31 de maio de 2010

Breve interlúdio musical

À mão de ler (33)

«Fui profeta da sabedoria e da verdade. Possuía as chaves da cidade. Senhor dos mares e dos pescadores. Hoje sou um cemitério de terracota. O mais belo cemitério onde vem desenvolver-se a loucura, onde dormem homens loucos de bondade, doentes por amor, doentes de razão.
Tive de me enrolar
com minhas muralhas numa bruma de Verão
sudário vermelho ou branco
para nunca acolher
camelos cegos
nascidos
de um estranho naufrágio
para recordar
minha origem vagabunda
eu sou a inércia criminosa e o exílio dos cães
tenho a amizade dos gatos e dos pobres
todas as minhas esposas me foram infiéis
soçobraram numa insacável loucura
das imagens e não das almas
eles dizem que estou doido
mas o que estou é sozinho
um pouco triste
escutai-me
vou contar-vos tudo...
eu tinha-lhe dado uma cabra...
não
não estou doido
se me deres um cigarro eu continuo a história...»
[Tahar Ben Jelloun, Arzila - Estações de Espuma; tradução de Al Berto e ilustrações de Luís Manuel Gaspar, Hiena Editora, Maio 1987]

Nem sempre a lápis (37)

O passaporte caduca dia 1 de Julho; desconheço se o termo se situa no final do mês anterior ou a partir das vinte e quatro horas do início do mês seguinte. Lido muito mal com a linguagem burocrática, nas suas mais labirínticas extensões; inexpressivas. Não posso ficar de braços cruzados a assistir à conclusão de uma década de vaivém estreado em Tarifa, excepto a única alternativa de o carimbar em Algeciras e Sebta; Ceuta é o nome português do enclave espanhol, do outro lado. Descobri-o em estado terminal por acaso, «como se diz neste tipo de circunstâncias» (Antonio Orejudo), enquanto arrumava a gaveta e acabei por dar uma pequena volta de passaporte para desentorpecer as páginas. Cada pancada de carimbo, num recuo cronológico desordenado do final para o meio, gravou um episódio intransmissível nas folhas voltadas pelas mãos grosseiras de polícias mal-humorados na gare marítima de Tânger; à entrada e à saída. Já percebi que tenho de entrar por lá até Julho, para sair do passaporte de cabeça erguida com dois bilhetes de ida e volta a Asilah. Desta vez, só passarei por Tânger o tempo necessário para apanhar o autocarro e o ferry; tenciono cremar-lhe a validade hospedado no Pátio de La Luna, com a janela aberta para a muralha da Medina. Revoadas de cheiro a eucalipto e a glândula de gazela, fogareiros e iodo, trazidos pela brisa; gatos indolentes numa esteira de folhas prateadas; o trote irregular de uma carroça, puxada por um burro, empurrada pela nódoa debotada de uma djellaba; a algaraviada de outras províncias.
Arquivar uma história para poder abrir outra, sem necessidade imediata de passaporte, com «o destino delineado na asa do pássaro migrante.» (Tahar Ben Jelloun)

Às vezes, lá calha...

«Viajar é uma arte.
É preciso praticá-la com à-vontade,
com paixão,
com amor.»
[foto: Nico; costa de Asilah, Dezembro 1977]

30 de maio de 2010

Breve interlúdio musical

Craques da memória

«E na memória vamos guardando o Nuno Macaco, o Pampilhosa, o Marinho Sacadura, os Costa Grilo e os Rocha, a D. Rosário Bigodes, a Margarida garbosa, o Leandro e o chato do Fausto. Os nomes são só o alibi para voltarmos a mergulhar nas histórias felizes das suas infâncias e servem quem ama o futebol, quem ama a escrita, a crónica, a fábula, ou o português. E são o álibi ainda para que em nós fiquem marcadas as suas assinaturas, como outrora ficaram em "canelas alheias".»
[Alexandra Carita (in "Actual" Expresso, 29 Maio 2010) sobre as Memórias de Um Craque, Fernando Assis Pacheco, avivadas por Nuno Moura]

À mão de ler (32)

«Se quisermos conhecer um país, devemos frequentar os seus escritores de segunda categoria, que são os únicos a reflectir a verdadeira natureza dele. Os outros denunciam ou transfiguram a nulidade dos seus compatriotas: não querem nem podem pôr-se ao mesmo nível deles. São testemunhas suspeitas.»
[E. M. Cioran, Do Inconveniente de Ter Nascido; trad. Manuel de Freitas, Letra Livre 2010;
ilustração encontrada aqui]

Às vezes, lá calha...

