30 de junho de 2013

Este é-buque que vos deixo (2)



não há silêncio numa folha em branco :
refém de um trrrim : écran verdelíbido quespicha a manhã emurcha a madrugada : seca a solidão da noite : cabouca salpicada de pin’s : interrupções : hemorrágica falha de linha : gangrenado :
julgou reconhecê-la no signo egípcio representado pela pena
«o que tudo traça» : no seu próprio «pequeno pedaço de parede amarela» : sequência de visões dignas de certidão de óbito :
também os pacientes de melancolia se incluem entre os degenerados que alcançaram esse estado especial, caracterizado pela ciência e a filosofia alemã como dasen ohbe leben :
derradeira oportunidade dos objectos manifestarem a sua aura : antes dos Nomes : olho plúmbeo e gelado que os mantém amarrados ao chão : afugentando os Nomes : escorraçando-lhes as cores :
«o irreparável já
aqui está…» : o pôr-do-sol não era muito mais atraente do que o seu longo e monótono périplo sobre as nossas cabeças?
quadro feito não de cores mas com o Nome das cores : Nomes iluminados : e a cor ressoou no quarto com a brutalidade da luz mencionada :
água :
manancial oculto no próprio Nome de onde brotava : Muro sou, e os meus seios são como torres. Assim me tornei aos seus olhos como quem encontrou a paz : asno sarnento a ruminar um livro : ovo projectado no ar pelo silvo das serpentes : picado pelos espinhos ígneos dos ouriços : ostra aberta ao sol :
secante tumular :
ovo surgido da essência dos cinco elementos primordiais : alado
ovalado : pégaso :
hylé :
chama vertical valoroso e frágil : constrói a sua casa como a aranha :
a morada da aranha é a mais frágil das moradas :

paletartudida no recato da solidão : OBuses cor de placenta : centos de crónicas dágua feminina : um ovo? : Nome gorado pela pena que traça : empurra o horizonte : late com um latido à dimensão do chat oculto no log : propriedade do lodge : solidão jurássica : mente
ausente no manancial do olho : três
olho dado : trespassado pelo asno que lê : rumina : um livro sarnento na secura sardenta do crepúsculo : périplo monótono a noto :
não há silêncio numa folha em branco : pregão do esparto e da incredulidade : servem de repasto às aves : à sofreguidão urbana : aquecem a luz ausente :
as palavras têm a intensidade ambígua do poente : rio dentro de uma vaga : a escritravessos limites do frio : a vocação da fome :
servem de repasto à arrogância : ao medo : o relógio da igreja anuncia um tempo ignorado : último anel aberto pela pedra que se esconde no esquecimento : p’raca
respiração da chuva apodreça o ar : dobre os telhados : afine o voo pelas rotas do Sol e da abundância : pira de fumolento vigiada pelaridez alquímica dos carvoeiros :
na escrita do vento e da distância : voz da ausência : concerto de moscas enlouquecidas pela resina : ferramentas da ausência e do tédio : enxofre soletrado pela febre e a caça :

gado enrolado na cauda : ninguém se debruça no vazio para escutar uma lenda : ninguém chega do rio : ramo de peixes a gotejar
no soalho : rodapé africano com que justificamos a história :
a solidão : só a cortiça
pactua com a memória : solidão bordada a folhelho e sobras de sol :
os carris fervem nos canteiros : apeadeiro da adolescência : mandala de cinzas sobre a mesa :
mesa posta para o repasto da cultura :
mãos que recolhem cinzas como quem esbanja arco-íris ancestrais : areia devorada pela arrogância europeia da solidão : como se esfolasse a carepa da memória :

quanto tempo demora a chuva : comenvelhece um gesto renovado pelo silêncio : as palavras dão-te fruto
na bocaparecem-te manchas : os subterrâneos sustentam as trevas : em breve serão um animal com a cauda adormecida : exacto e inteiro às portas do ar : tão azul : a água tão
levaté onde sangra : voz precipitando a boca venenosa : traduzida
para as frases mortas das paredes :
fotografada pelolhar horrorizado de uma criança :

