30 de abril de 2010

Breve interlúdio musical

Esvoaça por aí,
já são 4
mas não consta que seja ajuntamento

A carne é fraca, mas o molho é uma maravilha...

Porque a Net fornece um novo dia...

Aqui,
os poetas do Mal são de outra Natureza
[... e não faz parte da minha natureza esquecer a autoria do que quer que seja.
Foto: Nikolai Klimaszewski a partir de Man Ray]

À mão de ler (11)

«Mas um dia o G.G. meteu-se numa alhada. O bom do G.G. Encontrou uma miúda pequena nova na zona. E deu-lhe rebuçados. E disse:
- Bem, tu és uma menina muito bonita! Gostava que fosses a minha menina!
A mãe estava a ouvir à janela e desatou a correr aos gritos, a acusar o G.G. de molestar uma criança. Como não conhecia o G.G., os rebuçados e aquela conversa foram demais para ela.
O bom do G.G. Acusado de molestar uma criança.
Entrei e ouvi o Stone a falar ao telefone com a mãe, tentando explicar-lhe que o G.G. era um homem honrado. O G.G. estava sentado à frente do seu móvel, absorto.
Quando o Stone acabou a conversa e desligou, eu disse-lhe:
- Não devias dar graxa a essa mulher. Ela tem uma mente suja. Metade das mães americanas, com as suas queridas ratas e as suas queridas filhinhas, metade das mães americanas tem a mente suja. Ela que se lixe. O G.G. não consegue ter tesão, tu sabes isso.
O Stone abanou a cabeça.
- Não, as pessoas são dinamite! São dinamite!
Era só isto que ele dizia. Já o tinha visto antes - a acalmar, a implorar, a dar explicações a todos os doidos que telefonavam para falar sobre o que quer que fosse...»
(Charles Bukowski, Correios; trad. Rui Lopes, Antígona, Abril 2010)

Nem sempre a lápis (15)

«Olhe que a maré está a subir», alertou-me um paciente a mudar o isco das canas espetadas num baixio entre o rio e o avanço, discreto, das ondas. Dispensou-me o argumento de que pouco mais além iria, apercebi-me no regresso dos primeiros quinhentos metros, feitos com duas paragens para me sentar na areia e beber outros tantos goles de água; sem fumar. Caminhar pela praia, pelas dunas, exige uma tracção esquecida; sessões de fisioterapia mental. Desviei-me de um castelo com fosso e ponte, entregue ao assalto da babugem; por pouco não pisei um viveiro de ouriços-do-mar que não despertaram nem a cobiça nem a curiosidade destruidora de ninguém; picam, é preciso saber pegar-lhes para pô-los a secar e ficar com um caleidoscópio. Já antes, lamentei não ter levado a instamatic, quando vi o sapal vazio atrás do campo da bola; tufos sujos, outros ouriços recolhidos na lama debicada pelas aves migratórias. Entre os cinco ou seis exemplares de Livros do Brasil esquecidos na tabacaria, não é Ulisses que me dava jeito; era Gente de Dublin que me ajudasse a anotar Dublinesca na mesma casa. O carro-patrulha parou em frente da esplanada e – numa atitude de praia segura, como a escola – os agentes da GNR recostaram-se nos bancos com o Sol reflectido nas lentes espelhadas; não sei se ligaram o rádio. E é tudo, para além de ter molhado, literalmente, as botas.

Às vezes, lá calha...

Gosto de ler em plano,
da leitura linear;
não gosto de poemas,
de descer os degraus das palavras.

[Ilustração: M.C.Escher]

29 de abril de 2010

Breve interlúdio musical

Hoje há Livros, amanhã não garantimos

... quando o comércio
também é sinónimo de convívio
é natural que se junte mais uma casa

À mão de ler (10)


