31 de janeiro de 2011

Breve interlúdio musical

roberto bolaño from jesus garate on Vimeo.

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

"Abro a porta e o que recebo no rosto é o calafrio do salitre. Sento-me. Ninguém ouve o badalar convicto de um relógio na cidade."

Nem sempre a lápis (127)

Tanizaki (El elogio de la sombra), Rafael Pérez Estrada (El ladrón de entardeceres), um mapa centenário da Ville de Tanger, Charles Simic (El mundo no se acaba y otros poemas), Jorge Enciso (Designs From Pré-Columbian Mexico). Não procurei, manifestaram-se por esta ordem enquanto fazia de conta que arrumava o espaço e criava ambiente para trabalhar; impôs-se outro trabalho, «a dor da solidão como angústia absoluta» (Doris Lessing), não andasse eu a ler Tavares. Flâneurs, além de encararmos o passeio como prefácio, tem-me proporcionado atitudes muito interessantes: ao consabido escorregar da leitura na cama, ler como se me sentisse de joelhos, chegar ao final de um período, de uma frase e parar; não estou a ler um autor traduzido. Enquanto desatarraxava lâmpadas flamejado fosco e as testava, a Nico resgatou dois livros de um monte de Corín Tellado, na casa de Portimão: Os Crânioclastas de João Palma-Ferreira e Secretos Raros de Artes y Oficios (tomo V. segunda edición con Real Privilegio, Madrid 1813). Desta vez, escolhi o candelabro que vou levar para a sala; qualquer dia. O mal-estar começou ainda na garagem, não pela dificuldade em lidar com o comando e a possibilidade de ficar retido por tempo indefinido; o mal-estar mostrou-se como um atril no meio do caos encaixotado e mumificado com manga de plástico. Veio-me logo à ideia o de Carlos María Dominguez, onde colocou o livro d’A Casa de Papel; aqui o atril não corre o risco de poder sujar-se com cimento, mas de ser ocupado pelo pó acumulado no cimento do chão. Chegado a casa da Nico, reparei o candelabro da cozinha com as lâmpadas recuperadas; apanhámos um susto por me ter esquecido do volume encadernado no carro, e não ter caído no percurso até casa, à chuva; depois de jantar, estiquei-me no canapé e devorei o conto do tradutor de Ulisses, publicado como gentileza da Editorial Estúdios Cor para com os seus amigos, no Natal de 1972. Quando nos deparámos com isto, especulámos sobre a forma como o livro chegou às mãos do casal de quem herdámos (mais uma) biblioteca. Embora não o tenha conhecido, imagino que a livraria Barata, a Buchholz possa ter oferecido o livro ao Ernesto; advogado e adito de literatura e de gravura, acolitado pela Cé, prima da Nico. E continuando a recorrer ao que a memória dela me emprestou, levantei-me e mostrei-lhe o casino que Palma-Ferreira descreve entre o final da página 13 e o início da 14: «Ou é um café muito pobre a que se chama casino há falta de outro nome.» Entre Ferragudo e Armação de Pêra, era um passeio; não sei se Lima de Freitas já ou ainda tinha a olaria ali em cima na curva, à esquerda de quem vai para Lagoa.

«É bom trabalhar nas Obras» (66)

«Como na realidade a minha História geral do vazio, no fundo, ia ser muito breve, aqui mesmo a dou por terminada. Vencido pela preguiça. Além disso, fui sempre volúvel, frívolo e disperso. Espero que se diga que essa História geral do vazio não passou de uma tentativa de, na realidade, nunca a escrever, e que fique como mais um vazio dentro da história geral do vazio, a mais oca de todas as histórias. Prefiro isto a que se ocupem de mim e me digam a verdade, digam que às vezes existo sem identidade e estou sempre ausente do lugar donde falo, e tudo o que se costuma dizer quando julgam que realmente há algo para dizer.
Prefiro limitar-me a ser uma personagem de Pierre Gould. Ou melhor dizendo, fazer-me passar pelo Pierre Gould actual, pelo herói – talvez o duplo – de Bernard Quiriny. No fundo, isso acabará por me ser mais estimulante do que escrever uma História geral do vazio e passar o tempo todo a lutar com a primeira frase. Fazer-me passar por Pierre Gould, o descendente do matemático de Tubinga, e um dias destes ir visitar Bernard Quiriny para lhe perguntar porque é que conta tantas histórias sobre mim.
Ou ainda melhor: não me fazer passar mas ser directamente Pierre Gould e ao mesmo tempo perguntar a Quiriny pelo seu segundo livro e averiguar se é verdade, como me disseram, que ele tem todo o aspecto de ser o Catálogo de ausentes que ando a escrever mentalmente, há já uns anos. Este segundo livro de Quiriny é realmente um catálogo de ausentes? Dito de outra forma, será que esse livro é de Pierre Gould, será que esse livro não é meu? Reclamo a sua autoria.»
[Do prefácio de Vila-Matas, in Contos Carnívoros, Bernard Quiriny; Ahab, muito em breve]

28 de janeiro de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

onde e como irá estragar a tarde ou a noite,
desconheço e tenho pena

Às vezes, lá calha...