o vento nunca nos devolve a voz porque
o eco devora as palavras : silêncio à tona
do sono : à boca
das cisternas habitadas pelo som que não sacia : repetem a demanda juntao sono :
lugaresatravancadospelasecura : ilhas da memória : procissão rural das bestas sobrevoada pelas aves recortadas
na distância : os barcos içam a Lua no pavilhão :
para lá da enseada é tudo novo e desconhecido : cardumestilhaçam alinha dorizonte : itinerário gravado no mar : nos cardos trémulos : tecidos debruados a púrpura e açafrão : novelos do desejo : lata de cal derramada no azinal : arquitectura do sonho e da levitação : a secura calcina a sofreguidão : a cultura do pesadelo : pátios onda calamadurece : perpetuado pela condição periférica : a tradição tribal : vista do cansaço do oceano : o absurdo do sonho :
a enormidade do pesadelo : a voz húmida :
irrompe da terra : a casca estala sobo Sol : sombra da sede gravada no xisto : conserva o verde das folhas curtas dobradas pelo calor : a
nota dobada napa ginação feminina : corte de crónica : alinhavada com OBuses antes de usar :
não há silêncio numa folha em branco

29 de junho de 2013

Este é-buque que vos deixo (1)



Call center
(an electronic tale)
 




 
 
escrever é retirar a linguagem do mundo
Ernesto Sampaio














Material:
releitura, palavranotas, relidas, saquexaltação, retradoação, revisão&visitação, electronic tale, massificação, reautor que revolta, não revem.

28 de junho de 2013



“Ya veniste, está bueno, anoche soñé una história, te la voy a contar”,
era assim que um velho contador de histórias de Hidalgo começava a contar o que acontecia quando o Sol se apagava de dia (um eclipse?) e os coiotes espantavam as galinhas.
En esse tiempo los sures le llamaban Maglo al pueblo. Ellos vivían aquí debajo de la tierra, hacían hoyos e se metían en ellos; pero también hacían ramadas.
tenho um conversor, ainda que os exercícios de treino não tenham passado da fase de aquecimento : confortavelmente sentada em frente do televisor : titilando o fanêspro cas tibernas de elite :
indispensável ao «zapping» do meu contentamento, recolhendo
as novidades : saltitando de canal para canal : esfregou asmãosa seguir
chamando-lhe gesto simbólico :
Por más que esforzaban la mirada no alcanzaban a mirar dónde terminaba el mundo, ni sabían qué detenía el cielo.
convocação de um censor : super-eu colectivo de índole nacional : especialização que permite criar anões em barricas : sem distracções de género nenhum (ninguém gostaria que uma companhia de ópera se dedicasse ao futebol, pois não?) :
Because I do note hope to turn again : bailarinos gnaoua, de camisa e calções imaculados, pernas nuas, sombrias, escorreita e elementar nudez :
Because I do note hope : local comercial portátil : Because I do note hope to turn : esquálidas, magras, insólitas existências : muezzin electrocutado pelo ranço do chergui :
Entonces fueron a buscar al Sol y a la Luna. Los curaran tocándoseles el pecho con crucecitas mojadas en tesgüino :
antiga mente, deslumbrada mortausente : nenhum olho nessestranho, na velha que navega na manteiga, crê-me : elenice não fará bruxaria, nisso está ele confiante nos seus souvenirs de guerra, que revêm, pós taisilustrados, papelosas enviadas pelos jibrotes, para ajudar a construir o memorável lamurial, pardocentos cachaceiros : não despejes os teus restos : a roda roda forte mente : eu ta seguro, a morte, diapasão pulsando no recato do malheiro : seguro pelas gadochas do galfarro a tonito.
essa coisa a que chamamos tempo : não há nada mais privado do que o tempo – Les dijo que la Tierra es circular como una tortilla o un tambor, y que el cielo es como una tienda de campaña azul sustenida por columnas de fierro – nem mais diverso do que o modo como é vivido :
no seu melhor, tem uma liberdade inventiva e uma capacidade irónica e de irrisão assinaláveis : no seu pior, cede facilmente à incontinência imagética, que abririam as suas portas a uma dimensão outra do discurso
sobretudo numa época em que as linguagens dominantes se parecem colorir de uma pseudo-objectividade seriopática
sonolência das almas sonolentas :
«A satisfação no trabalho ordinário, na vida familiar, na vida social.» – E acrescenta: – «Se o mundo se perde, se o homem se aliena nas “catedrais” emergentes do consumismo, então leve-se a Igreja a casa, à rua, ao trabalho.»
Sentimento geral de vulnerabilidade e medo quanto ao futuro :
«Tenho a impressão que diminuo; há cada vez menos de mim em mim. Não me resta senão a minha recusa fundamental»