«quando penso nos amigos que me morreram e o facto de eu continuar a viver, parece-me que este tempo é roubado e que tenho de vivê-lo às escondidas»

28 de maio de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

... sarau ouvido neste auditório.

«É bom trabalhar nas Obras» (13)

«Alguns saberiam que as suas poses eram observadas; então preparariam uma atitude neutra, mas confortável, para poderem abandonar-se a ouvir tranquilos, afastando-se desta forma dos presentes. (Outros, imitando estes últimos, preparar-se-iam como que para dormir.)
Todos estes factos faziam cócegas à sensibilidade de Petrona. E se é certo que havia pessoas que, entendendo pouco de arte, escondiam a sua incompreensão – ou procuravam compreender – recorrendo demasiado predominantemente, às minúcias ou às atitudes dos artistas para deduzir a arte, Petrona dedicava-se exclusiva e francamente à observação de atitudes. E assim voltavam os borbotões de riso meio incontrolado.»
 
 
 
[Felisberto Hernández, Contos reunidos; em tradução para a Colecção Ovelha Negra /Oficina do Livro]

À mão de ler (31)

«Gerês, 9 de Agosto de 1949 - Quanto mais percorro o país, mais me convenço de que ainda são os poetas que melhor sabem exprimir a nossa realidade telúrica e humana. Os mais belos quadros que possuímos da vida portuguesa, surpreendida nos seus vários aspectos, são trechos de poesia. Meia dúzia de Cantigas de Amigo, pedaços do Cancioneiro Geral, composições de Camões, Diogo Bernardes, Cesário, António Nobre e Junqueiro, são documentos que deixam a perder de vista os poucos prosadores que tentaram a pintura de costumes. Julgo até que será por essa razão, por haver na maioria dos poetas lusos uma sintonização tão perfeita com o foro íntimo dos leitores, que a poesia é ainda tão estimada entre nós. Na verdade, ninguém de boa-fé pode encontrar em Júlio Dinis ou em Eça uma autêntica aldeia ou faina portuguesas. A gente lê, e tudo aquilo é convencional como os postais de Natal que os nossos correios editam. Mas ao ouvir A Moleirinha, O Sentimento dum Ocidental, a Lusitânia no Bairro Latino, algumas estâncias de Os Lusíadas, ou mesmo certos poemas de Pessoa, eis-nos a reviver emoções que trazemos no sangue e no coração.

Diz-se com frequência que somos um povo de poetas. Somos. Porque assim o determinaram razões obscuras de sensibilidade, ou porque um treino literário amadurecido em formas cada vez mais puras nos conduz de preferência para esse caminho, o certo é que só nos versos encontramos a voz condigna da literatura. Por isso, e compreende-se que assim seja, quem nos visita procura-nos sobretudo no Parnaso. É aí que mora a universalidade do nosso génio, justamente por ser a decantação do que temos colectivamente de mais específico e genuíno.»

[Miguel Torga; Diário V (3.ª ed. revista), Coimbra 1974]

Às vezes, lá calha...

«Se você alguma vez sair da juventude,
o que não acontece a muitos homens,
verá que também a idade lhe foi ingrata…»

27 de maio de 2010

Breve interlúdio musical

bora lá sacudir essa poeira

Porque a Net fornece um novo dia

ou
Ya meu, curto bué uma depressiva, táza ver...

À mão de ler (30)

«De manhã, Angela e Charles tomaram o avião e daí a duas horas estavam em Banguecoque. Eu tinha pela frente quatro horas de autocarro até Chiang Mai e depois uma noite inteira de comboio. Incómodo. Complicado. Mas a ideia de me manter firme no meu propósito continuava a divertir-me. Lembrei-me de que em miúdo, quando ia para a escola, caminhava pelo passeio obrigando-me a não pôr o pé no sítio onde as lajes se uniam. Se conseguisse totalmente, corria-me bem uma chamada ou escrevia uma boa redacção. Mais tarde vi outros miúdos fazerem o mesmo noutras partes do mundo. Talvez exista em cada homem a necessidade instintiva e primordial de, uma vez por outra, se impor limites, fazer apostas com as dificuldades, para depois sentir que "mereceu" algo que desejara.»
[Tiziano Terzani, Disse-me Um Adivinho; trad. Margarida Periquito, Tinta-da-China, Novembro de 2009;
ilustração: Jan Peter Tripp]

Nem sempre a lápis (36)

