30 de abril de 2010
Porque a Net fornece um novo dia...
À mão de ler (11)
Nem sempre a lápis (15)
Às vezes, lá calha...
[Ilustração: M.C.Escher]
29 de abril de 2010
À mão de ler (10)
Nem sempre a lápis (14)
[Foto retribuída por umas sirigaitas andaluzas que pediram que as fotografasse em pose pascal, sem mais filosofias]
Às vezes, lá calha...
28 de abril de 2010
Breve interlúdio musical
Já morri a morte certa
Já senti a fome, aperta a dor
Já bati à porta incerta
Viajei de caixa aberta, a dor.
Pecado, fundido, queimado.
Já desci lá em baixo ao fundo
Já falei com outro mundo e então
Já passei o limbo limpo
Já subi ao purgatório e vou.
Zangado, bem vindo ao passado
Pecado, arrependido, queimado.
Zangado, bem vindo ao passado
Pecado, fundido e queimado
Zangado, bem vindo ao passado
Pecado, arrependido, queimado
À mão de ler (9)
Nem sempre a lápis (13)
Passei aqui gratas tardes anotadas nos Blues, atendidas pela cumplicidade de outro empregado; mas seria numa esplanada em Santa Luzia que me senti «a apanhar Sol», sem o saber. Sem o barulho cavo do «vaivém para a ilha», com os barcos atracados no porto de pesca, as favas à algarvia prudentemente reservadas para o jantar. E depois, e depois que venha o galo de cabidela no restaurante da sociedade (verificar o nome) ou não estivéssemos na semana da Páscoa; sem missa. De tanto ouvir espanhol nos últimos dias, deixei de trabalhar; traduzo-me.
Às vezes, lá calha
27 de abril de 2010
«É bom trabalhar nas Obras» (5)
As composições das crianças são bastante optimistas. Muitas começam por dizer “o dia abre com o sol que estende os seus dedos bondosos sobre o campo” ou “com o cantar do galo rompe a aurora e as sombras vestem túnicas amarelas”.
Só Augusto Gutiérrez foge à regra. Ele escreve, por exemplo: “O cantar do sol rebenta os tímpanos do galo”.
É um desastre a Matemática. Repetiu o último ano e é o único rapaz da aula com um esboço de bigode nos lábios.
Tem duas irmãs. Aos domingos vou à praça, compro amendoim cristalizado e bebo uma Bilz sentado no banco de pedra e quando elas passam ao meu lado riem-se trocistas e eu fico corado. Augusto Gutiérrez tem óculos grossos e os lábios finos.
Na próxima sexta-feira faz quinze e passeia-se com um livro de Rubén Darío pela praça. Sabe de cor “Margarita está linda la mar y el viento trae aroma sutil de azahar”*, mas não são tanto os versos do poeta nicaraguense que lhe interessam, mas travar comigo uma conversa de homem para homem.
Segundo ele, quer saber se eu estive no bordel de Angol e quanto vale a noite com uma das raparigas.
Limpo as migalhas de amendoim das minhas calças azuis e digo-lhe que é uma conversa imprópria entre um aluno e um professor. Diz que se eu não lhe conto como é a vida, pedirá conselhos ao cura no confessionário.
Acrescenta que dentro de uma semana não vai haver só torta e velinhas na sua festa de aniversário, mas também música romântica norte-americana para bailar bem agarrado. As suas irmãs pediram-lhe que me convidasse. Teresa tem dezassete e Elena dezanove. Eu vinte e um. Aqui somos todos muito decentes. Não duvido que Teresa e Elena são de boa família. Mas cada vez que vão a Santiago, compram vestidos com decotes profundos e jeans que a elas lhes comprimem as ancas e a mim o ar.»
* «Margarida está lindo o mal e a brisa traz o aroma subtil a flor de laranjeira.»
[Antonio Skármeta, Un padre lejano (Versão final Outubro 2009); em tradução para a Teorema]
Nem sempre a lápis (12)
Começámos a aproximar-nos um do outro assim que iniciei o reconhecimento da baía. Ele, vindo da extremidade da Galé; eu, a partir da extremidade consensual da lota, ambos à babugem. Não nos cruzámos; desaparecemos um no outro.
Às vezes, lá calha...
26 de abril de 2010
«É bom trabalhar nas Obras» (4)
Porque a Net fornece um novo dia...
