…"
Klin Otto é a corrente marinha que vai da Califórnia às ilhas Aleutas.
"Havia um canto para chegar à China e um outro para chegar ao Japão, um canto para a grande ilha e outro para a pequena. O canto era a única coisa que era preciso aprender para sabermos onde nos encontrávamos. E, para regressar, entoávamos o canto ao contrário…"»
[Bruce Chatwin, O Que Faço Eu Aqui; trad. José Luís Luna, Quetzal Editores, Lisboa 1996]