escrever intempestivamente é isto : é apostar que é possível ligar o fundo das correntes : com a forma dos acontecimentos : cultivar a memória : decifrar a permanente e prodigiosa invenção de factos de que cada vez mais é feita a comunicação : perscrutar o horizonte dos murmúrios e das expectativas : procurar os sinais do imprevisível e aguardar as rotas da contingência :
«Não é uma filosofia e nem sequer uma ideia: é um movimento de consciência que nos leva, em certos momentos, a pronunciar dois monossílabos: sim ou não».
linguagem que reinventa o mundo enquanto passa por ele : mas uma mãe é, por definição, imune ao «kitsch» filial : oferecendo-lhes uma nesga de sonho e uma ginástica intensiva de boas maneiras e resignação – Não resisto, pois, ainda que em jeito de fim de festa, de lhe adivinhar a necessidade de extrema-unção – a morte súbita não tem geografia :
bagagem esquecida no comboio, deixando nas mãos do leitor, nos seus olhos abertos, a luz de uma sabedoria : abrindo a porta de uma intimidade : não porque tenha acabado : mas porque deixámos de saber para onde vai :
é então que se compreende melhor a grandeza de certas vidas trágicas e a sua recusa fundamental : um não assim pressupunha alguma ingenuidade e uma grande convicção sobre o poder alquímico da palavra :
era também, uma celebridade, num tempo em que a celebridade se tornara uma nova forma de religião e uma ponte entre o sim e o não :

uma gota de água é mais sensível do que um cão : não tem utilidade nenhuma – S’l’m aleikum – não constitui nenhum jogo : é um caso de espontaneidade mágica : andar nas duas margens de um ribeiro é, pelo contrário, um exercício
aliás difícil : muitas vezes
à noite vemos fogueiras no campo : levantavam voo como parelha de grandes aves marinhas : horizonte retirado :
tratava-se de uma viagem : agora : era na direcção do Sul que partia a nave do sonho, em demanda desse país distante de onde vinham a luz e as cores : rebentos niilistas que se imiscuíam quase pictoricamente com as contingências de uma vida pautada por disputas :
pincelada pelas infidelidades consentidas ou não consentidas :
usar no olhar esse estigma de irremediável messianismo : O my people, what have I done unto thee : que tantas vezes julgou apreender no sabor a uva nocturna dos seus lábios : Horto fechado eras minha Irmã, Esposa, horto fechado, fonte selada :
mentavogar entre duaságuas comum barco prestesanaufragar faz trabalhar as caldeiras rotasatodovapor : catre de má morte
tão diferente da enorme cama de madeira onde navegou pelo mar dos sonhos duranta bonança dainfância : sonhar com os olhos abertos, desmontando a realidade como num jogo de espelhos :

para poder ser verdadeiramente contada, toda a aventura de viagem deve estar envolta pela presença de uma mulher : Adorable sorcière, aimes-tus les damnés? : como atrás da mulher desejada se pode esconder um simples desejo de morte : traça círculos concêntricos enquanto dança descalça : aproxima-se irremediavelmente dalgovivo que lateja sobruma mesa de madeira : Quem é essa que avança como a aurora, formosa como a Lua, pura como o Sol, temível como batalhões em acção? :
à noite era possível ver da aldeia as lanternas a brilharem : pirilampos na colina : como quem tenta fazer ver ao homem que carrega o caixão branco o quadro onde não passa de um insignificante pormenor : a Lua que o esperava no final da travessia por entre a sombra das cores que haveriam de concluir o quadro : faces
da moeda com que julgava pagar o direito moral de ocupar o testemunho dos locais : atiravam-se para dentro dos poços quando decidiam partir : chapéus de palha em sinal de despedida :
«Eh!, vem querido Esposo meu, corramos para os campos, deitemo-nos entre os pomares…» :