«O céu que recebo no rosto, ao despertar, é cinza de Atlântico, mais frio ainda pelo pingar monótono de alguma torneira mal fechada. Um rio de noite em madrugada de sono.»

«É bom trabalhar nas Obras» (65)

«Escrevo tudo isto neste pequeno apartamento de paredes brancas, sem livros. Simpatizo muito com paredes vazias. Se um dia tivesse de decorar uma das desta casa, pendurava um quadro que reproduzisse a esfinge dos gelos que Gordon Pym julgou ver no fim do mundo. Mas nunca irei pendurar nada. Necessito, sobretudo, de escrever com uma parede nua nas minhas costas, pois parece-me, sem dúvida, o ambiente mais adequado para trabalhar num Catálogo de ausentes. Ou acaso não seria ridículo que houvesse cores no meu apartamento? Agradam-me estas paredes brancas e agrada-me o frio. Na realidade, o frio fascina-me de tal maneira que cheguei a pensar que diz a verdade sobre a essência da vida. Detesto o Verão, o suor das sogras esparramadas pelas areias do circo das praias, o farnel ao sol, os lenços para o suor. Parece-me que o frio é muito elegante e que se ri de uma maneira infinitamente séria. E o resto é silêncio, vulgaridade, fedor e gordura de barraca de praia. Fascinam-me os flocos suspensos no ar. Amo as quedas de neve, a luz espectral da chuva, a geometria acidental da brancura das paredes desta casa.
Gosto de pensar no palpitar da água debaixo de gelo.
Aborreço-me bastante, pelo menos tanto como a minha mãe.
Conforta-me saber que ainda não é demasiado tarde para vir a ter grandeza de carácter.
Gostava de sair e de fumar um cigarro de gelo.
Às vezes, faço-me passar por Pierre Gould, pelo historiador do aborrecimento, mas às vezes também pelo seu descendente, aquele que também se chama Pierre Gould e aparece nos contos de Bernard Quiriny.
Em todo o caso, agrada-me saber-me diferente. A capacidade de alegria atrofia quando queremos ser iguais aos outros.»
[Do prefácio de Vila-Matas, in Contos Carnívoros, Bernard Quiriny; AHAB, muito em breve]

Papiro do dia (29)

«No Inverno mal se percebe a fina película. A humidade petrificou-a. Mas com o tempo seco recomeça a cobrir os campos. É quase indelével. Penetra as narinas e dificulta a respiração. As pessoas sorvem o ar quando o Setembro destroça o estio; chegam os indícios da chuva. Depois, em Outubro, a tormenta arrasta o vento. Vem das montanhas. De novo se ergue o pó, em ondas de cinza, e alastra pela campina. É triste o final de Outubro. O tempo paralisa-se sob as investidas da poeira e morre na agonia da pedra.
É uma tarde no fim de Setembro. Talvez já se pressinta a libertação da chuva. Ou é um café muito pobre a que se chama casino à falta de outro nome. A sala é espaçosa. No fundo há um piano e as porcelanas azuis repousam no alçado negro. O soalho estala, ressequido pelo Verão que deve ter sido longo. A areia, nas junções das pranchas, range como vidro esmagado. Os homens conversam num recanto da sala e mostram, nos gestos, o alívio da liberdade. Estão alheios e já ninguém lhes poderá disputar o Inverno. O sol rompe no mar e o casino recebe, na proa, o areal da praia.
Ao esclarecer este ponto, revê, ou repete, o movimento de quem entra e, rodando o interruptor, acende a luz nas salas. A claridade só dura rápidos segundos. É o tempo para que os objectos se revelem nitidamente: as mesas e o pano branco que cobre os móveis e os cadeirões. A lareira. Ainda negro, o rectângulo da janela. É uma manhão de chuva, afinal. Os jornalistas distraem-se nos julgamentos políticos. A cidade já tem a sua conta.
Eu estu ao centro, à mesa de saia, sob o influxo dos raios de luz. O trigo pesado ondula ao sabor do vento no campo que deve existir ao nível da clarabóia. Os ceifeiros cantam e sinto-lhes os passos, os movimentos bruscos das mãos que manejam foices. A forma como descansam ou comem, sob o sol de Verão que baixa até nós na frieza do Inverno. Sei que é dia, além, a muitos metros de viagem. Pelo lado de fora não há gelo, garante-me, olhando-me como se fosse possível conversar. Não posso descobrir o que ocorre, se ele lê ou apenas folheia um livro.»
[João Palma-Ferreira, Os Crânioclastas (desenhos de Catherine Labey); este Livro exclusivamente reservado aos amigos da Editorial Estúdios Cor, foi composto e impresso na Tipografia Peres, em Lisboa, no Natal de 1972]

26 de janeiro de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

bem hajam

Às vezes, lá calha...

«As cores puras e saturadas são essencialmente caracterizadas por uma claridade relativa. O amarelo, por exemplo, é mais claro que o vermelho. Será o vermelho mais claro que o azul? Não sei.»