«Cinco da manhã. Entrei e sentei-me à espera, atrás do Stone. Dentro daquela camisa vermelha, ele parecia um bocado desanimado.
O Moto estava ao meu lado. Disse-me:
- Apanharam o Matthew ontem.
- Apanharam-no?
- Sim, por ter roubado correspondência. Andava a abrir cartas para o Templo de Nekalayla e a tirar-lhes o dinheiro. Após quinze anos a trabalhar aqui.
- Como é que o apanharam? Como é que descobriram?
- As velhinhas. As velhinhas enviavam cartas cheias de dinheiro para o Nekalayla e não andavam a receber notas de agradecimento nem resposta. O Nekalayla informou os Correios e os Correios puseram-se de olho no Matthew. Deram por ele a abrir as cartas às escondidas e a tirar o dinheiro.
- A sério?
- A sério. Apanharam-no à luz do dia.
Recostei-me.
O Nekalayla tinha construído um grande templo, e pintou-o de um verde horrível, se calhar porque lhe fazia lembrar dinheiro, e tinha uma equipa de trinta ou quarenta pessoas que passavam o dia a abrir envelopes, a tirar cheques e dinheiro, a registar as quantias, o remetente, a data de recepção e por aí fora. Outros ocupavam-se do envio de livros e de panfletos escritos pelo Nekalayla; e havia uma fotografia dele na parede, enorme, com o N. em vestes sacerdotais e de barba, e um quadro do N., também enorme, na parede do escritório, vigilante.
Nekalayla afirmava ter conhecido Jesus Cristo, um dia, quando andava no deserto, e que Jesus Cristo lhe contara tudo. Sentaram-se os dois numa rocha e o J.C. revelou-lhe tudo. Agora, era ele que passava os segredos a todos aqueles que os pudessem pagar. Também tinha uma missa ao domingo. Os seus assistentes, que eram também seus discípulos, entravam e saíam ao som de relógios de ponto.
Imaginem só o Matthew Battles a qurer enganar o Nekalayla que conheceu Cristo no deserto!»
(Charles Bukowski, Correios; trad. Rui Lopes, Antígona, Abril 2010)

Nem sempre a lápis (14)

Noite de pintura – de cabeça – a que não é alheia a cumplicidade da aguada verde-rifenho do quarto e a proximidade dos toldos enrolados no velho mercado, à espera. Bastava-me um, debotado, curtido pelo Sol, vivida a violência do contraste entre as barras azuis e as da cor natural da lona; reconciliadas. Bastava-me um retalho, para colar como rodapé de um cartão vertical, só. Casa como a palavra; habitada pelas palavras de um texto perdido, pronunciada pelo silêncio. Há tarde, no Sul; e nela tudo se espreguiça, por havê-la.

«Arranca a cabeça da terra do corpo e então, repara bem, que ou estão a arrastar-te para o céu ou então estão a matar-te.» (Rumí)

[Foto retribuída por umas sirigaitas andaluzas que pediram que as fotografasse em pose pascal, sem mais filosofias]

Às vezes, lá calha...

«Conseguia ouvir o Stone a escrever na sua máquina.
Batia nas teclas com raiva.
Fiquei a pensar: como é que ele terá conseguido
aprender a dactilografar?»
(Charles Bukowski)
[Foto: Jeremy Mayer, Typewriter Sculpture Face]

28 de abril de 2010

Breve interlúdio musical

Já morri a morte certa

Já senti a fome, aperta a dor

Já bati à porta incerta

Viajei de caixa aberta, a dor.

Pecado, fundido, queimado.

Já desci lá em baixo ao fundo

Já falei com outro mundo e então

Já passei o limbo limpo

Já subi ao purgatório e vou.

Zangado, bem vindo ao passado

Pecado, arrependido, queimado.

Zangado, bem vindo ao passado

Pecado, fundido e queimado

Zangado, bem vindo ao passado

Pecado, arrependido, queimado

Porque a Net fornece um novo dia

... e mesmo muito bem passada,
não verte

À mão de ler (9)