bastava-lhe o calor dos lábios da mãe : o homem adulto precisava do beijo ácido dos comprimidos : era a ideia de uma alvorada que persistira na sua mente uma
luz que tudo iluminaria
tudo recuperaria
tuduniria :
“Ya veniste, está bueno, anoche soñé una história, te la voy a contar”

26 de junho de 2013

Cadernos do Monte Alto

 
 
«Face a um doente acamado, torna-se perversa a colocação de uma janela larga que ocupe, por completo, o espaço de uma parede.
Mas como explicar isto a quem não confunde arquitectura com metafísica?»
(Gonçalo M. Tavares)

 
(Motivos de força maior – como se diz neste tipo de circunstâncias – obrigam-me a interromper a periodicidade aleatória do blogue e o acesso à caixa de comentários. Assim, tomei a liberdade de agendar um é-buque – ao alcance da impressão dos interessados – até, supostamente, ter alta. Depois, logo se vê; depois, se saberá.)
[clicar para ver condições]

24 de junho de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...



«… julgou ter vivido no inferno, mas que afinal aquilo era apenas o purgatório (o inferno fica no tinteiro, ficou nos poemas).»
(Pedro Mexia)
 
[posfácio de As minhas lembranças observam-me, Tomas Tranströmer]

Nem sempre a lápis (378)

Artesanato
(1966 / 70)
 
Atravesso Coimbra parado na Ponte a atirar pedacinhos de tabaco água.
Há em todo o rio um mistério imenso a terminar no mar.
Penso então em todos os peixes, em todas situações construtivas que emergem dos meus dedos.
Penso que será breve a minha esperança coimbrã, minha correria pelas ruas desertas com o cachimbo apagado.
Penso na solidão da palavra convívio, nesses tipos fixes que escarram vida pelas sanitas abaixo.
Entro no Haeminium com a cerveja a latejar nas fontes da cabeça, e há um grande reencontro com os vidros das montras
espreguiçando-me neles.
Entro no eléctrico com os pés a abanar, dobrando o bilhete entre os lábios, espreitando levemente a cidade, como um sonho filtrado por uma rede metálica:
quadradinhos, quadradinhos.
Sentado no Parque, vejo pássaros com os dentes vibrantes de pasta dentífrica, devorando costeletas panadas, palavras curtas,
abraçando simplesmente as árvores.
Rebentam maçãs por toda a parte: uma guerra a sustentar pelos comedores de flores.
Na Ferreira Borges cresce uma palmeira com folhas de estearina:
julgo que vou outra vez à caça.
Empreiteiros levantam nas pás os monumentos da cidade, a tragédia das auto-estradas.
Descobrem os túmulos soterrados pelos meus passeios clandestinos de motocicleta.
Fico parado no passeio serenamente envolvido pela espuma dos pistons.
É então que, envolto numa imagem psicadélica, me surges tu, José de Matos-Cruz, e apresentas a cidade citando Cafre, de quando em quando.
Paramos na Rua de Saragoça, junto à lavandaria do mesmo nome.
Em frente, um prédio de que apenas me recordo em construção.
Falas-me de coisas várias, de matemática poética, e os carros passam com o destino fugindo-lhes pelo escape.
Despeço-me de ti na certeza de voltar muito tarde pá, quando no Gil Vicente acabar a soirée e, tiritando de frio, esperar por ti à entrada entre a multidão que me olha lacónica, apenas para te dizer que estou de passagem; perguntar se posso ficar essa noite em tua casa.