Nem sempre a lápis (11)
Este bloco acabou no Sul; durou um ano e uns trocos, poucos. Afeiçoei-me a ele; é à medida de qualquer bolso, não das calças, serve para guardar o BI, facturas, vales da fnac, lembranças. Contrariando o meu hábito, não arranquei mas risquei as folhas passadas a limpo, mantendo intacta a dimensão portátil e a vocação de secretária shandy; sem elástico. Vou conservá-lo bem manuseado e concluído, como um álbum de instantâneos para decifrar lugares; vou procurar uma fita nova para a máquina – Olympia – nas casas da especialidade. O caderno azul é demasiado hirto, não assenta bem em qualquer bolso.
Às vezes, lá calha...
25 de abril de 2010
Militares procuram Baptista-Bastos
«É bom trabalhar nas Obras» (3)
À mão de ler (8)
Fendida, a tarde deita-se entre as searas.
O grito exibicionista e rápido dos falcões
(dizem que fazem amor em pleno voo)
arma-se o vento e me sacia de intempérie.
Vencida e condenada na idade da recordação,
a celagem de bronze da tarde
recolhe-me na ripa.
Que longo olvido que já não quer mais memória.»
Nora Albert (pseudónimo de Helena Alvarado Esteve), catedrática de línguas e literatura, ensaísta e tradutora, publicou Mots i brases (2004) e Tentacles de cel (2008), figura nas antologias Eròtiques i despentinades. Un recorregut per la poesia catalna amb veu de dona e Antologia de poetes eivissencs (2008).
Nem sempre a lápis (10)
Ausente por outras pastagens, o casaco até nem faz assim tanta falta; entretenho-me apenas, no silêncio da luz da sala apagada, a desfilar pela ala dos meus fantasmas, sem o encontrar nas sombras que se espreguiçam e trepam pelas paredes de uma casa habitada por sedimentações de múltiplas memórias. Se fosse minha, e não foram poucas as vezes que o desejei, mandava deitar abaixo a parede em frente para a sala ocupar a inutilidade do quarto ao lado – quando a uso – e nadar na réplica do espaço que habita a minha cabeça. Por muitas remodelações que fizesse, conservaria intocável a composição da mesa sobre o espelho ao lado da cama; intimamente, receio o que passarei a ver quando sair do oftalmologista.
Às vezes, lá calha...
[Composto e impresso aqui, há algum tempo]
24 de abril de 2010
À mão de ler (7)
Nem sempre a lápis (9)
Às vezes, lá calha...
23 de abril de 2010
À mão de ler (6)
O teu velho amigo,
Andy
[Sam Savage, O Grito da Preguiça; trad. Fernando Villas-Boas, Planeta, Fevereiro 2010]
Nem sempre a lápis (8)
Sempre que ouvia as badaladas do relógio da igreja, quedava-me à entrada de uma viagem não reconhecida; era assim na praia, mais fortes de frente para o mar; foi assim em casa, mais veladas nas traseiras. Quando ouvi as badaladas aceitei a sina ubíqua de um relógio comum a duas igrejas: esta aqui, voltada para o mar; a outra ecoada ao fundo e à entrada da aldeia serrana do meu pai, no concelho de Celorico da Beira. A noite está calma, a lua cheia; escrevo no bloco apoiado na versão Hiperión dos Poemas sufíes (Rumi), com os pés apontados para Sueste e o computador ligado na sala.
Às vezes, lá calha...
22 de abril de 2010
Eles "andem" por aí...
Nem sempre a lápis (7)
Enquanto fazia um café, só hoje me chamou a atenção o aviso – «NÃO ACENDER» seguido pelo consequente «PERIGO DE EXPLOSÃO» – muito bem escrito; a esferográfica numa folha pautada, colada com fita prateada a tapar a janela do piloto do esquentador. Não foi o risco de tomar duche que me ocupou, mas a convicção de Felisberto Hernández ser o Marcel Proust de Montevideu, à medida que vou avançando na tradução de Contos Reunidos. Como não li o clássico francês, justifico a pertinência da convicção pelo anonimato do sul-americano.
No Sul pouco se nota, mas a hora mudou; é significativo distanciar.
