30 de agosto de 2010
Nem sempre a lápis (75)
Quando for, imaginemos que vou a Mortágua, tentarei não me esquecer de ir à olaria comprar duas peças de que senti uma alegre necessidade de ter presentes: uma bilha de barro comum, cor de barro da Gandarada, para a encher de água e saciar esse sabor fresco e argiloso, primitivo; outra, com segredo. Uma peça feita de barro preto vendida como sendo de Molelos, atraiçoada pela elegância das linhas modeladas por gerações serranas que lhe ocultaram sempre a origem, atribuindo-lhe as mais desencontradas. Vou-me fartar de divertir e de pegar na esfregona para limpar o chão, a ver que tácticas, que abordagem farão à vista do impossível gargalo decorado com seteiras – não me ocorre melhor imagem, tratando-se do concelho de Tondela (ao tom d’ela, foram-se a eles) – e consegue beber água sem a entornar; saciando-me duplamente. Desta vez, se for a Mortágua, à «terra das águas mortas», pretendo compreender como foi possível ter lá vivido quatro meses sem sentir nostalgia de um passado demolidor, para que agora sinta nostalgia de um simples trago de água, bebido no chafariz com a concha da mão, bebido de uma bilha em casa do meu avô; sempre à sombra e dentro de um prato, luxuriante vaso de sede.
«É bom trabalhar nas Obras» (37)
«Uma noite de Março em Dublin, o escritor irlandês teve uma revelação definitiva, o género de revelação que causa inveja:
"No final do molhe, no vendaval, nunca o esquecerei, ali de repente tudo me pareceu claro. Por fim, a visão."
Era de noite, com efeito, e, como tantas outras vezes, o jovem Beckett errava solitário. Encontrou-se na ponta de um molhe varrido pela tempestade. E então, foi como se tudo recuperasse o seu lugar: anos de dúvidas, de buscas, de perguntas, de fracassos, ganharam de repente sentido e a visão do que teria de se realizar impôs-se como uma evidência: viu que a escuridão que sempre se tinha esforçado por rejeitar era, na realidade, a sua melhor aliada e anteviu o mundo que devia criar para respirar. Forjou-se ali uma espécie de associação indestrutível com a luz da consciência. Uma associação até ao último suspiro da tempestade e da noite.»
[Enrique Vila-Matas, Dublinesca; em tradução para a Teorema;
Foto]
28 de agosto de 2010
Às vezes, lá calha...
«No fim de contas, continuará como tem estado sempre. Só, sem geração, e é que nem sequer um resquício de piedade.»
«É bom trabalhar nas Obras» (36)
«Em breve farei sessenta anos. Há dois que me persegue a realidade da morte, ao mesmo tempo que me dedico a observar como o mundo vai mal. Como diz um amigo, acabou-se tudo, ou está a acabar-se. Não resta outra coisa além de uma grande massa analfabeta criada deliberadamente pelo Poder, uma espécie de multidão amorfa que nos enterrou a todos numa mediocridade generalizada. Existe um enorme mal-entendido. E uma trágica embrulhada de histórias góticas e editores porcos, culpados de um monumental equívoco. A edição literária, por quem dei a minha vida, já tem o seu funeral preparado em Dublin. E eu já só posso dedicar-me a respirar, a abrir o máximo de espaços possíveis aos dias que me restam, a tratar de ir à procura de uma arte do meu próprio ser, de uma arte que talvez um dia possa aperfeiçoar fazendo o inventário daqueles que foram os meus principais erros como editor. Porque tenho a impressão – num último projecto, apenas imaginário – de que seria vasto que muitos quisessem fazer o mesmo e um livro recolhesse as confissões de editores que dissessem que acreditam que andei a imiscuir-me na sua política de publicações; editores independentes que contassem como imaginaram extraordinários os livros que um dia sonharam trazer à luz do dia; editores que contassem quais foram as suas maiores esperanças e como foi que estas não se materializaram (aí ficaria bem que falasse um editor como o grande Sensini, que só publicava histórias de personagens corajosas e à deriva e que foi processado nos Estados Unidos); editores literários que contassem as misérias da literatura, hoje uma sinfonia completa de corvos perdidos no mafioso centro da selva fúnebre da sua indústria. Para terminar, editores que se atrevessem a publicar o grande mapa das suas decepções, que confessassem nele a verdade e dissessem, de uma vez por todas que, para cúmulo, nenhum encontrou um verdadeiro génio no seu caminho. Um mapa como este, iria permitir-nos avançar dentro das movediças areias da verdade. Gostaria de um dia ter a ousadia de me embrenhar nessas areias e de fazer um inventário sobre tudo o que quis alcançar no meu catálogo e nunca alcancei. Gostaria de um dia ter a honestidade de revelar as grandes sombras que se escondem atrás das luzes do meu trabalho, tão absurdamente elogiado…»
[Enrique Vila-Matas, Dublinesca; em tradução para a Teorema;
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26 de agosto de 2010
Às vezes, lá calha...