[in, Alcateia; Hugin, Setembro 1999]

Papiro do dia (419)

«Não utilizava os dedos para ninharias. (Muitas vezes repetia a frase: não utilizar os dedos para ninharias.) Concentrava-se; sabia que tinha poucos anos de vida; a doença veio: ficamos juntas uns anos, depois ela permanece e eu parto. Pois bem, havia que concentrar a energia que existe nos dias ou que existe num corpo e se dirige aos dias, concentrá-la – à energia – como um rolo de carne, estar pronta para agir. Dispensando ninharias. Os dedos devem tocar só no que é espesso, no que é fundamental; o urgente tem de coincidir com o essencial, com o que altera de alto a baixo. Como uma pancada forte no momento em que a recebemos: todas as coisas do dia mais insignificante se devem aproximar desse momento em que se recebe uma pancada forte. Mylia olhava-se ao espelho: estou viva e já dei um passo mau. Estar doente é ter dado um passo mau, um passo diabólico, murmurou Mylia. Uma doença que altera de alto a baixo.»
[Gonçalo M. Tavares, Jerusalém; Caminho, 12.ª ed. Março 2012;

23 de junho de 2013

É bom encaminhar o fim da vida

... com a alegria possível do início
[edição gratuita limitada aos portes por correio (2€)]

22 de junho de 2013

À sombra da figueira, não te sentes nem adormeças

... claro, claro

21 de junho de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

O último nevão do meu avô
 
«Há quem receba dinheiro. Ou palavras. Ou diários íntimos. Há quem não receba nada. Eu recebi como testamento do meu avô esta poesia muda das últimas fotografias que tirou, recolhidas durante mais de uma década no interior da sua antiquíssima Rolleiflex. Quase em jeito de epitáfio, como se pretendesse transmitir por imagens ao neto que nunca mais veria: não procures mais, o essencial da vida é isto.»
 
[assim cheguei aqui]

Às vezes, lá calha...

«“Estes indivíduos não trazem vestida uma única peça de roupa”, indica a legenda. “Pertencem a uma sociedade cujos membros são obrigatoriamente tatuados”.»
(Sylvia Plath)

Nem sempre a lápis (377)

Alcateia
(1966 / 70)
 
Há cidades inexistentes com a população escondida nas harpas das casas.
Têm geralmente um rio onde afogam a dor e o pecado dos dias que não consomem.
Por vezes os exércitos descem à rua para que as pessoas não esqueçam o Terror e se concentrem nos passeios, rendendo-lhes homenagem.
São cidades para destruir e construir, satisfazendo as necessidades da procriação.

Cidades, ternas cidades que invento e desvendo com o peso da opressão.

[in, Alcateia; Hugin, Setembro 1999]

Papiro do dia (418)

«– As pessoas devem poder ter aquilo que querem, dê lá por onde der. Ainda no outro dia tive aqui uma senhorinha – Carmey imobiliza a palma da mão em pleno ar, a menos de metro e meio do chão. – Desta altura. Quis o Calvário nas costas, a cena completa, e eu fiz-lhe o serviço. Levei dezoito horas.
Miro com ar desconfiado os ladrões e os anjos do cartaz do monte Calvário.
– Não teve de encolher um bocadinho o desenho?
– Não senhor.
– Nem um anjo ficou de fora? – espanta-se Ned. – Nem aquela parte ali do primeiro plano?
– Não tirei nada de nada. Um trabalho de trinta e cinco dólares, a cores, com ladrões, anjos, letras góticas, o serviço completo. Ela saiu aqui da loja inchada como um pavão. Não há por aí muita senhora que se possa gabar de ter nas costas o Calvário inteirinho, a cores e tudo.»
[Sylvia Plath, Zé Susto e a Bíblia dos Sonhos; trad. Ana Luísa Faria, Relógio d’Água 2013
peixotices]

19 de junho de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Foi no ano em que começou a guerra,
e com ela o mundo real e a diferença.»
(Sylvia Plath)

Nem sempre a lápis (376)

Artesanato
(1966 / 70)
 