À mão de ler (5)
21 de abril de 2010
Nem sempre a lápis (6)
«Era uma história que tendia a alastrar em todas as direcções e que, no entanto, se mantinha essencialmente portátil.» (J. D. Salinger)
À mão de ler (4)
~
Também não concordo com a declaração de que o Sr. Whittaker terá sido levado dali em lágrimas. As “pequeninas contas alumiadas” na sua face eram, creio, gotículas de Chablis que uma das senhoras – uma encorpada, de calções vermelhos – lhe tinha lançado à cara. Quando estavam a empurrá-lo para dentro do carro, reparei que o copo de papel amachucado ainda estava alojado na gola do seu casaco. Um símbolo ajustado, creio, a todo o episódio. A lançadora do copo, veio-se a ver, era uma amiga de Eunice Baker, que tinha lido partes do seu livro de poesia nessa tarde. Miss Backer, para as legiões que nunca ouviram falar dela, é co-editora da Notícias da Arte. Foi durante a leitura dela que Whittaker saltou para o palco da primeira vez. Segundo a vossa repórter: “Whittaker roubou o microfone e começou a vociferar contra a poesia da autora [Baker]”. Este não é de modo nenhum o tipo de exactidão que se espera de um jornalista profissional. Como homem de ciência, prezo bastante a exactidão. O que significa vociferar? O que foi dito, precisamente, durante essa particular instância de “vociferação”? Um relato factual seria mais ou menos assim: “O Sr. Whittaker, em voz alta (tinham-lhe desligado o microfone), mas com bastante calma, fez uma breve análise crítica do desempenho de Miss Baker, na qual descreveu a sua apresentação como ‘um mugido de menopausa’ e os seus poemas como sendo ‘traques’ de vaca’”. O vosso repórter diz então que o público “reagiu com vaias constantes”. Embora isto seja em geral correcto, houve pelo menos um par de rapazes, na parte de trás da multidão, que se ria às gargalhadas. As ondas de hilaridade desses dois alegres compadres flutuaram como estandartes sobre o burburinho geral e emprestaram uma tonalidade bastante diferente ao episódio. E este é precisamente o que quis sublinhar na carta anterior: a nossa cidade e o nosso estado precisam de pessoas como Whittaker, pessoas que se recusam a amaciar, e não têm medo de afrontar a “opinião pública” quando crêem que essa opinião está errada. E as pessoas que riem não merecem ter também o seu porta-voz?»
[Sam Savage, O Grito da Preguiça; trad. Fernando Villas-Boas, Planeta, Fevereiro 2010]
Às vezes, lá calha...
20 de abril de 2010
Nem sempre a lápis (5)
Meditação na livraria
«É bom trabalhar nas Obras» (2)
Mas naquela tarde em Mendoza as coisas ocorreram de outra maneira. A princípio ele esperava que os seus sonhos se entenderiam directamente com os sonhos. Mas depois começaram a atraiçoá-lo aqueles dez miseráveis que estavam no fosso. No entanto, ele tinha sido o grande culpado: por um lado, o orgulho dos seus sonhos tinha feito estirar, entre ele e os do fosso, uma distância cheia de esquecimentos (era como uma ponte cheia de buracos) e por outro lado ele tinha tiranizado com paixão cega aqueles pobres miseráveis; tinha-lhes tirado a liberdade de que teriam necessitado para servi-lo melhor: além disso, se a sua paixão não o tivesse cegado desde o princípio, quando trabalhava e ensaiava juntamente com eles, se se tivesse preocupado com a vida e os interesses de cada um e então eles ter-lhe-iam respondido melhor. Mas agora o seu orgulho e a sua paixão tinham sofrido um grande castigo; quando ele viu que eles não podiam cumprir o que ele lhes ordenava, nesse preciso momento quis preocupar-se com cada um deles: foi um recurso de desespero. Quando eles começaram a ficar rígidos, a reter cada um os seus próprios músculos e a confundir o jogo que deviam realizar com os seus companheiros, começou-se a verificar o desequilíbrio: eles iam-se estreitando entre si como jogadores grosseiros. E foi então que o director tinha ido baixando, pouco a pouco, a sua orgulhosa cabeça, quando tinha agachado, pouco a pouco, o seu corpo como se fosse pôr-se de cócoras; tentava comunicar com cada um em separado, mas estavam todos feitos numa massa informe que ia detendo o jogo, e começavam a mostrar os instantes de pausa em angustiantes silêncios que não correspondiam à obra; então, quando o director queria movê-los de novo, mudava de lugar a massa inteira, mas não lograva separá-los. Por fim, ele mesmo aderia ao pelotão, e a coisa terminava sem se saber como: jaziam todos no próprio fosso.»
[Felisberto Hernández, Contos Reunidos; em tradução para a Colecção Ovelha Negra, Oficina do Livro]