«Um dia, andava na rua e o giro até corria bem, embora fosse um dos novos, e pensei: Meu Deus, talvez seja esta a primeira vez, em dois anos, que vou conseguir almoçar!
Estava com uma ressaca terrível, mas ainda assim tudo corria bem, até ter pegado num monte de cartas endereçadas a uma igreja. A morada não tinha número, só o nome da igreja e da avenida que ficava defronte. Subi as escadas, ressacado. Não consegui descobrir nem uma caixa de correio, nem uma única pessoa ali. Algumas velas a arder. Umas tacinhas para mergulhar os dedos. E o púlpito vazio que me observava, e as estátuas todas, vermelhas, azuis e amarelas, as portadas das bandeiras fechadas, uma manhã terrível de calor.
Ó Meu Deus, pensei.
E saí.
Dei a volta até à parte lateral de igeja e descobri umas escadas. Desci-as e entrei por uma porta aberta. Sabem o que vi? Uma fiada de casa de banho. E chuveiros. Mas estava escuro. As luzes todas apagadas. Como é que um tipo há-de descobrir a merda de uma caixa de correio às escuras? Então, descobri o interruptor. Liguei-o e as luzes da igreja acenderam-se, dentro e fora. Avancei até à sala seguinte e havia batinas de padre estendidas em cima de uma mesa. Estava lá uma garrafa de vinho.
Por amor de Deus, pensei, quem mais poderia ser apanhado numa cena destas senão eu?
Agarrei na garrafa de vinho, deu uma boa golada, deixei as cartas nas batinas e voltei aos chuveiros e às casa de banho. Apaguei as luzes, caguei às escuras e fumei um cigarro. Ainda pensei em tomar um duche, mas imaginei as manchetes: CARTEIRO APANHADO A BEBER O SANGUE DE CRISTO, NU, NUMA IGREJA CATÓLICA APOSTÓLICA ROMANA.
Resumindo, já não tive tempo para almoçar e, quando regressei, o Jonstone fez-me um relatório por ter chegado vinte e três minutos atrasado.
Mais tarde, vim a saber que a correspondência para a igreja costumava ser entregue na casa paroquial, logo ao virar da esquina. Mas agora, como é óbvio, já sei onde é que posso ir cagar e tomar um duche quando estiver na mó de baixo.»
(Charles Bukowski, Correios; trad. Rui Lopes, Antígona, Abril 2010)

Nem sempre a lápis (13)

Há um canto privilegiado da esplanada do Clube Naval de Portimão que se abre numa visão de 360º, aproximadamente: o museu instalado na Fábrica de Conservas La Rose, nas minhas costas; o que ainda resta do Convento de S. Francisco, à minha direita; o porto e a orla de telhados acocorados aos pés da igreja de Ferragudo, na margem oposta. Continuando a espreguiçar a vista até vir a sopa, segue-se um sem-fim de chaminés de outras fábricas – derivados de alfarroba, padarias, cerâmicas – irreconhecíveis ao património colectivo, mas todas elas coroadas pela salgalhada de ramos, condomínio das cegonhas; altivas. A hipnótica sobreposição dos estudos de cor para destacar as duas pontes de ferro – uma, reaberta ao trânsito e aos pescadores noctívagos; a outra, para a circulação do charuto, alcunha rural do comboio a vapor – não consegue disfarçar a contorção dos cerros que se elevam até Monchique, calhando aos mais corajosos o troféu do pico da Fóia. Implantada no centro visual do conjunto, a estrutura náutica do Clube é reafirmada pelos robustos mastros de ferro a servirem de guias dos cabos de aço que mantêm bem esticada a vela latina, deitada; uma harpa.

Passei aqui gratas tardes anotadas nos Blues, atendidas pela cumplicidade de outro empregado; mas seria numa esplanada em Santa Luzia que me senti «a apanhar Sol», sem o saber. Sem o barulho cavo do «vaivém para a ilha», com os barcos atracados no porto de pesca, as favas à algarvia prudentemente reservadas para o jantar. E depois, e depois que venha o galo de cabidela no restaurante da sociedade (verificar o nome) ou não estivéssemos na semana da Páscoa; sem missa. De tanto ouvir espanhol nos últimos dias, deixei de trabalhar; traduzo-me.

Às vezes, lá calha

«Uma coisa é construirmos em torno
de um nome uma imagem, outra coisa é construirmos
uma ideia em torno da imagem que temos do nome.»

27 de abril de 2010

Breve interlúdio musical

Hirto e firme!

... encontrado nesta parada

Porque a Net fornece um novo dia...

«É bom trabalhar nas Obras» (5)

«A maior parte do tempo dedico-a a fumar e a afiar os meus lápis Faber Número 2. Com eles corrijo as composições dos meus alunos, e se algo não me agrada apago-o com a borracha que têm em baixo e sugiro-lhes uma frase melhor.

Em todo o caso, foi o alcaide quem me emprestou a sua Remington para passar a limpo as minhas traduções.

As composições das crianças são bastante optimistas. Muitas começam por dizer “o dia abre com o sol que estende os seus dedos bondosos sobre o campo” ou “com o cantar do galo rompe a aurora e as sombras vestem túnicas amarelas”.