Quando na viola surgia uma nota de cinquenta paus ou os cegos se abraçavam no ponto-e-vírgula, Deus descia as escadarias do Tempo e topava a moto em escape livre.
Senhor de metamorfoses, envolvia-se de cabedal e blue-jeans partindo para Aveiro depois da seca.
A noite era-lhe indiferentemente um sono perdido, uma estrada a desbravar.
Ficava-se na meditação dos lábios calcinados, na profecia laranja das portas.
O mapa era a mão de gesso comprada nos antiquários, como um trajecto demasiado velho para ser verdade.
Deus ia na mesma.
Os cabelos envoltos em algas ou sorrisos que adivinhavam amor.
Os lábios eram campainhas mal tocadas que apenas assustavam os fiéis.
Aparecia o Fernando na berma da estrada à laia de abraço de gente mística impressa nos posters venenosos.
A Mª. Porto emprestava-lhe os óculos grandes, as pestanas de mosca, as frases mentalizadas...

Deus ia e vinha de moto, em escape livre, no sorriso da manhã por escalar, e era uma bênção.

[in, Alcateia; Hugin, Setembro 1999]

Papiro do dia (418)

«O pôr-do-sol hasteava a sua bandeira rosada sobre o aeroporto, e o som das vagas perdia-se no perpétuo zunido dos aviões. Extasiava-me com os sinais luminosos que se moviam ao longo da pista e observava, até a escuridão ser completa, as luzes intermitentes, vermelhas e verdes, que subiam e vogavam no céu como estrelas cadentes. O aeroporto era a minha Meca, a minha Jerusalém. Toda a noite sonhava voar.
Foram os tempos dos meus sonhos em technicolor. A minha mãe metera na cabeça que eu precisava de dormir horas e horas a fio, de maneira que nunca estava realmente cansada quando ia para a cama. Era a melhor altura do dia, essa em que ficava deitada à vaga luz do crepúsculo, mergulhando a pouco e pouco no sono, compondo mentalmente os sonhos que viriam a seguir. Os meus sonhos de voo eram tão convincentes como as paisagens dos quadros de Dalí, tão reais que eu acordava em sobressalto, com uma sensação aflitiva de Ícaro caído do céu aos trambolhões, mas um Ícaro que tivesse conseguido, no último instante, agarrar-se à cama fofa.»
[Sylvia Plath, Zé Susto e a Bíblia dos Sonhos; trad. Ana Luísa Faria, Relógio d’Água 2013]

18 de junho de 2013

Nico, vamos ao cinema?




17 de junho de 2013

Desliguei o tlm e fiz saber que ia a Huelva

a apreciar calçado na feira de Algoz e trouxemos uma dama-da-noite,
a arremedar ruas de Tânger, de onde veio o prato abaixo
«Zé Manel, o cão já encontrou a língua?»,
perguntei mas não obtive resposta
até ao S. João, ou nós ou os charnecos (lindos) damos conta dos figos
e amanhã vou fazer praia para esquecer os caracóis em Portimão
[não gramo frescuras de facebook, que nem tenho, mas chegam-me aos ouvidos]
 

15 de junho de 2013

12 de junho de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

«O futuro da literatura - já tivemos, num passado recente, uma esquizofrénica a chamar à atenção para o escritor como fundo. Agora é a invasão do anti-livro a esse fundo, que se destrói a si próprio. Por mim, é o futuro da boa literatura. Não concordo com nada do que diz, porque mais do mesmo, o Rui Bebiano.»

Às vezes, lá calha...