À medida que envelheço, verifico como é triste ser-se velho e, ainda por cima, chanfrado; não bater bem da bola, de tanto a ver. Quando não anda numa azáfama de esfregão e pulverizador em riste, já me entornou uma bica em cima, especa-se em frente da mesa, onde procuro isolar-me de costas para a parede, e começa a debitar um discurso convulso, atropelado por conclusões e indiscutíveis previsões, sobre o esférico e os seus feitos. Quem nos vir, dirá que simpatiza comigo, que seremos rapazes da mesma criação. Habituaram-no e habituou-se a ninguém lhe prestar atenção, com a cabeça colada no plasma ou refugiada na publicação da especialidade. Custa-me alhear-me, evitar-lhe o olhar, não lhe passar cartão, dói-me o esgar de superioridade que me imagino esforçado no rosto e envergonha, mas não posso estar sempre a fazer de assistente social. Preferia mil vezes outro momento para testar a resistência do bloco Lusalite 22091-2-3 que me ofereceram; mas, bem vistas as coisas, o importante foi quebrar-lhe o silêncio com que se passeava no bolso da camisa.
As pessoas oferecem-me coisas, é verdade; que dívidas andarei a contrair, sem o saber?

Às vezes, lá calha...

«Ponho duas molas de roupa nos ombros,
espero um dia sem chatices.»

26 de maio de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

... hasta siempre, cabrón

Isto é um desassossego

... continuação do tratamento, HOJE, seguido de consulta, amanhã ...

À mão de ler (29)

Nem sempre a lápis (35)

Verifico, sem querer, que o funcionalismo público – bolsas, subsídios, apoio depurador – e a emigração – edição ou exposição no «estrangeiro» – continuam a ser o principal objectivo do escritor, do pintor, da casta impositiva sob a pacóvia denominação de artista. Designação, corresponde melhor à especificidade; ao artigo. Publicados por recíproca conveniência – não é raro que o Autor seja a face expediente da Imprensa, por quem a Editora se derrete –, se a generalidade desses autores era má à partida, piora de edição para edição; de título para título, a reedição só confirma o disparate. Contam-se pelos dedos da mão e uma basta, os autores que entretanto vou encontrando disseminados online, na dimensão correcta da auto-edição ou edição doméstica; também tribal, naturalmente. Não me preocupa quantos, nem como sobreviverão; só a certeza da intuição me diz que dificilmente serão autores para editar no estrangeiro, leio-os mais ocupados a trabalhar para um dia poderem vir a ser escritores de bairro. Sabedores de que «o narrador deve estar sempre presente» (Ricardo Piglia), escrevem sem autor; só depois delegam nele o respeito pelo leitor.
[instantâneo captado aqui]

Às vezes, lá calha...

«Quero apresentar, quero descrever, quero distribuir recordações e amuletos, quero esvaziar a carteira e passar fotografias de mão em mão, quero ser guiado pelo instinto.»
[ilustração daqui]

25 de maio de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia...

... oxalá haja uma casa de chá nas faldas de Monchique

À mão de ler (28)

[Edições coisas do arco da velha]

Nem sempre a lápis (34)

Fiquei com as mãos, sobretudo os nós dos dedos, todas escalavradas, mas subi a aviadora pela escada sete andares, a fazer tabelas nas paredes ásperas. Parava de dois em dois, depois um de cada vez, sentado com o interruptor à mão; bastavam três doses de temporizador para retomar a escalada, com o telemóvel disponível para qualquer percalço; fazer de lanterna, de pilha, sem cães à vista. Quando finalmente a convenci a entrar na sala, depois de retiradas duas portas e de nos termos contorcido numa dança escusada, apresentei-a à luz do candeeiro que a esperava, indiferentes à manhã que nascia, à cor da napa esfregada nas calças; delatora. Sabedores do nosso destino, passámos o dia a olhar-nos intimidados; a única atenção que nos dispensámos foi pôr-lhe as flores que me ofereceram num copo e chegar-lhe um cinzeiro, confirmar a posição. Não gostaria de ir a Asilah sem primeiro saber como passarei a ver daqui,
sentado na aviadora que o Zé Pinho me emprestou para que eu possa olhar ainda mais devagar, a ler.

Às vezes, lá calha...

«a diferença entre os pequenos e os grandes poetas
é o que separa o ilusionismo da magia»
[Miguel Martins, Penúltimos Cartuchos; tea for one, 2008]

24 de maio de 2010

Breve interlúdio musical

Em Coimbra não se queimam fitas

Rocío

Porque a Net fornece um novo dia

nota-se...

mitu... sabias?