Nem sempre a lápis (126)

Talvez por ter trazido Anotações Sobre As Cores, vi O Livro Azul no blogue da Trama e reservei-o para ler lá em baixo; intercalar com a aprendizagem de Tavares e a revisão de Casavella. Cinco anos separam os dois exemplares das Edições 70; Dezembro de 1987, Fevereiro de 1992. O estabelecimento já tem cadeira, mas ainda não tem café nem um sofá. O espaço é pequeno para fazer sala; maior é a área da minha sala, vazia. Abstencionista, tudo leva a crer que elegi Wittgenstein como companheiro de viagem entre a minha casa e a da Nico. A Catarina respondeu que o livro era em segunda mão, tendo o cuidado de salientar que estava sublinhado; como e quanto, ainda estava para ver, por nove euros. Segunda mão, em princípio, significa múltiplas e (in)frutíferas leituras; sublinhar um livro com curriculum, já me parece mania, caso de polícia. Privei-me de ir a Lisboa e amanhã rumar a Sul como deve ser – descendo nas Amoreiras e pelo respectivo jardim –, porque entrei no autocarro com a última viagem do módulo fora de validade, mas actualizável no Marquês; em andamento, suburbano, até ao Rato. Entretanto, a cronista Lourdes Féria respondeu a uma sms a dizer que sim, que andava à solta pelo Chiado, já eu tinha a consulta literária confirmada no café habitual com a Salamandrine, a miúda da boina, para me entregar o resultado impresso do meu livro de actas do ano passado; O Cheiro dos Livros, tomo II. O Livro Azul na mão, mas não refeito de ver (ao tacto) o cuidado com que sublinharam treze linhas da página 59, a esferográfica e com uma régua. Imaginei-a de plástico, marcador mordido pelo uso; na precisão irregular, linha a linha. Desci até à Rua do Diário de Notícias sem me deter, ou deter-me a procurar onde ficava a do Norte, com a memória urbana perturbada pelo culto que se abateu sobre o comércio. Era mais ou menos a hora da transição entre o cão e o lobo; sereias a tentarem a atenção do menino com a perspectiva de um bolinho da avó, meu lindo, escamadas com as botas e os saltos e os ténis dos primeiros figurantes para a sessão de quinta à noite no bêá; não fazem matinés. E entrei na Tease; sentámo-nos à mesa da janela que foi montra, nos sofás em segunda mão, sublinho. Era minha intenção desafiar a cronista para uma meditação na pastelaria, para um ménage à trois social com a jornalista. Pagavam elas, claro, e eu levava a pedra de amolar para afiarmos a língua; mas não deu, o sublinhado murchou-me o dia. Em todo o caso, fiquei a saber que as presidenciais são (foram-se) no domingo. Sorri com a preocupação; a haver necessidade de referência de esquerda, para mim, é o Vitor Silva Tavares. Tudo o resto, são comícios, correntes humanas, vendedores de cobertores e de literatura, seitas. No lento regresso a casa, as ruas de Lisboa pareceram-me corredores de ortopedia; em mousse, em lycra, em couro, em vinyl, diagnosticadas a olhos vistos.
[cupcake]

Papiro do dia (28)

«Até um velho, analfabeto, com pouca força de braços, e incapaz de dizer uma única frase sensata, até um homem desses, um homem secundário, conseguia controlar aquele jardim, aquela outra máquina, aquela máquina verde.
Mas Frederich alertara desde cedo os filhos para o outro momento da natureza, o momento em que a natureza se torna guerreira – “só aí vale a pena tirar fotografias”, dizia. Nesses momentos – numa tempestade, por exemplo – em que as mudanças rápidas substituem a mudança lenta, vem à superfície a incompatibilidade moral, utilize-se esta palavra, entre o sistema dos homens e o sistema da natureza. No limite: o que era crime de um lado não era crime do outro.
E por isso, defendia Frederich, é que a natureza com que se convivia nos dias comuns, nos “dias fracos”, enganava.
E o engano era este: num dia de sol, pacífico, abria-se a janela e olhava-se para o que lá fora não fora feito pela inteligência do homem com a benevolência com que se olha para um conjunto de quadros dispostos nas paredes de um museu. O erro, precisamente, era ver a natureza semelhante a um museu que cresce. Museu cujas peças mudam de posição de modo quase imperceptível, parecendo fruto da timidez ou simplesmente da fraqueza desses elementos. Nos dias em que o que não era humano podia ser retalhado em pedaços, copiando a divisão de uma máquina nas suas partes, nesses dias, nos quais o homem poderia orgulhar-se de limpar os sapatos ao mundo que existira antes de si, a natureza era realmente um museu.»
[Gonçalo M. Tavares, Aprender a rezar na Era da Técnica; Caminho, Outubro 2007;

24 de janeiro de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«É bom trabalhar nas Obras» (64)