«Não me parece que uma “poesia de grandes parangonas” despertasse em mais leitores um interesse mais profundo que as parangonas dos jornais.»
(Sylvia Plath)
[ISBN]

Nem sempre a lápis (375)

Artesanato
(1966/70)
 
Nesse tempo os homens vinham com pistolas acesas nas mãos aos pontapés aos cegos que comiam peixe na tasca.
Ouvia-se o ponto muito repenicado dos que trabalhavam o primeiro dia na fábrica.
As borboletas e os periquitos preferiam a codorniz e a molécula.
Falava-se de peixe a cada esquina de peixe.
Os homens tinham violinos escondidos nas dobras das calças e outros andavam de bicicleta na avenida.
Os mosqueteiros cantavam a Marselhesa aqui e ali sem mais nada.
Os gatos surgiam de noite à janela a limpar bibelots.
Os meninos masturbados tinham as mãos cheias de calos e os olhos esbugalhados de surpresa.
Uma ou outra vez acontecia passar uma mulher bonita ou interessante e os homens assobiavam-lhe do café.
Os que tinham automóveis de corda lentamente os encordavam e ouviam o último LP dos Beatles.
O sr. Damião – estrábico – assomava à janela a sorrir à Toninha a olhar para a menina Elisa.
O ranho do bebé cristalizava no lábio e até fazia um vermelho bonito.
A menstruação era um mistério que causava asco.
Ah, nesse tempo tinha a mania que era bom e ia à missa de bicicleta com soquetes, ver as meninas.
 
[in, Alcateia; Hugin, Setembro 1999]

Papiro do dia (417)

«A grande utilidade da poesia é sem dúvida o prazer que proporciona – e não a sua influência enquanto propaganda religiosa ou política. Certos poemas e versos são para mim tão densos e milagrosos como o devem ser os altares de igrejas e as cerimónias de coroação das rainhas para os devotos de outras imagens bem diferentes. Não me aflige que os poemas só alcancem um número bastante pequeno de pessoas. Mesmo assim, já vão surpreendentemente longe – viajam por entre estranhos, chegam por vezes a dar a volta ao mundo. Vão mais longe que as palavras de um professor na sala de aula ou as receitas de um médico; mais longe até, com um pouco de sorte, que o tempo de uma vida.»
[Sylvia Plath, Zé Susto e a Bíblia dos Sonhos; trad. Ana Luísa Faria, Relógio d’Água 2013;

11 de junho de 2013

7 de junho de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Ainda eu mal aprendera a gatinhar quando a minha mãe me sentou na praia para ver o que eu acharia do espectáculo.»
(Sylvia Plath)

Nem sempre a lápis (374)

Artesanato
(1966/70)
 
Quando o aquário se abre, sinto as mãos apodrecidas nos bolsos. Pedras quentes com que enterneço os amigos e a breve magia do fogo.
As aves voavam baixo, incendiadas. Aves que tinham asas para saudar as pessoas convidadas.
Atravessavam as pontes,
poisavam levemente na cúpula das torres,
mordiam os dentes com a obsessão desconforme da tristeza.
Os peixes morreram.
Os caixotes estavam pejados de escamas para entreter vagabundos.
No parque, passeavam crianças louras com os bibes rasgados, os olhos estoirados de infância.
Eram crianças habitadas, crianças que destruíam cérebros com máquinas descuidadas e ficavam sorridentes com as imagens.
Loucas crianças adormecidas que passeiam pelas cidades medonhas.
Crianças absolutas,
podres.

Uma noite – digamos, uma noite – os milagres vinham cambalear para a rua.
Escondiam-se atrás dos prédios receados. Empestavam o ar de odor a morticínio – quimera solta – e percorriam as ruas caladas com os véus esvoaçando.
Tocavam os bancos vazios, ensarilhavam as colinas recortadas, escreviam libertações nas paredes dos bordéis, fechavam as portas das prisões, incendiavam as árvores calcinadas, afogavam as fontes bombardeadas, cantavam canções emudecidas, abriam os portões do Inferno, cuspiam nas labaredas do Paraíso, roubavam flores dos jardins, etc., etc.
angústia, ansiedade, pavor.

Quando se abre o aquário,
quando se fecha o céu,
as pessoas constróem os dias na cozinha, adicionam-lhe a pureza da sua invenção.
Sorriem para os amigos, convidam-nos para a mesa e dizem belas palavras onde começa o Pânico.
Depois matam-nos com a velocidade dos gestos.
 