«He publicado cinco libros, todos en ediciones de bibliófilo, la verdad, espero una oportunidad, pero no me parece serio sentarme a pedirla a la puerta de los mandarines, porque ya lo he hecho.
Prefiero los libros que aun no he escrito o no he publicado, sobre todo sus títulos: Informe; Edipo aceptado, los sueños; Jardín de Sebastián, para esta casa el nombre; Andrógino, suite, sacramentalmente blue; y más.»
Nem sempre a lápis (74)
Mais dia, menos dia, tenho de ir a Huelva; e o motivo é simples, vou aos livros. Vou aos livros que, por cá, dificilmente encontrarei em português em tempo útil; vou aos autores que só sei ler em castelhano e catalão, espanhóis e outros. Quem não conhece a capital da província onubense, é natural que se estranhe arrancar de Lisboa disposto a morrer na praia; a menos de uma centena de quilómetros de Sevilha. Pois é, mas a capital da Andaluzia deve estar coalhada de turistas ávidos de tablao, pátios com gerânios, caleches atrás da catedral, revoadas de japoneses com máquinas digitais em riste. Atalhando a perspectiva: para se chegar à Casa del Libro ou à Beta, é preciso percorrer metade da calle Tetuán com predisposição para enfrentar provas de perícia. Em Huelva não há turistas nem Giralda, e gira tudo entre a rua pedonal, de que não recordo o nome beato, e a avenida constitucional, homónima no esquecimento. Nessa confluência, abrilhantada pelo bulício local das esplanadas de pescaítos e o apelo tabagista da esquina em frente, fica o santuário onde me penitencio, longe de Al Monte: a Librería Saltés. Há mais de dois anos que lá não vou, tendo-me abastecido com Firmín (Sam Savage) e Los cuadernos de Fritz Kocher (Robert Walser), pelo menos estes; o espólio encontra-se inventariado nos Blues. Tenho uma pequena lista mental, menos susceptível a desilusões do que se a escrevesse, para disparar à morena andaluza, logo à entrada: E como vamos de Pierre Michon, de Flann O’Brien, de Vilém Vok? E aposto que ela – enquanto a sigo até às possíveis estantes, onde esses não constarão (de momento; queres que peça?), mas constam os não previstos – vai pôr-se a adivinhar: Ou andas a traduzir ou acabaste Dublinesca. E está certa, vou aos livros a conselho de Vila-Matas; até para o ler mais, lendo os autores linkados ao longo do texto herdeiro da superior tradição joyceana. E é inevitável; ocorrem-me sempre certos blogues que se fartam de meter a palhinha na escrita do autor de culto. A questão, admitindo sobrevivência para considerá-la como tal, não reside na caricatura textual e nos encómios para se mostrar, exibir, como vila-mateanos; mas pelo equívoco com vila-matutanos, aperitivos ou apontamentos de segunda escolha. Setembro está aí, não tarda; já se sente «um fresquinho por baixo». Deixa-me só acabar a revisão e, enquanto folgam as costas, estás feita, Huelva.
À mão de ler (75)
«Levanto-me. Vivo em frente do Mediterrâneo, num quinto andar. Bem perto, ouço o cavalo relinchar. Sei que trota com cuidado por entre os móveis e as antigas peças de decoração. Então, sei que a poesia me visita de novo. Preciso de ter cuidado, fechar as portas todas. Não é de estranhar que um rio flua nervoso debaixo dos armários, quase sem tocar as carpetes coçadas; nem tão-pouco que uma miragem me impeça de fazer a barba. Lá fora, o arco-íris empenha-se em ser um espectáculo absoluto.»
foto]
24 de agosto de 2010
Às vezes, lá calha...