Começa assim:
«Não se vão acreditar, vão dizer que sou tonto, mas quando era criança os meus sonhos eram voar, tornar-me invisível e ver filmes em minha casa. Diziam-me: espera que chegue a televisão, vai ser como teres um cinema no teu quarto. Agora já sou adulto e rio-me de tudo isso. Claro, há televisões em toda a parte e sei que ninguém consegue voar, a menos que entre num avião. A fórmula da invisibilidade ainda não foi descoberta.
Lembro-me da primeira vez. Instalaram um aparelho em Regalos Nieto, e na esquina da avenida Juárez com a San Juan de Letrán havia tumultos para ver as figurinhas. Só passavam documentários: cães de caça, esquiadores, praias do Havai, ursos polares, aviões supersónicos.
Mas, a quem me dirijo eu? É suposto que ninguém venha a ler este diário. No Natal ofereceram-me o bloco e não quis pôr nada nas suas páginas. Escrever um diário parece-me coisa de mulheres. Fiz troça da minha irmã porque anota muitas parvoíces no dela: “Querido diário, hoje foi um dia tristíssimo, esperei pelo telefonema do Gabriel em vão”; coisas do género. Daqui aos sobrescritos perfumados, vai um passo. O que os meus colegas de escola não se iriam rir se soubessem que também ando metido nestas mariquices.
O professor Castañeda recomendou-nos que escrevêssemos um diário. Segundo ele, ensina a pensar. Ao redigi-los, arrumamos as coisas. Com o tempo, torna-se interessante ver como éramos, o que fazíamos, qual era a nossa opinião, como mudámos. Por falar nisso, Castañeda deu um dez à minha redacção sobre a árvore e publicou os versos que escrevi para o dia da mãe na revista do liceu. Em ditados e redacções ninguém me ganha; dou erros, mas tenho melhor ortografia e pontuação do que os outros. Também sou bom a história, a inglês e a civismo. Em contrapartida, sou uma besta a física, a química, a matemática e a desenho. Na minha sala não há mais nenhum que tenha lido El tesoro de la juventude quase todo, nem Emilio Salgari todo e muitos romances de Alexandre Dumas e Júlio Verne. Adoro livros, mas o professor de ginástica disse-nos que ler muito enfraquece a vontade. Ninguém entende os professores, um diz uma coisa e o outro, o contrário.
Escrever tem o seu encanto: espanta-me ver como as letras se unem e formam palavras e saem coisas que não pensávamos dizer. Além disso, o que não se escreve, esquece-se: desafio quem quer que seja a dizer-me, dia a dia, o que fez o ano passado. A partir de agora, proponho-me contar o que me acontecer.
Vou esconder este caderno. Se alguém o lesse, eu iria ficar muito envergonhado.»
[José Emilio Pacheco, O Princípio do Prazer; em tradução para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro;

Papiro do dia (27)

«Não havia neste choro o mínimo de falsidade. A mulher de Lenz era sincera, mão havia qualquer interferência da intenção. O que existia era, sim, a manifestação de uma eficácia impressionante por parte daquele mecanismo a que chamamos enterro. Cada pessoa que chorava, e algumas tinham sido vistas a baixar a cabeça, chorava não pelo morto mas pelo ruído que as rodas daquele mecanismo libertavam. Havia, tanto nas palavras religiosas quanto nos gestos quase universais dos soldados a baixarem o caixão em direcção à terra, a fixação num ponto que era comum e não já individual. Esse ponto que unia a comunidade dos presentes era a sensação de que cada um deles poderia, no dia seguinte, ser o morto que os outros homens respeitam. Chorava-se em conjunto pelo fracasso da cidade: ainda não se encontrara antídoto para aquele ruído que parecia ser libertado em cada enterro. Cada homem reivindicava que a morte – e o seu sistema de funcionamento – terminasse antes de chegar a si. E em cada funeral a despedida do morto era também o relembrar de um fracasso comum, de um fracasso, inclusive, da mais alta referência dos humanos: a sua cultura, a sua forma de raciocinar que construíra um novo mundo e que quase tornara o perigo, em tempo de paz, uma energia não normal, extraordinária mesmo. De facto, nas cidades sem guerra, o perigo tornara-se raro, mas a morte, essa, continuava abundante; parecia impossível ao homem dominar o seu preço: este continuava baixo, acessível, igual ao de qualquer produto insignificante. A morte, cada morte individual, manifestava o fracasso económico, técnico e cultural das cidades.»
[Gonçalo M. Tavares, Aprender a rezar na Era da Técnica; Caminho, Outubro 2007;

22 de janeiro de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Nem sempre a lápis (125)

Para que conste (e se compreenda, e se dê o desconto), a minha cabeça encontra-se num estado francamente invejável. Ando a ler Gonçalo M. Tavares (Papiro do dia), comecei a traduzir os contos de José Emilio Pacheco (É bom trabalhar nas Obras) e um prefácio de Vila-Matas (Às vezes, lá calha…), continuo a folhear blogues (Porque a Net fornece um novo dia) e, como se não bastasse, tenho o desplante de anotar estas coisas (Nem sempre a lápis) num caderno emagrecido a duas folhas; apontamentos de Tânger.