[in, Alcateia; Hugin, 1999]

Papiro do dia (416)

«A paisagem da minha infância não ficava em terra, mas no fim da terra – nas frias, salgadas e movediças colinas do Atlântico. Às vezes penso que a minha visão do mar é a mais límpida de todas as coisas que possuo. Recolho-a, exilada que sou, como as roxas “pedras da sorte”, com uma orla branca a toda a volta, que apanhava dantes, ou como a concha de um mexilhão azul, com o seu interior irisado de unha de anjo; e, na rebentação da memória, as cores escurecem e cintilam, todo um mundo primevo respira.
Respirar, andes de mais nada. Alguma coisa respira. O meu próprio sopro? O sopro da minha mãe? Não, alguma outra coisa, algo mais vasto, mais distante, mais sério, mais cansado.»

[Sylvia Plath, Zé Susto e a Bíblia dos Sonhos; trad. Ana Luísa Faria, Relógio d’Água 2013;
mundo primevo]

5 de junho de 2013

Este gajo é Lynchado




Separados à nascença

3 de junho de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

 
 
 
«Estás vivo e, no essencial, há uma falha – não se ter ainda morrido não pode ser, afinal, nunca, a última das satisfações.»
(Gonçalo M. Tavares)

Nem sempre a lápis (373)

Artesanato
(1966/70)
 
Vinha em junho – mês que minha mãe fora fonte do meu surgir – falar-te dos campos com a árvore atravessada na garganta.
Falava-te deles e tu chamava-los docemente laranjeira.

Junho no rio nos mirava, e era diferente de junho por ter o lodo na espinha.
O sobressalto estava nos trinta dias amarelos que percorríamos.
Na metade houvera meu surgir. Minha mãe fora fonte.

Trazido de longe chegava-nos às narinas o vermelho do sol que nascia, e a manhã apodrecia lentamente de esperança e cortiça.
Os refrescos não eram a paz de ninguém.
As línguas em junho eram o escorrer dos nossos lábios pelas esquinas.
A bandeira preta no mastro quebrado.

Junho vinha de longe, vinha cansado. Vinha perdido, junho.
Sentava-se no passe-partout com as fábricas lagosta e o lodo dos rios – o lodo.
Na chaminé havia a desgraça de um dia.
Os homens andavam de óculos escuros.
Os degraus das portas eram a morfina do nosso olhar, embora ainda me não soubesse míope.

Junhoráculo, oráculo de junho, filtro, calendário na preguiceira.
Os cordões umbilicais eram esta esperança para lavar em junho.
Aconteciam-nos outra vez os crimes –
em junho.
 
[in, Alcateia; Hugin, Setembro 1999]

Papiro do dia (415)




«– Spider man! Ao seu serviço.
Assim mesmo. Sem mais. Spider man! Ao seu serviço. Escanifrado, um exagero de pernas. Ginga à minha frente pela rua de costas ligeiramente encurvadas, um boné descolorido dos Yankees enterrado na cabeça. Quando retomamos a fala, entrados na oficina, uma caverna platónica a que os olhos demoram a acostumar-se, dispara sem mais preâmbulos: "You talkin’ to me? You talkin’ to me?" Depois ri e conclui: "Sister, pergunte lá o que quer saber"».

[e está lido que lhe respondeu, aguarde-se em letra de imprensa]

1 de junho de 2013

É só facharia...

«Encontrei na estante A tentação de Existir, um livro de Cioran, publicado pela Relógio de Água, que tentei ler pela segunda vez e desisti. Não percebo como aquela verborreia oca pode seduzir alguém. Não parava de alardear uma falsa melancolia, de falar de suicídio e viveu até aos 84 anos, a maioria deles numa situação confortável graças aos direitos de autor que a Gallimard e outros dos seus editores lhe pagavam. Dizia que a Europa estava podre, deslocando o futuro para a América Latina mas vivia num belo apartamento no centro de Paris. Proclamava que a História não interessava nada, mas tratou de maquilhar a sua. Mais: fez-lhe um lifting. Depurou e ocultou os seus livros romenos onde manifestava simpatia por Hitler. A aldrabice instituída pautou a vida deste escritor (1911-1995) consagrado.»