«Ama a sua vida corrente dos últimos tempos e, acima de muitas coisas, ama o seu mundo quotidiano, tão tranquilo e aborrecido.»
[Foto]
«É bom trabalhar nas Obras» (35)
«Navega um pouco pelos mais diversos lugares e dá, finalmente, com um artigo que lhe parece curiosamente relacionado com a sua decisão de celebrar um funeral em Dublin. Nele fala-se de que se chegará mais depressa do que o esperado a uma digitalização de todo o saber escrito e ao desaparecimento dos autores literários na pedra de ara de um único livro universal, de um fluxo de palavras praticamente infinito, a que se terá acesso, naturalmente, diz o articulista, através da Internet.
Chega-lhe à alma o desaparecimento dos autores literários. Comove-se sempre com essa realidade que a Rede anuncia para o futuro, cada dia com mais claridade. "Mas vejamos – diz o articulista –: se o previsto final do livro impresso já provoca no leitor tradicional mais do que estranheza, repulsa, que dizer do escritor que vê nesta vertigem uma espécie de atentado ao objectivo e à natureza do seu trabalho? Mas, segundo parece, o rumo está definido e a sorte da tinta e do papel está lançada. Não haverá argumentação que consiga distrair o seu penoso destino, nem clarividente ou profeta que possa precaver a sua sobrevivência. O funeral já se pôs em marcha e nós, que conservamos a nossa fidelidade pelas folhas impressas, de nada nos vale protestarmos ou espernearmos no meio da falta de esperança."»
[Enrique Vila-Matas, Dublinesca; em tradução para a Teorema;
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22 de agosto de 2010
Às vezes, lá calha...
«Tem uma notável tendência para ler a sua vida como um texto literário, para interpretá-la com as deformações próprias do leitor empedernido que foi durante tantos anos.»
Nem sempre a lápis (73)
«O interior da nossa casa tem sempre um antigo e obsessivo paralelismo com o do nosso cérebro.» (Vila-Matas); assim, não me foi difícil, vi-o com previsível naturalidade no espaço do quarto seis do Pátio de La Luna. Conhecia-lhe a existência desde o determinante Verão de 2006, quando perguntei em até Jajouka, se não haveria «um quarto com varanda – é pedir muito, uma açoteia para estender uma esteira e bater uma sesta? – com vista para a praça de Asilah, com o mar à minha direita e o abismo da multidão a caminho do mercado, que vislumbro ao cimo da pequena rua que ladeia a muralha da Medina, por entre a balsâmica fumarada dos fogareiros a animar o lusco-fusco.»; acabava de vê-lo. Segundo um dos incompreensíveis recepcionistas, parece que já existia em 2001, quando passei uma semana no hotel Al-Khaïma, a escrever parte do título homónimo ao som das rolas e do mar de Setembro; devo ter uma foto sentado na esplanada ao lado da porta do La Luna, tirada no primeiro dia de 2009, feitas as despedidas de Tânger; sem café Hafa nem o de Paris. Mas não entrei, deixei-me ficar sentado à espera de nada até apanhar o autocarro; vi-a depois, tinha uma porta. Precisei do válido argumento da caducidade do passaporte para, intimamente, alijar um pouco a carga com que nos vamos sobrecarregando: deslumbramentos e trambolhões, sonhos e pesadelos, entrega e traição, passado e presente. Aberta a porta do quarto seis como um hábito – e de hábito me vestia –, vi as colunas de tijolo burro da casa do forno dos meus pais, passado de que me deserdei no apartamento número doze, em Porto Covo; vi as paredes e o telheiro do atelier do Monte Alto, feitas como as tinha visto e não as que o passado recente levantou, onde o interior da minha cabeça foi deixando de caber.
Sobrepostas, finalmente concluídas.