Papiro do dia (26)

«O Dr. Lenz, cirurgião importante da cidade, homem possuidor absoluto dos seus prazeres privados, apreciador de pequenas humilhações a prostitutas, e que ganhara o hábito recente de receber em casa um vagabundo, de lhe oferecer esmolas chorudas, de lhe dar pão e comida, e acima de tudo, de o humilhar, de atrasar a esmola, a comida, de saborear o prazer de estar na parte forte e de ter dois olhos sãos e claros para ver o que a claridade do mundo mostrava: a rudeza desse mesmo mundo, a violência e a indiferença entre quem tem saúde e quem não a tem, quem tem dinheiro e quem não o tem, quem é velho e quem não o é, quem é feio ou deficiente e quem não o é, quem tem marcas de acidente no rosto, queimaduras, cortes que desfiguram a beleza média e quem, pelo contrário, não tem nada que manche o seu orgulho, o seu orgulho exterior, físico, a única moeda comum a todos os séculos, a todos os países, a todas as línguas. Era isto que os olhos sãos e claros de Lenz viam, era isto que a claridade do mundo lhe mostrava.»
[Gonçalo M. Tavares, Aprender a rezar na Era da Técnica; Caminho, Outubro 2007;

20 de janeiro de 2011

Breve interlúdio musical

desviei-lhe a (.)(.)na cá cuma pinta

Porque a Net fornece um novo dia

(Travessa da Galé, 36, Alcântara, Lisboa – junto da antiga FIL)

Às vezes, lá calha...

Nem sempre a lápis (124)

Insinuando-se, sorrateira, o Algarve passou a significar condução, depois da viagem; eu gosto é de viajar. Quando o destino deixou de ser a «casa de ninguém», com o tejadilho do carro a servir de tabuleiro para as cagadas das gaivotas e outros voláteis – praia e mercado a dois passos, lentos –, passei anos a ir a Portimão duas vezes por dia; pelo menos. Entretanto, como não é de ninguém, a utilização da casa de Armação delegou a manutenção no que viesse a seguir, que, por sua vez, a delegava no seguinte, e assim sucessivamente, até ao abandono por inabitável. Previ-lhe sempre a sorte de ser um segundo andar, para agonizar a meio do prédio, onde será encontrada sozinha no chão do desmazelo; com o carro à porta. Quando o Herberto pergunta, «E o que é o Outono?», não há meio de se convencerem de que a poesia não é uma estação do ano; e eu vou estender a roupa, antes que chova.

Papiro do dia (25)

«No dia seguinte, quando olhou para a carta, ainda no mesmo sítio, embora já ligeiramente mexida – uns milímetros talvez mais para dentro do armário –, fixou-a de uma maneira completamente diferente. Agora, Lenz não estava desatento, não estava embrenhado em quaisquer raciocínios interiores ou desviado para preocupações futuras. Lenz olhou para a carta, viu-a com nitidez e pensou nela.
O que queria aquela mulher? Por que o tinha escolhido a ele para levar a carta ao correio?
Ele era médico. Saberia essa mulher que nos afazeres e nos deveres mais extensos de um médico não estaria certamente a função de carteiro? Quem se considerava ela? Os moribundos exigiam tudo dos outros, parecendo novos reis, uma espécie de monarquia intempestiva instalada não pela força absoluta, espada ou genes, mas pela qualidade oposta: a fraqueza. Os actos de compaixão não poderiam instalar monarquias ou novos reinos, pensava Lenz, senão a cidade em pouco tempo seria devorada. A natureza está à espera, lá fora, mas mantém exactamente a mesma força: recuou, é certo, mas não está sequer prisioneira. Está num outro sítio, num outro ponto da batalha, e afia as lâminas; não reza, não suplica, não pede piedade.
Não reza, afia as lâminas.»
[Gonçalo M. Tavares, Aprender a rezar na Era da Técnica; Caminho, Outubro 2007;

19 de janeiro de 2011

18 de janeiro de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

«Empecé a escribir un diario a fines de 1957 y todavía lo sigo escribiendo. Muchas cosas cambiaron desde entonces, pero me mantengo fiel a esa manía.»

Às vezes, lá calha...

Nunca me tinha acontecido uma destas; dar por mim a ler como se estivesse de joelhos, a aprender a rezar na era da técnica.

Nem sempre a lápis (123)

Nunca gostei de paredes esmurradas; cor hipnótica ou paredes velhas, legíveis. Também nunca me senti impelido a escrever nem a pintar na parede, daí o assombro que conservo por ver uma camioneta-de-carreira, e não um autocarro, desenhada a lápis na cal do antigo hospital, visível entre os escombros do incêndio, onde pereceu o artista sem-abrigo local. O Bruces, corruptela do nome do legionário francês exilado em Mortágua, como mestre de palavrões, às escondidas consentidas dos pais. É possível que esta (entre outras) paranóia, fobia, a tenha herdado da senhora minha mãe; honra-me a possibilidade de estar «escrita» nas paredes do destino. Conhecedor da necessidade de conviver com as duas paredes, sobreponho-as, penduro quadros, camisas; esqueço a inutilidade do prego na parede de cor plana, reconforta-me o carácter provisório. É curioso que a camisa que ali pendurei seja a mesma que comprei na feira de Pataias, animado pela ideia de a utilizar em Marrocos, à boleia, quando fiz cinquenta anos. Acabei por nunca a levar nem fazer Marrocos à boleia, recorrendo a ela para fazer a capa de Longe do Mundo, à boleia na então chamada «casa de Armação». Gosto de vê-la regressada à casa donde saiu, para pendurá-la no prego que encontrámos; itinerância.