«É bom trabalhar nas Obras» (12)

«Na manhã seguinte, a senhora Margarita disse-me, por telefone: “Rogo-lhe que vá a Buenos Aires por uns dias; vou mandar limpar a casa e não quero que o senhor me veja sem a água”. Depois indicou-me um hotel onde devia ir. Receberia ali o aviso para voltar.
O convite para sair de sua casa fez disparar em mim uma mola ciumenta e no momento de partir dei-me conta de que, apesar da minha excitação, levava comigo um invólucro pesado de tristeza e que assim que me tranquilizasse teria a estúpida necessidade de desenvolvê-lo e examiná-lo cuidadosamente. Isso aconteceu pouco depois, e quando apanhei o comboio tinha poucas esperanças que a senhora Margarita me quisesse, como seriam as dela quando apanhou aquele comboio sem saber se o seu marido ainda era vivo. Agora eram outros tempos e outros comboios; mas o meu desejo de ter algo em comum com ela fazia-me pensar: “Os dois tivemos angústias por entre ruídos de rodas de comboios”. Mas esta coincidência era tão pobre como a de ter acertado só num número dos que tivesse um bilhete premiado. Eu não tinha a virtude da senhora Margarita para encontrar uma água milagrosa, nem procuraria consolo em nenhuma religião. Na noite anterior tinha atraiçoado os meus próprios fiéis, porque embora eles quisessem levar-me com a primeira senhora Margarita, eu tinha, também, no fundo do meu pântano, outros fiéis que olhavam fixamente para esta senhora como bichos encantados pela lua. A minha tristeza era preguiçosa, mas vivia na minha imaginação com orgulho de poeta incompreendido. Eu era um lugar provisório onde se encontravam todos os meus antepassados um momento antes de chegar aos meus filhos; mas os meus avós, embora fossem diferentes e com grandes inimizades, não queriam lutar enquanto passavam pela minha vida: preferiam o descanso, entregar-se à preguiça e desencontrarem-se como sonâmbulos a caminharem por sonos diferentes. Eu procurava não provocá-los, mas se isso chegasse a ocorrer preferiria que a luta fosse curta e que se exterminassem com uma só pancada.»
[Felisberto Hernández, Contos Reunidos; em tradução para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro]

À mão de ler (27)

«Montpellier, 7 de Setembro de 1949 - É preciso reconhecer que passados os Pirenéus o ar é mais leve, a terra mais fecunda, a paisagem mais doce. Mas eu prefiro o pesadelo, a agressividade do outro lado. Aquela Benemérita do Lorca, tricórnea e sinistra, e aquelas azémolas lazarentas a erguer pó nos restolhos, dizem-me coisas que estes palacianos polícias e estes percherons anafados me não dizem. Há uma grandeza que se não mede em calorias e salamaleques. É coisa mais profunda e significativa... Ora essa grandeza tem-na a Espanha, faminta, esfarrapada, a arder em febre desde que nasceu. Pudesse ela suportar o complexo de inferioridade que lhe consome as forças com gestos de obstinação! O guarda da aduana francesa, a olhar o colega castelhano, parecia Descartes a contemplar um bisonte. E o outro era o Cervantes...»
[Miguel Torga, Diário V (ed. revista); Coimbra 1974]

Nem sempre a lápis (33)

A Medina de Asilah é uma praça fortificada com demãos de verde e azul, sobre branco guloso. Aqui e além podem surgir cascatas de gerânios, labaredas de buganvílias, a porta luminosa de uma Dar. Ameaça e defesa, o mar está sempre presente, sobrevoado pela impunidade das gaivotas; a educação do olhar.

Às vezes, lá calha...

«Depois de ela ter começado a falar, pareceu-me que a sua voz também soava dentro de mim como se eu pronunciasse as suas palavras. Talvez por isso, agora confundo o que ela me disse com o que eu pensava. Por outro lado, ser-me-á difícil juntar todas as suas palavras e não terei outro remédio a não ser pôr aqui muitas das minhas.»

23 de maio de 2010

Breve interlúdio...

Meditação na pontaria

Porque a Net fornece um novo dia...