«É bom trabalhar nas Obras» (34)
«Admirou sempre os escritores que todos os dias empreendem uma viagem rumo ao desconhecido e, no entanto, estão o tempo todo sentados num quarto. As portas dos seus quartos estão fechadas, nunca se mexem e, no entanto, o confinamento proporciona-lhes uma liberdade absoluta para ser quem desejarem ser, para ir onde os levarem os seus pensamentos. Às vezes, entrelaça esta imagem dos solitários nos seus quartos de escrita com a que tem sido a obsessão de toda a sua vida: a necessidade de capturar um génio, um jovem que fosse muito superior aos outros e que viajasse melhor do que ninguém pelo seu quarto. Gostaria de tê-lo descoberto e publicado, mas não o encontrou e parece ainda menos provável que venha a encontrá-lo agora. Em todo o caso, suspeitou sempre que existir, existe. É só, pensa Riba, porque permanece na sombra: na solidão, na dúvida, na interrogação; é por isso que não o encontro.»
[Enrique Vila-Matas, Dublinesca; em tradução para a Teorema;
foto]
20 de agosto de 2010
Porque a Net fornece um novo dia
Só espero que tenha resistido um daqueles sofás encardidos
que em tempos lidos foram de lona crua
Às vezes, lá calha...
«Ele é produto de uma infância danificada, percebeu isso há muito; o que o surpreende é que o pior dano não tenha sido causado no aconchego do lar, mas sim lá fora, na escola.»
[Foto]
«É bom trabalhar nas Obras» (33)
«A angústia transmitida por todo o vislumbre de demência, vai-o deixando perdido numa deriva estranha pelo perigoso bairro infantil que há nos limites da sua mente, ali onde sabe que, a qualquer momento, pode perder-se para sempre. Mas, no último segundo, consegue escapar do perigo mudando de pensamentos, recordando, por exemplo, que tem inteligência moral, embora às vezes lhe pareça muito pouco ter só isso e outras, muito. E escapa finalmente do perigo recordando também que no próximo mês irá a Dublin. E recordando uma frase de Monica Vitti, em Il deserto rosso, uma frase que, para dizer a verdade – apercebe-se agora – é quase tão perigosa como o pode ser para todo o mundo o East End mais delirante e mais obsessivamente particular:
- Os cabelos magoam-me.
Também ele agora poderia dizer o mesmo. Spider de certeza que o diria. Spider, que anda tão perdido pela vida, não sabe que poderia imitá-lo e reconstruir a sua personalidade adaptando as recordações de outras pessoas, poderia converter-se em John Vincent Moon, um herói de Borges, por exemplo, ou num aglomerado de citações literárias; poderia passar a ser um enclave mental, onde pudessem abrigar-se e conviver várias personalidades, e conseguir assim, talvez sem sequer demasiado esforço, configurar uma voz estritamente individual, suporte ambíguo de um perfil heterónimo e nómada…»
[Enrique Vila-Matas, Dublinesca; em tradução para a Teorema]
À mão de ler (74)
«Fragmento sem data.
Ideia para uma história.
Um homem, um escritor, escreve um diário. Anota nele pensamentos, ideias, acontecimentos significativos.
As coisas começam a correr-lhe mal na vida. "Dia mau", regista ele no diário, sem pormenorizar. "Dia mau", escreve, dia após dia.
Cansado de chamar dias maus a todos os dias, decide assinalar simplesmente os dias maus com um asterisco, como algumas pessoas (mulheres) assinalam com uma cruz vermelha os dias em que terão a menstruação, ou como outras pessoas (homens, mulherengos) marcam com um X os dias em que averbaram um êxito.
Os dias maus acumulam-se; os asteriscos multiplicam-se como uma praga de moscas.
A poesia, se ele fosse capaz de escrever poesia, poderia levá-lo à raiz do seu mal-estar que floresce sob a forma de asteriscos. Mas a veia da poesia parece ter secado nele.
Há a prosa à qual recorrer. Em teoria a prosa pode conseguir o mesmo efeito purificador que a poesia. Mas ele tem as suas dúvidas. Sabe por experiência própria que a prosa exige mais palavras que a poesia. De nada vale enveredar pela prosa se a pessoa não confia que estará viva no dia seguinte para prosseguir a tarefa.
Considera ideias como estas - a ideia da poesia, a ideia da prosa - como uma maneira de não escrever.
No verso das páginas do diário faz listas. Uma delas intitula-se Maneiras de Pôr Termo à Vida. Na coluna da esquerda enumera Métodos e na coluna da direita Inconvenientes.