«É bom trabalhar nas Obras» (63)

«- Posso perguntar-te uma coisa? Preciso de esclarecer umas quantas coisas. – Tinhas deixado o calendário no seu lugar, levantavas o olhar mostrando-te impávido e em defesa dos teus interesses.
Ela deu-lhe as respostas com uma gentileza comercial, distante, de relações públicas. Nunca tinha conhecido nenhum gordo com bigode que se chamasse Orozco; na realidade, durante o tempo em que Carlos tinha vivido com ela, manteve-se afastado de certos assuntos. Jogava, sim, mas por conta dele e os seus desaparecimentos eram muito breves (assim mentia a relações públicas, deste modo subtil reformulava alguns parágrafos das suas memórias). Desde logo, nunca lhe teria deixado trazer para casa nenhum daqueles seres carregados de sujidade que nos observam com o queixo baixo só para calcular a tua coragem, o dinheiro que a tua frequência acabará por lhes levar às mesas de jogo; defesas que Silvia esgrimia com mais audácia do que astúcia e não tinham em conta as vidas paralelas de Carlos, aquela simultaneidade, porque não a tinha querido suportar ou não tinha sabido ou o que fosse… Sem parar de fumar, insistia que, como o próprio Ignacio podia confirmar, ela não era a testa de ferro de ninguém; o dono da discoteca era um respeitável advogado, um amigo seu desde sempre. Continuou a suspirar até que chegou a hora de olhar para o relógio. «Temos de continuar a ver-nos.» E os dois tinham a certeza de que aquela era a última vez; a vergonha obrigava-os a isso. Beijaste-lhe as faces apressadamente e olhaste-a querendo dizer-lhe (continuaste a falar com o seu espectro a subir as escadas, naquela praça tétrica, a caminho de tua casa, entre ruas idênticas): obrigado por não me contares o que pode ter sido, obrigado por continuares a ser uma puta de ti mesmo e deixares-me sozinho com o meu ridículo, com a minha desespero de fantoche burlado. Já muito perto de casa dela, meteu-te dó tanto dramatismo.»
[Francisco Casavella, Um Anão Espanhol Suicida-se em Las Vegas; em tradução para a Minotauro]

16 de janeiro de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

A literatura ensina a apreciar [esplanada]

Às vezes, lá calha...

Meus amigos, tenho o prazer de vos apresentar

Nem sempre a lápis (122)

Quando se lembram de chamar qualquer coisa à minha escrita – quanto a mim, acho-a apenas irrequieta –, por tão depressa desatar a correr atrás das palavras, numa ânsia inventariante, para logo a seguir se deter, contemplativa e delíriolírica, em meia dúzia de linhas – ocorre-me, mas não digo –, ocorre-me arrumar o assunto e explicar que são os meus heterónimos. Bem vistas as coisas, o Pessoa e eu só temos dois dias de diferença. Ele, nasceu a 13 de Junho e eu, a 15; o ano não interessa, parece mal.

«É bom trabalhar nas Obras» (62)

«E foi durante as primeiras horas daquele anoitecer, ao dar-me conta de que já não podia ter acesso à cerimónia das estirpes que viviam sob o mesmo céu de inocência, quando comecei a ser outro.
Primeiro, tinha compreendido que os representantes daquelas estirpes não olhavam para mim, porque eu estava do outro lado das recordações, dos que tinham as costas pesadas de remorsos; e a carga estava tão bem grudada como a bossa dos camelos. Depois, compreendi que os dois lados das recordações eram como os dois lados do meu corpo: apoiava-me num ou noutro, mudava de posição como quem não consegue dormir e não sabe sobre qual dos dois iria cair a benesse do sono. Mas antes de dormir, estava por conta das recordações como um espectador obrigado a presenciar o trabalho de duas companhias com particularidades muito distintas e sem saber que cenário e que recordações se iriam iluminar primeiro, como seria a sua alternância e as relações que teriam os que actuavam, pois as companhias tinham uma sala e um empresário comum, participava quase sempre um mesmo autor e actuavam sempre uma criança e um homem.»
[Felisberto Hernández, Contos Reunidos; lá para Março na Col. Ovelha Negra / Oficina do Livro;

14 de janeiro de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«... algumas pessoas têm direito a um certo cinema. Ver a sequência do filme que se desenrola no interior da própria cabeça. É quase um divertimento, igual a qualquer outro. Mas claro que este divertimento acaba mal. Sabe uma coisa: vou buscar-lhe comida. Quer dinheiro?»