À mão de ler (26)

«Coimbra, 25 de Maio de 1949 - O Marquês de Sade. Um calafrio que só as leituras proibidas dão. A gente volta cada página arrepiado, com a sensação de que está a meter a alma no Inferno. E é essa inquietação que todos os livros deviam provocar. Uma incerteza, um pavor crescente, um medo a cada vírgula. A segurança burguesa de que as suas leituras foram previamente policiadas, e de que tudo o que soletra é castílhico, canónico, arcádico, só pode degradar o espírito. O homem necessita do pecado para viver, como de especiarias para comer. Julgo mesmo que o futuro se esforçará por contrariar cada vez mais a sonolência beócia das páginas cor-de-rosa. Em lugar de pudins, livros com dinamite dentro.
Sade. Nunca lhe tinha posto a vista em cima, e li-o com a emoção dum garoto que está a roubar peras num quintal. Quanto à pornografia, há comunicados oficiais piores.»
[Miguel Torga, Diário V (3.ª ed. revista); Coimbra, 1974]

Nem sempre a lápis (32)

Traído pelo microclima de Carnaxide e a localização da casa, abordei a cidade pendurado num estúpido casaco que passou a maior parte do tempo pelos ombros, à falta das costas da cadeira à mão; adormeceu no Miradouro de São Pedro de Alcântara, a saborear um capilé com uma amiga. Travo demasiado doce para o meu gosto; prefiro-o, ao travo, naturalmente mais ácido e citrino. O ridículo teve início ao cimo do Parque, esquiava até ao stand da frenesi, com o tabaco num bolso interior e a lata no outro e o moleskine falso num bolso exterior e o telemóvel no outro e as chaves a atravancarem-me a comodidade dos chinos; senti-me um vendedor clandestino. Labrego, repreendi-me até encontrar nos claustros subterrâneos do Marquês uma bonita figura feminina, leve, com um livro ciosamente encostado ao peito. Disse-me um adivinho..., sussurrei-lhe a uma distância discreta, com um sorriso recebido com surpresa retribuída: «É delicioso», parecendo-me natural que saísse na estação certa, a do Campo Pequeno. Vi outra utilizadora do metro retirar um objecto semelhante a um livro do caos feminino portátil; aguardava a correspondência para a Frutalmeidas, fechada, adiado o jantar para as favas que me esperavam no Rato.
Escolhi os Diários de Torga possíveis, que despertaram a curiosidade de uma senhora enquanto liquidava os caprichos do neto. Bati, sem impaciência, com as lombadas na caixa registadora e as capas bem visíveis para que pudesse estabelecer o diálogo: «Nunca se sabe se perdemos por não falar ou falar demais», retribuí-lhe a cumplicidade aforista levando o boné (parolo) esquecido pelo neto em cima do balcão. Enquanto o maralhal aguardava o «combate, poeticamente correcto», entre Miguel Manso e Nuno Moura, no ginásio da Trama, ofereceram-me duas sebentas e três blocos, envolvidos numa sobrecapa da Livraria Portugália – 75 rua do Carmo, Lisboa (ainda à francesa, como a Casa Pereira) – com um lápis azul entalado no cordão; não me faltam motivos para me considerar um gajo apetecivelmente feliz. A meio da subida do Monsanto não me contive e chamei a atenção do taxista para o naco de lua a escorrer sobre o asfalto, tratou-a por fatia de queijo amanteigado; apostava que também é das beiras, conduzia em mangas de camisa. Quando me apanhei em casa abri cuidadosamente a oferta, com alegria escolar; mas depois, cauterizada a pústula autocolante que desvaloriza o Autor, à medida que abria com a navalha os cadernos do Diário V, 3.ª edição revista em 1974, verifiquei que Torga passa como cão por vinha vindimada pelo mês de Junho de 1949. Secretamente desapontado, estreio um bloco anotando: «Coimbra, 4 de Julho – Fazer uma literatura o mais perto possível da clandestinidade, mas publicável, é a única esperança de salvação que resta ao artista.» (Miguel Torga)

Às vezes, lá calha...

«Comia uvas e lia horas seguidas no fresco da taipa e da telha vã, até que o burburinho das vozes me chegasse convidando a mergulhos; a leitura foi, depois disso e durante décadas, uma evasão fantástica. Só muito mais tarde, quando senti necessidade de me proteger, descobri a eficácia matemática do tricot.»

22 de maio de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

... e como não há duas sem três,
aí vem mais uma desgraça... e imobiliária

«É bom trabalhar nas Obras» (11)