Das maneiras de pôr termo à vida que enumerou, a sua favorita, depois de pensar maduramente, é o afogamento, ou seja, ir à noite até Fish Hoek, estacionar perto do extremo deserto da praia, despir-se no carro, vestir calção de banho (porquê?), atravessar a areia e entrar na água (terá de ser uma noite de luar), arrostar contra as ondas, dar braçadas na escuridão, nadar até ao limite da resistência física e depois deixar que o destino siga o seu curso.
Toda a sua relação com o mundo parece processar-se através de uma membrana. Como a membrana lá está, a fertilização não se dará. É uma metáfora interessante, cheia de potencial, mas, tanto quanto vê, não o leva a lado nenhum.»
19 de agosto de 2010
18 de agosto de 2010
Às vezes, lá calha...
Nem sempre a lápis (72)
Feitas as contas por alto, assim a olho, encontro-me a meia centena de páginas da orfandade; de terminar Dublinesca, embora com Blanco nocturno (Piglia) no horizonte. Para ser franco, nunca apreciei Exploradores do Abismo; em contrapartida, recebi Diário Volúvel no momento em que mais precisava do acompanhamento de perspectivas determinantes para a minha contínua apetência de «mudança de atitude»; nomeadamente, em relação à leitura de diários, até então circunscrita à coutada El quadern gris de Josep Pla. Quanto a mim, ninguém me tira da cabeça que Exploradores parece corresponder aos compromissos contratuais em que um autor se obriga a publicar um livro por ano. Com que autoridade afirmo isto? Com a que me permito ter alicerçado concluída a tradução do sexto título de um permanente exercício de reescrita. O material – chamemos-lhe assim, para gáudio dos medíocres detractores de Vila-Matas – poderá ser sempre o mesmo: a construção de um enredo, de uma narrativa estimulada por uma capacidade de citação que entreabre o interior de uma sucursal da Biblioteca de Babel muito exclusiva; a perseguição onírica do (impossível, improvável) desaparecimento, rumo a um centro pessoal caleidoscópico; a colagem ou reencenação – e não reposição; isso é estratégia de sociedade recreativa – de situações anteriormente escritas e, portanto, vividas por um grupo muito privado de autores, artistas, realizadores do nada, bartlebies ou não. Mas, com Vila-Matas, é sempre assim; «acaba sempre por aparecer quem menos se esperava», o que, a umas cinquenta páginas do final, com maior incredulidade se foi entrelaçando e se esperava.
À mão de ler (73)
«Antigamente, no Natal, havia grandes reuniões na quinta da família. Vindos de toda a parte, os filhos e filhas de Gerrit e Lenie Coetzee convergiam em Voëlfontein, trazendo os respectivos cônjuges e descendência, esta mais numerosa de ano para ano, para semanas de gargalhadas, gracejos e reminiscências e, acima de tudo, comezainas. Para os homens era também uma época de caça: aves e antílopes.
Actualmente, porém, nos anos setenta, estas reuniões de família reduziram-se lamentavelmente. Gerrit Coetzee está sepultado há muito e Lenie arrasta-se num lar do Strand. Dos doze filhos e filhas, o primogénito já se juntos às sombras multitudinárias; em momentos privados...
Sombras multitudinárias?
Parece-lhe demasiado grandiloquente? Eu mudo-o. O primogénito já deixou esta vida. Em momentos privados os sobreviventes têm premonições do seu próprio fim, e estremecem.
Não gosto disso.
Eu risco-o. Não há problema. Já deixou esta vida. Entre os sobreviventes os gracejos foram esmorecendo, as reminiscências foram-se tornando mais tristes, as comezainas mais moderadas. Quanto às caçadas, já não as há: os velhos ossos estão cansados e, em qualquer caso, após anos e anos de seca, não resta nada no veld [savana, estepe] que se possa considerar caça.
Da terceira geração, os filhos e filhas dos filhos e filhas, a maioria está hoje em dia demasiado absorvida pelos seus próprios assuntos para comparecer, ou demasiado indiferente à família mais vasta. Este ano apenas estão presentes quatro da geração: o primo Michiel, que herdou a quinta, o primo John, da Cidade do Cabo, a irmã Carol e ela própria, Margot. E, dos quatro, ela desconfia que só ela recorda os velhos tempos com nostalgia.
Não compreendo. Porque é que me chama ela?
Dos quatro, Margot desconfia que só ela - Margot - recorda com nostalgia... Já viu como soa mal? É que não funciona assim. O ela que eu emprego é como se fosse eu, mas não é eu. Desagrada-lhe assim tanto?