«É bom trabalhar nas Obras» (61)

- É melhor esperarmos na rua. E olhar. Às vezes, há surpresas agradáveis.
Não as houve a noite toda, mas Ignacio já não estava ali. Tinha-se ido embora. Estava a recordar o «agora» porque já tinha viajado, e tinha deixado de ser ele e voltava sobre os seus passos. Não havia perigo, só recordação. Desfiles de carros com os copos, cheios de música, fanfarronice estudantil, incentivo rasca, por entre uma pétrea disposição cubista de blocos com olhos que se iam apagando, claridades de lua artificiais ao longo das ruas, sincronização de semáforos. O tempo e o espaço, um salto em frente, outro para trás, tinham-se convertido numa brincadeira, um complicado laço que não enlaçava nada excepto a sua própria abstracção. Ignacio era um olho que via, umas pernas que acompanhavam uma cabeça que pensava nas suas coisas e a quem era indiferente esperar em qualquer sítio. E ainda lhe restava capacidade para pensar o que teria sido da perseverança do seu irmão (os seus sistemas infalíveis, os seus percursos, uma lógica íntima) canalizada por outros rumos. Caminharam a noite toda. Caminharam e fumaram, quase sem falar. Sentavam-se nos bancos donde se vislumbrava uma persiana metálica meia fechada e, atrás dela, uma luz e movimentos fugazes. Carlos observava. Ignacio, que não entendia, recordava na sua esfera de tempos simultâneos. E recordava a última noite que passou com Vicky, festas e lutas e aquele corpo e aquelas palavras que se tornaram um hábito e, agora, alguns meses depois, não eram nada. E só podia recordar antes que o seu único irmão dissesse «anda, vamos» como, através da vidraça, nos relvados que tinha imaginado saturados do cheiro a relva acabada de cortar, embranquecidos pela luz, tinha visto dois homens, quase iguais e muito diferentes, que não pareciam estar ali e de repente se tinham posto a rir. Tinha-lhe parecido uma cena absurda.
- Vamos onde está a massa.»
[Francisco Casavella, Um Anão Espanhol Suicida-se em Las Vegas; em tradução para a Minotauro]

Papiro do dia (24)

«Havia, sem dúvida, a sensação de luta por um espaço. O património material, e também o nome de família, era motivo de uma repulsa que apenas era capaz de adiar um conflito explícito. Quem tinha mais direito de usar o nome da família? Eis a questão mais relevante. Porque aqui não havia a possibilidade de divisão: um nome não era um terreno, que uma régua mais ou menos bem intencionada possa dividir, mantendo dois lados minimamente satisfeitos. Um nome não se pode dividir.»
[Gonçalo M. Tavares, Aprender a rezar na Era da Técnica, Caminho, Outubro 2007]

12 de janeiro de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

Nem sempre a lápis (121)

Chego a casa e ponho-me à vontade; arrumo a prótese, calço as babuchas, olho para o saco com vinte e três livros que trouxe; dois ou três idos daqui. Como não deu para ir ao peixe ao mercado e fazer uma fritada com arroz de tomate, quase trezentos quilómetros depois, tenho uma sopa de nabiça ao lume, para o jantar. Sou um gajo solitário; prezo muito, e cultivo ainda mais, a minha secreta solidão. À minha esquerda, Alcácer refulgia ao Sol; do outro lado, só retalhos de verde conseguiam iluminar o céu plúmbeo da margem sul.
«No canto superior direito, / o índice dos teus dedos, / a tua sombra em tantas páginas.» (Margarida Ferra)

Papiro do dia (23)

«Só de olhos fechados compreendíamos a escuridão dos olhos
o comprimento azulado dos homens que partiam
fabricantes de janelas de tecidos de ruas
com cheiro de peixes vivos.
Era um linguajar mitológico: cada fonema solar
glorificando a cegueira uma morte igual à morte –
os autos das barcas que naquela tarde.

Avistei a boca ao entardecer.

A língua não vinha nos mapas, mas no palato agrupavam-se diversas constelações

e pertencia-lhe a aventura dos meus dedos.

Não havia notícias de outros povos

nem sequer uma mácula de cerejas.

Plantei o primeiro seio

a que chamámos macieira

e abandonei o ventre

à generosidade vegetal.

Nessa noite dormimos por dentro e por fora

do mundo.»

[Catarina Nunes de Almeida, A Metamorfose das Plantas dos Pés, Deriva, Porto, Maio 2008]

10 de janeiro de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia...

«La pureza de los seres imaginarios, creados a partir de la memoria identitaria de la tierra por medio del copal quedaría en breves instantes reducida a cenizas si empleásemos el ocote. Creación y desaparición, es la esencia misma del lenguaje, la entrada a la caverna literaria.»

Às vezes, lá calha...

«Sentimos nostalgia de uma linguagem mais primitiva do que a nossa. Os antepassados falam de uma época em que as palavras se estendiam com a serenidade da planície.»
[saído daqui, para ali]

Nem sempre a lápis (120)

Venham dias de Sol – chuva já basta e é de sequeiro – que, lá mais para o fim do mês, gostava de vir cá abaixo ver brotar os rebentos da figueira sem necessidade de me deslocar, desatento, à Avenida da República; deixemo-la sossegada. Em Carnaxide não há figueiras, que eu saiba. Sorte que não calhou ao limoeiro, o sossego; o crescimento pô-lo em conflito com toda a espécie de fios que (para mim) têm o condão de electrocutar o olhar, a mais simples e despretensiosa fotografia; para mais tarde, confirmar. Não faço a menor ideia onde possa estar a foto que tirei à majestosa árvore na pequena colina em frente, e que achei por bem chamar castanheiro. Era o tempo em que ainda precisava da revelação no papel – e, neste caso, a cores –, onde tive a oportunidade de ver o que para trás ficou escrito.