«No mesmo instante do relato, não só me dei conta de que ela pertencia ao marido, assim como eu tinha pensado demasiado nela; e às vezes, de uma maneira culpável. Então, parecia que era eu quem escondia os pensamentos entre as plantas. Mas desde o momento em que a senhora Margarita começou a falar, senti uma angústia como se o corpo se afundasse numa água que me arrastasse também; os meus pensamentos culpáveis apareceram de uma maneira fugaz e com a ideia de que não havia tempo nem valia a pena pensar neles; e à medida que o relato avançava, a água ia-se apresentando como o espírito de uma religião que nos surpreendesse de formas diferentes, e os pecados, nessa água, tinham outro sentido e o seu significado não tinha tanta importância. O sentimento de uma religião da água era cada vez mais forte. Embora a senhora Margarita e eu fossemos os únicos fiéis de carne e osso, as recordações de água que eu recebia na minha própria vida, nas intermitências do relato, também me pareciam fiéis dessa religião; chegavam com lentidão, como se tivessem empreendido a viagem havia muito tempo e apenas cometido um grande pecado.
De repente dei-me conta de que da minha própria alma me nascia outra nova e que eu seguiria a senhora Margarita não só na água, como também na ideia do seu marido. E quando ela terminou de falar e eu subi a escada de cimento armado, pensei que nos dias em que caía água do céu havia reuniões de fiéis.»
[Felisberto Hernández, Contos Reunidos; em tradução para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro]

Nem sempre a lápis (31)

Esta manhã, bastante apreensivo com o esforço das plantas para se agarrarem ao Sol fingido que entra pela janela da cozinha, trouxe-as para a marquise antes que danifiquem mais a coluna; as vértebras por onde se ramificam. Devolvi-as ao território que lhes pertence – fechada, mas varanda – sem pretender transformá-las em plantas de companhia; ainda não cheguei a tanto. Mas a verdade, é que me tenho apanhado a olhá-las, levantado o olhar do trabalho atraído pela surpresa da cor vegetal dada sobre o soalho de árvores abatidas; súbito oásis brotado por entre pedras de praias. Contaminado pela tradução de Hernández, é possível que não a acabe sem lhes inventar um nome; a acreditar que me pretendem dizer qualquer coisa quando a brisa lhes agita os pés raquíticos; a responder aos sons e palavras que lhes digo, em segredo, e desconhecem que escrevi.

Às vezes, lá calha...

«De doutrina literária, nada tenho a formular;
nunca achei comestível a cozinha dos químicos.»

21 de maio de 2010

Meditação na tabacaria

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia...

«Independente remete-me, justamente, para o lado contrário. Creio que esta, a minha, e outras, de gente por quem tenho admiração ou amizade ou estima ou simpatia, são livrarias dependentes. Pela simples razão de que dependem dos livros.»

À mão de ler (25)

«SUDÁRIO
Estas mãos, que são minhas.
Apenas o seu íntimo calor
Poderá dar guarida
À minha dor.
Sobre um rosto magoado de vergonha
- Da presente vergonha de viver -,
Não há outra mortalha que se ponha,
Além de algum pudor
Que se tiver.»
[Miguel Torga, Diário V (3.ª ed. revista, 1949); Coimbra, 1974.
Ilustração: M. C. Escher]

Nem sempre a lápis (30)

Um dia destes tenho de ir à velha Barata na avenida de Roma, aproveitando para contrariar a semana. Só me chateia o trajecto de feira popular da linha de metro, embora me deixe quase à porta das tartes de maçã do Frutalmeidas, como se viesse do bairro de São Miguel – do quarto com vista para as favas, em casa da senhora dona Todicas (Fruta da Época) – e preparasse o físico para ir curtir um maningue naice com os meus e as minhas, então à porta do Tique-Taque, do Roma, do Pote, da Munique. Durante essa moca, há muito ressacada, frequentava pouco a Barata; era mais interessante atravessar a avenida para revolver as estantes da Sinfonia, antes ou depois de aviar um pires de pipis na Alga, afogados com uma caneca de cerveja preta; marca corrente, como a água de casa. Quis o acaso que, enquanto fazia tempo para a apresentação de Santa Maria do Circo, os meus olhos se encontrassem com uma banca cheia de Miguel Torga, com os cadernos por abrir, a euro e meio cada Diário; dei por mim em Coimbra, a ver a montra da editora homónima. Como é sempre em frente até ao largo da Portagem, lá voltei a ser assaltado pela incredulidade infantil por o médico que operou a minha prima, um dia viesse a recorrer a outro nome para escrever um poema sobre uma videira – de que não me recordo e tenho tão presente como se a lesse na Selecta Literária – e para comparar o mar do Sul com o Mediterrâneo, chamando-lhes um charco; a ambos os dois. Em qual das dezenas de Diários que o doutor Adolfo Rocha ditou ao escritor Miguel Torga, é coisa para verificar; e depressa, antes que a gerência se aborreça por ter aquela área eternamente ocupada por um autor com os cadernos por abrir.

Às vezes, lá calha...

«Pareço um doido a correr esta pátria
e nem chego a saber por quê tanta peregrinação.»

20 de maio de 2010

Breve interlúdio musical

Surripiado aqui, fiufiu...