Acho-o confuso. Mas continue.»
15 de agosto de 2010
Breve interlúdio musical
... pai que rouba filho, só podem ser gente de bom gosto;
quiçá, gostosos... fiufiu...
Às vezes, lá calha...
«Porquê intolerante? Porque me recuso, como diria (Pierre) Michon, a converter o milagre em profissão, o talento em carreira literária. A literatura não é um ofício, é uma doença; não se escreve para ganhar dinheiro ou ser bem visto, mas porque tentamos curar-nos, porque estamos contaminados, porque fomos apanhados pela tristeza.»
Nem sempre a lápis (71)
«solto, ou não solto, o falcão que pus no Livre des Rêves.
É uma frase de trabalho,
como o falcão é um falcão peregrino.» Escreveu Maria Gabriela Llansol, e O raio sobre o lápis mostrou-lhe que «não havia vento na noite.»
«É absurdo que já anoiteça, quando eu ainda precisava da luz do dia, é surpreendente que eu tenha terminado a instrução espiritual do falcão quando ainda não abandonei nem o ser, nem concluí a obra.»
Não há vento na noite; nem o adejar de um lápis.
[Foto]
«É bom trabalhar nas Obras» (32)
«Era o último editor? Seria o ideal, mas não. Via diariamente nos jornais as fotos de todos esses jovens novos editores independentes. Pareciam-lhe, a grande maioria, seres insuportáveis e mal preparados. Nunca pensou que viria a ter substitutos tão idiotas e custou-lhe a aceitá-lo, um processo longo e doloroso. Quatro pacóvios tinham sonhado substituí-lo e, finalmente, tinham-no conseguido. E ele próprio acabara por lhes abrir o caminho, tinha-os ajudado a crescer falando bem deles. Foi muito bem feito, por ter sido tão bastardo, por se ter mostrado tão excessivamente elegante e generoso com os falsamente discretos novos leões da edição.
Um desses novos editores, por exemplo, dedicava-se a apregoar que vivemos um período de transição para uma nova cultura e, querendo crescer sem esforço, reivindicava narradores de prosa, na realidade, obtusa, que tinham encontrado uma mina na «linguagem nova da revolução digital», tão útil para encobrir a sua falta de imaginação e de talento. Outro jovem editor procurava publicar autores estrangeiros com o mesmo gosto e estilo do próprio Riba e, na realidade, só conseguia imitar o que este já tinha feito incomparavelmente melhor. Outro queria copiar os exemplos mais vistosos do mundo da edição espanhola e sonhava vir a ser uma estrela mediática e que os seus autores fossem meros peões da sua glória. E, em todo o caso, nenhum dos três parecia suficientemente astuto para aguentar os mais de trinta anos que ele aguentou. Tinha ouvido que planeavam fazer-lhe uma homenagem em Setembro, e que o revolucionário digital, o imitador e o aspirante a superstar se encontravam à cabeça da mesma. Mas Riba só pensava em fugir deles, porque por detrás daqueles movimentos havia interesses ocultos e muito pouca verdadeira admiração.»
[Enrique Vila-Matas, Dublinesca; em tradução para a Teorema;
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14 de agosto de 2010
13 de agosto de 2010
Porque a Net fornece um novo dia...
«É sobretudo uma livraria de poetas, que por lá vão passando para falar com o Changuito, espreitar as novidades, dizer mal ou bem deste ou daquele e encontrar outros poetas que também por lá passam para falar com o Changuito, espreitar as novidades e dizer mal ou bem deste e daquele (como dantes se passava pelas mesas do café Gelo ou do Monte-Carlo, quando ainda havia em Lisboa tertúlias literárias dignas desse nome).»
Às vezes, lá calha...
Os sonhos, a dormir bem acordado, são ficções da realidade. Sou frontal, não sou teatral, nunca aprendi a escrever na terceira pessoa do singular; é demasiado singular para mim.
[Foto]
Nem sempre a lápis (70)
Onde é que eu ia? Não ia, parece.
Embora tenha ficado um bocado perplexo quando levantei o lençol de água para ver o cão e, em vez dessa evocação clássica, se me deparou uma chusma de pintores a chuchar-lhe a carcaça ensanguentada.