Papiro do dia (22)

«Todos os anos ofereço pelo menos cinquenta exemplares aos meus alunos, mas não consigo deixar de acrescentar uma nova estante, outra fila dupla; os livros avançam pela casa, silenciosos, inocentes. Não consigo detê-los.
Amiúde é mais difícil desfazermo-nos de um livro do que obtê-lo. Ligam-se a nós num pacto de necessidade e de esquecimento, como se fossem testemunhas de um momento das nossas vidas ao qual não regressaremos. Mas enquanto aí permanecerem, presumimos tê-los juntado. Vi que muita gente coloca a data, o dia, o mês e o ano da leitura; traçam um discreto calendário. Outros escrevem o seu nome na primeira página, antes de os emprestarem, anotam numa agenda o destinatário e acrescentam-lhe a data. Vi volumes carimbados como os das bibliotecas públicas ou com um delicado cartão do proprietário no seu interior. Ninguém quer extraviar um livro. Preferimos perder um anel, um relógio, o chapéu-de-chuva, do que o livro cujas páginas não mais leremos mas que conservam, na sonoridade do seu título, uma antiga e talvez perdida emoção.»
[Carlos María Domínguez, A Casa de Papel; trad. Henrique Tavares e Castro, ASA, (2.ª ed.) Maio 2010;

9 de janeiro de 2011

9 de Janeiro de 1955

esta é a cabra que corre na superfície do sonho
– ligeira, marítima –
o arco que lança o Vento,
um corno em cada olho,
porque não cabes nos horóscopos das minhas mãos,
os cascos batem-me com alegria no peito,
no tropel ígneo do olhar –
tu és a cabra, a terra para as aves virem beber

8 de janeiro de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Entre ele, Lenz, e a peça de caça, ainda viva, havia uma negociação prévia: ele recusava-se a matar um único animal nos primeiros minutos. Havia a exigência de habituação, um respeito em relação a um espaço que se invade. Aquela não era a sua casa.»

Nem sempre a lápis (119)

Passei uns dias no Monte Alto, em casa da Nico, sem nostalgias nem mágoas; é outra casa, a Sul, em Asilah também chove. Escrevo à mesa que mandei fazer para o atelier, ainda convicto de que acertaria uma, entre tantas aldrabices feitas durante as obras; mas até o desenho foi desrespeitado e as pranchas casadas do tampo substituídas pela fiabilidade do pinho colado, informaram-me com a criança nos braços e a factura na mão. Durante os cinco anos que o ocupei, soube sempre como este espaço, tão desejado e ponderado, nunca conseguiu ser intérprete do que procurava e persigo. Viria a encontrá-lo na casa onde vivo, no meu retiro, e no Pátio de La Luna, em Asilah, o ano passado. Quando cheguei três anos depois, fui recebido pela azáfama das limpezas de uma casa de campo ao fim-de-semana e, um pouco mais tarde e sem o esperar, pela elegância e a imponência de brincar do moliceiro, no parapeito da janela. A mesa, esta mesa, estava ocupada com livros retirados de caixotes que acabei por não levar e poucos irei levar. Apercebi-me de que, assim como repeti livros desde que voltei a viver em Carnaxide, não estou para repetir os que (ainda) não encontrei e fico mais descansado sabendo que estão aqui, os que trouxe. Olho lá para fora, bem me apetecia ler Ruy Duarte de Carvalho, procurar pastores banidos pelos muros dos novos proprietários do que era campo de pasto para o olhar. Acendo a salamandra, sentado num sofá que era de Carnaxide; olho para os quadros, meus e de outros, para a velha cadeira de tabua ocupada pelo casal que resta da matilha, para os livros nas prateleiras, olho para a cor com que a Nico iluminou um espaço sombrio por onde passei e sinto-me bem. É diferente; vai saber melhor chegar a casa.

Papiro do dia (21)

«Meti-o dentro do envelope, guardei-o na minha pasta e limpei o pó da secretária com o cuidado de um ladrão.
Poisei o livro no atril de uma mesa do meu gabinete e confesso que, durante algumas noites, olhei para ele com intrigada ansiedade. Talvez porque o aspirador de Alice não deixava uma grama de pó nas estantes mais altas da minha biblioteca, quanto mais na carpete ou em qualquer das mesas, o exemplar desequilibrava o quarto como um vagabundo numa festa do palácio imperial. A edição pertencia à Emecé, de Buenos Aires, e fora impressa em Novembro de 1946. Com algum trabalho pude averiguar que fazia parte da colecção «A Porta de Marfim», dirigida por Borges e Bioy Casares. Sob a cal ou o cimento ainda se podia entrever o desenho de um barco e daquilo que pareciam ser uns peixes, embora não tivesse a certeza.
Nos dias seguintes, Alice pôs uma flanela debaixo do atril para evitar que o pó sujasse o vidro e mudava-a de manhã com aquela muda discrição que, desde o seu primeiro dia de trabalho, tinha conquistado a minha inteira confiança.»
[Carlos María Domínguez, A Casa de Papel; trad. Henrique Tavares e Castro, ASA, (2.ª ed.) Maio 2010]

6 de janeiro de 2011