Porque a Net fornece um novo dia

À mão de ler (24)

«Vi Katsimbalis aproximar-se com um grande floreado de bengala. Trazia um amigo a reboque – chamar-lhe-ei Kyrios Ypsilon, para ser discreto. Descobri que Kyrios Ypsilon era um exilado político e tinha sido transferido para Spetsai, de qualquer outra ilha, por causa da sua saúde fraca. Gostei imediatamente dele, no momento em que lhe apertei a mão. Falava francês, por não saber nada de inglês, mas com sotaque alemão. Era tão grego quanto um grego pode ser, mas tinha sido educado na Alemanha. O que me agradou nele foi a sua natureza viva e entusiástica, a sua franqueza, a sua paixão por flores e metafísica. Acompanhou-nos ao seu quarto numa grande casa deserta, a mesma onde a famosa Bobolina tinha sido morta a tiro. Enquanto conversávamos, foi buscar uma banheira de folha e encheu-a de água quente para tomar banho. Numa prateleira perto da cama tinha uma série de livros. Dei uma vista de olhos aos títulos, que se apresentavam em cinco ou seis línguas. Encontravam-se ali A Divina Comédia, Fausto, Tom Jones, diversos volumes de Aristóteles, The Plumed Serpent, os Diálogos de Platão, dois ou três volumes de Shakespeare, etc. Uma excelente dieta para um cerco prolongado. “Sabe, então, um pouco de inglês?”, perguntei. Oh, sim, tinha-o estudado na Alemanha, mas não o sabia falar muito bem. “Gostaria de ler Walt Whitman, um dia”, acrescentou muito depressa. Estava sentado na banheira, a ensaboar-se e a esfregar-se vigorosamente. “É para manter o moral”, disse, embora nenhum de nós tivesse feito qualquer comentário a respeito do banho. “Precisamos de ter hábitos regulares”, continuou, “pois de contrário desmoronamo-nos. Ando muito, para conseguir dormir à noite. As noites são compridas, sabem, quando não somos livres.”
– É um tipo formidável – disse Katsimbalis, quando regressávamos a pé ao hotel. – As mulheres são loucas por ele. Tem uma teoria interessante acerca do amor… arranje maneira de ele lhe falar a esse respeito, em qualquer ocasião.
Falar de amor trouxe o nome de Bobolina à conversa.
– Por que será que não ouvimos falar mais de Bobolina? – perguntei. – Ela parece outra Joana d’Arc.
– Hmm – resmungou, parando repentinamente. – Que sabe você de Joana d’Arc? Sabe alguma coisa a respeito da sua vida amorosa?
Ignorou a minha resposta e continuou a falar de Bobolina. Contou-me uma história maravilhosa, e não duvido que verdadeira, na sua maior parte.
– Por que não escreve essa história pessoalmente? – perguntei-lhe de chofre. Alegou que não era escritor, que a sua missão era descobrir pessoas e apresentá-las ao mundo. – Mas eu nunca conheci nenhum homem capaz de contar uma história como você – insisti. – Por que não tenta contar as suas histórias em voz alta, deixar alguém anotá-las enquanto as conta? Não é capaz de fazer isso, pelo menos?
– Para contar uma boa história – respondeu – é preciso ter um bom ouvinte. Não sou capaz de contar uma história a um autómato que escreve em estenografia. Além disso, as melhores histórias são aquelas que não queremos preservar. Se temos algum arrière-pensée, a história está perdida. Tem de ser uma dádiva pura… temos de atirá-las aos cães… Eu não sou escritor – explicou –, sou um tipo improvisador. Gosto de me ouvir a mim próprio falar. Falo demasiado: é um vício. – E depois acrescentou, pensativamente: – Para que serviria ser escritor, um escritor grego? Ninguém lê grego. Aqui, se um homem consegue ter mil leitores, está cheio de sorte. Os gregos instruídos não lêem os seus próprios escritores, preferem ler livros alemães, ingleses, franceses. Um escritor não tem hipótese nenhuma na Grécia.
– Mas a sua obra podia ser traduzida para outras línguas – sugeri.
– Não há nenhuma língua que possa transmitir o sabor e a beleza do grego moderno – respondeu-me. – O francês é rígido, inflexível, eivado de lógica, demasiado preciso; o inglês é demasiado monótono, demasiado prosaico… vocês não sabem fazer verbos em inglês. – Continuou a brandir irritadamente a bengala. Começou a recitar um dos poemas de Seferíades, em grego. – Ouviu? O simples som é maravilhoso, não acha? O que é que me pode dar em inglês capaz de lhe equivaler em pura beleza de ressonância? – E, de súbito, entoou um versículo da Bíblia. – Isto está mais em conformidade – declarou. – Mas vocês já não usam esta linguagem, agora é uma língua morta. A língua, hoje, não tem entranhas. Vocês estão todos castrados, tornaram-se homens de negócios, engenheiros, técnicos. Soa a dinheiro de madeira a cair num esgoto. Nós temos uma língua… ainda estamos a fazê-la. É uma língua para poetas, não para lojistas. Escute isto…»
[Henry Miller, O Colosso de Maroussi; trad. Fernanda Pinto Rodrigues, Livros do Brasil, Lisboa 1996]