Depois encostaram uma escada para o lado, digamos de fora da moldura, por onde desciam os mais satisfeitos.
Arrotando no espaço da tua distracção, prossegui.
[in A cicatriz do ar]
À mão de ler (72)
«2 de Setembro de 1973
A noite passada, no Empire Cinema, de Muizenberg, um antigo filme de Kurosawa, Viver. Um enfadonho burocrata descobre que tem um cancro e lhe restam apenas meses de vida. Fica atordoado, não sabe o que fazer nem para onde se virar.
Convida a secretária, uma jovem efervescente mas desmiolada, para tomar chá. Quando ela tenta partir, ele retém-na, agarrando pelo braço. "Quero ser como você!", diz ele. "Mas não sei como!" Ela sente-se repugnada com a nudez da sua súplica.
Pergunta: como reagiria ele se o pai o agarrasse assim pelo braço.»
[J. M. Coetzee, Verão; trad. J. Teixeira de Aguilar, D. Quixote, Fevereiro 2010;
12 de agosto de 2010
11 de agosto de 2010
Sem achas para o brasido
Decorrido um ano, praticamente, após a euforia 2666 – em tempo oportuno critiquei a possibilidade de se comparar o livro póstumo de Roberto Bolaño e Ulisses de James Joyce, por razões óbvias; ninguém o lê, calinada de marketing – subscrevo inteiramente tanto a avisada opinião d’ O Patrão da Barca, foi a que li primeiro, como a tomada de posição do editor do autor que, repito para que se recorde, confessava alguma dificuldade em considerar-se chileno ou mexicano. Viria a morrer em Blanes, uma terriola costeira a Norte de Barcelona. Poderá parecer irrelevante o feitio ou circunstâncias que fizeram de Bolaño um andarilho, detenho-me mais na ânsia de uma atitude apátrida, extensiva à literatura e ao uso dela. O que escrevo a seguir não adianta nada de novo: Bolaño está para a literatura, faminta de um Rimbaud, como Jim Morrison ficou para o rock; aliás, o género de música preferido pelo autor de 2666 e grande apreciador de M. C. Escher; tratava-se bem. Basta uma breve busca em imagens, no Google, para os nossos olhos passarem a ver Bolaño por tudo quanto é sítio; não me dei ao trabalho de confirmar, se grafitado também no Père-Lachaise. Nem à canseira imobiliária, de senhorio a verificar se alguma parede afirma que está vivo, preto no branco desaparecido algures no deserto de Sonora a partir teclados; é possível que lá cheguem. Quanto a 2666 propriamente dito – pedi para reservarem o exemplar especial (selado, sedado) durante a apresentação na Ler Devagar, comigo em Porto Covo – comecei a lê-lo na edição popular, mas algo se interpôs. Contaminado pela retoma da euforia, vou acreditar que se trata de mera coincidência, agora predominantemente anti-Bolaño e ele raladíssimo, procurei em Entre paréntesis (artigos, entrevistas; o restolho, digamos) um episódio vivido por Bolaño e contado a Mónica Maristain, para a revista Playboy:
«Alguma vez teve medo dos seus fãs?
Tive medo dos fãs de Leopoldo María Panero (…) Em Pamplona, durante um ciclo organizado por Jesús Ferrero, Panero encerrava o ciclo e, à medida que se aproximava o dia da leitura dele, a cidade ou o bairro onde ficava o nosso hotel, foi-se enchendo de freaks que pareciam acabados de fugir de um manicómio, que, por outro lado, é o melhor público a que pode aspirar qualquer poeta. O problema é que alguns não só pareciam loucos como também assassinos, e Ferrero e eu, tememos que alguém, a certa altura, se levantasse e dissesse: Eu matei Leopoldo Panero, e a seguir pregasse quatro balázios na cabeça do poeta e, já agora, um no Ferrero e outro em mim.»
Delinquência organizada, não hesitaria David Toscana.
Meditação na tinturaria
Ó {anita} olha eu a assinar um quadro
(é uma maçada: só vejo Rothko, Motherwell, Vareta...)[Foto: Nico]
Porque a Net fornece um novo dia
(Neste texto há uma incorrecção: além de Nocturno Chileno, entretanto a Teorema já tinha editado Estrela Distante)
Nem sempre a lápis (69)
Feita a catarse do blogue e da ida – sem retorno – a Asilah, sinto necessidade de dar um jeito aos livros, de lhes dar um sentido que me facilite o acesso rápido, sem os incorporar na organização burocrática por autor, cronológica, bibliográfica. Exceptuando as prateleiras museológicas para o património afectivo das colecções da & etc. e da frenesi, preciso apenas de arrumá-los de acordo com a presente necessidade de saber onde está determinado livro e alguns livros de determinado autor; sem permanência que a ultrapasse, outras urgências sobrevirão. Decidi também ir a Lisboa, sexta-feira; depois do pequeno-almoço abasteço-me para um fim-de-semana de cozinha – ao domingo não há sopa para funcionários e solitários autistas –, volto a casa para abrir o e-mail e traduzir horas razoáveis até ir a Lisboa; só isso. Como é bem possível que acabe por jantar e dormir uma noite a Mortágua, tendo o cuidado de evitar a Festa das Tasquinhas; para mal dos meus (muntos) pecados, a prótese já não me permite arroz de galo nem bacalhau no forno com batatas a murro a nadar em azeite, de quem o serve.
Quanto ao solitário autista, não é inteiramente verdade; ao fim do dia, quando repito o pequeno-almoço ao lanche para despachar o jantar, a mesa de vizinhas tagarelas e o recanto da minha –, onde inventei a existência de uma minúscula cobra verde no tronco da floreira, que me dá um ar exótico e deu cabo dos nervos de uma empregada durante uma semana –, essa tertúlia e eu passámos a cumprimentar-nos depois do estardalhaço armado por um cão com um boneco no berço de um dos netos que vêm arejar. O animal estava tão irritado e ela tão distraída, que até mordeu à dona, e aí não me contive: Esta agora foi cómica; então estou com os nervos em franja e ainda por cima bates-me? É assim que se traumatizam. Rimo-nos. Cruzámo-nos mais de trinta anos a subir e a descer a praceta, cabisbaixos, cara ao lado quando não dava para apontar em frente; irritavam-me solenemente as conversas com que bombardeavam a minha ausência, me interrompiam o direito de estar a olhar para nada; obrigaram-me, várias vezes, a mudar de mesa e a levar com o vaivém dos skaters. Exceptuando uma barbie sexagenária com expressão de bulldog, mantemos uma longeva e recíproca antipatia, já peguei numa bebé ao colo, e pareceu-me ou foi mesmo verdade, que as ouvi acotovelarem-se e baixar o tom de voz, enquanto esvaziava os bolsos dos chinos e dispunha em cima da mesa – com minúcia milimétrica, rigor de instalação –, o moleskine carteira-shandy, o porta-moedas de prata em cima dele, o trambolho do telemóvel ao lado, a lata de enrolar cigarros e a onça de tabaco em cima dela, saído de casa com o lápis acabado de afiar.
«É bom trabalhar nas Obras» (31)
«Após o considerável e inútil esforço mental, sentiu-se quase de rastos. Pensou na reprodução de Stairway, o pequeno quadro de Hopper que havia no apartamento e que o tinha obcecado desde o primeiro dia. O próprio quadro tinha-lhe dito que não saísse. Era uma pintura que convidava a não sair de casa. E, no entanto, ele tinha decidido abrir a porta e lançar-se à chuva, à rua. No entanto, o quadro, apesar de Hopper ter pintado nele uma porta aberta para o exterior, tinha-o convidado, tão nítida como paradoxalmente, a ficar em casa, a não se mexer, nem louco. Mas já era demasiado tarde. Tinha desafiado o quadro, tinha saído.»
[Enrique Vila-Matas, Dublinesca; em tradução para a Teorema;
10 de agosto de 2010
Às vezes, lá calha...
À mão de ler (71)
«Exerço muitas vezes o ofício de estrangeira,
com pouca fé de que na impossibilidade da língua
se entenda a natureza dos meus gestos.
Rasgar a água,
esgotar a paciência dos mortos.»
[Marta Chaves, onde não estou, tu não existes; Tea for One, Lisboa 2009]
Rasgar a água,
esgotar a paciência dos mortos.»
[Marta Chaves, onde não estou, tu não existes; Tea for One, Lisboa 2009]
9 de agosto de 2010
8 de agosto de 2010
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