Nem sempre a lápis (29)

Quando apaguei as luzes da sala para me deitar, deixei-me fiquei a olhar para o candeeiro very british – «verde land-rover» também não lhe assenta nada mal – que trouxe a primeira vez que fui ao Sul. Esqueci-me dele aceso e, no meio da escuridão que seria de esperar, vi-o adaptar-se à nova realidade do espaço a que pertenceu sempre; por muito campo que lhe desse a condizer com o abat-jour Laura Ashley, creio eu. Foi uma etapa bem divertida, há uns vinte e tal anos; é certo que não iluminava nada a área de trabalho anichada na estante, mas gostava de o ver aceso e, se possível, só ele. Mergulhados no conforto cálido da penumbra, retomámo-nos com um sorriso esquecido: ele, a apreciar os cartões que pintei, talvez enquanto nos esperávamos; eu, a salivar por uma aviadora para ler ao lado dele e levantar os olhos e ver os cartões e ver as pedras espalhadas na marquise, ver só. Mas não está bom para Cioran; intimidada a generosidade do mês, a luz de que disponho só me concede tempo para ler Terzani e McCarthy, por enquanto.

Às vezes, lá calha...

«O mais seguro de tudo é que eu não sei como faço os meus contos, porque cada um deles tem a sua vida estranha e própria. Mas também sei que vivem a lutar com a consciência para evitar os estrangeiros que ela lhes recomenda.»

19 de maio de 2010

Breve interlúdio musical

[Não faço ideia quem seja a Alexandra, mas reconheço-lhe o bom gosto]

Ora vamos lá a pôr a agulha nas espiras...

«Julgo azado o momento de me desvincular – quanto historicamente possível – de um autor, Ian Curtis, que deu notório contributo para o ressurgimento de ideias nazis e rácicas.»

... e depois, se vos apraz, repimpem-se com a masturbação necrófila.

Porque a Net fornece um novo dia...

[foto: João Belard]

À mão de ler (23)

«Era hora do jantar na pequena cidade. Nas divisões quadradas que serviam de habitação e de loja, com os cães na soleira, viam-se as famílias a sentar-se à mesa e os candeeiros a petróleo projectarem grandes sombras nas paredes salpicadas de fotografias, calendários, imagens sacras. Nas ruas não havia trânsito e no ar pairava aquele bulício sereno do anoitecer, feito de vozes isoladas e de chamamentos longínquos.
Agora todos procedem desta maneira. Até os chineses! Também eles, que antes se orgulhavam de serem herdeiros de uma "cultura com quatro mil anos", o que os convencia de serem espiritualmente superiores a todos, cederam, e, sintomaticamente, já começam a sentir-se pouco à-vontade por ainda comerem com pauzinhos.
Até já se consideram mais apresentáveis com um garfo e uma faca na mão; parece-lhes mesmo que são mais elegantes se vestirem casaco e gravata. A gravata! Originalmente uma invenção dos mongóis para arrastarem os prisioneiros, amarrados ao arção da sela... exactamente, com uma corda ao pescoço.»
[Tiziano Terzani, Disse-me Um Adivinho; trad. Margarida Periquito, Tinta-da-China, Novembro de 2009]

Nem sempre a lápis (28)

Não creio que o tempo se esclareça o suficiente para me repimpar com um pires de caracóis com orégãos e tomilho, na esplanada de passeio onde os há. No preciso momento em que me arranjava para «ir ver a tarde antes que se faça noite», ribombou um relâmpago que se desfez num aguaceiro; aprecio muito estas coincidências que, por algum motivo, me retêm em casa.

Às vezes, lá calha...

«Não haverá nada pior para um “escritor” sem talento, do que ceder ao impulso irresistível da inspiração. É como sentir uma repentina e dolorosa cólica, correr para a privada mais próxima, deixar a imaginação livre e, só depois, aperceber-se de que não há papel para registar a sua obra.»