Só Augusto Gutiérrez foge à regra. Ele escreve, por exemplo: “O cantar do sol rebenta os tímpanos do galo”.

É um desastre a Matemática. Repetiu o último ano e é o único rapaz da aula com um esboço de bigode nos lábios.

Tem duas irmãs. Aos domingos vou à praça, compro amendoim cristalizado e bebo uma Bilz sentado no banco de pedra e quando elas passam ao meu lado riem-se trocistas e eu fico corado. Augusto Gutiérrez tem óculos grossos e os lábios finos.

Na próxima sexta-feira faz quinze e passeia-se com um livro de Rubén Darío pela praça. Sabe de cor “Margarita está linda la mar y el viento trae aroma sutil de azahar*, mas não são tanto os versos do poeta nicaraguense que lhe interessam, mas travar comigo uma conversa de homem para homem.

Segundo ele, quer saber se eu estive no bordel de Angol e quanto vale a noite com uma das raparigas.

Limpo as migalhas de amendoim das minhas calças azuis e digo-lhe que é uma conversa imprópria entre um aluno e um professor. Diz que se eu não lhe conto como é a vida, pedirá conselhos ao cura no confessionário.

Acrescenta que dentro de uma semana não vai haver só torta e velinhas na sua festa de aniversário, mas também música romântica norte-americana para bailar bem agarrado. As suas irmãs pediram-lhe que me convidasse. Teresa tem dezassete e Elena dezanove. Eu vinte e um. Aqui somos todos muito decentes. Não duvido que Teresa e Elena são de boa família. Mas cada vez que vão a Santiago, compram vestidos com decotes profundos e jeans que a elas lhes comprimem as ancas e a mim o ar.»

* «Margarida está lindo o mal e a brisa traz o aroma subtil a flor de laranjeira.»

[Antonio Skármeta, Un padre lejano (Versão final Outubro 2009); em tradução para a Teorema]

Nem sempre a lápis (12)

Fiei-me numa ideia de Sul e vim de peito feito arreganhar pelas esplanadas. Só jantei uma vez ao ar livre que, por ser livre, anda num rodopio pela rua; frente de mar incluída. É possível que já tenha passado por antipático; surpreende-me o número de rostos reconhecidos que não identifico e confronto com os de outras paragens, todos familiares. Hoje acordei cedo, bastante mais cedo do que pensava, deitado a ver o dia nascer na cercadura da janela, sem ligar o portátil. Não toquei na tradução; olhei os blogues de relance, sem comentários. Tenho calcorreado as ruelas, os becos com saída onde não entrei. Gosto de me refugiar nesta hora magritteana, possível aqui, em Mortágua, em Carnaxide; Lisboa tem as horas fundidas no mostrador do bulício. Do outro lado, já apanharam griséus e deve haver favas; aqui, semeiam garbanzos nos campos pobres. Ulisses (James Joyce) continua a resistir ao emagrecimento das prateleiras de livros, ao fundo da tabacaria da Fortaleza.

Começámos a aproximar-nos um do outro assim que iniciei o reconhecimento da baía. Ele, vindo da extremidade da Galé; eu, a partir da extremidade consensual da lota, ambos à babugem. Não nos cruzámos; desaparecemos um no outro.

Às vezes, lá calha...

«Ser-se escritor é convertermo-nos noutro. Ser-se escritor é convertermo-nos num estranho, num estrangeiro: temos de começar a traduzir-nos a nós mesmos.»

26 de abril de 2010

Breve interlúdio musical

«A construção de um monstro»

[Material disponibilizado por quem de direito, passe a publicidade...]

«É bom trabalhar nas Obras» (4)

«A minha aldeia chama-se Contulmo, e é mais pequena do que a vizinha Traiguén. Antes de ir para a capital, para tirar o curso de professor, terminei a secundária em Angol. Uma terra um pouco maior do que Traiguén. Ali padeci de um grave estado de anemia que os médicos trataram receitando-me emulsão Scott de óleo de bacalhau ou injectando nas minhas veias tonificantes de fígado.
Uma enfermeira iniciou-me, no hospital, no vício dos cigarros baratos e para financiar essa arte, que desembocou numa bronquite, tive de arranjar outro trabalho.
Trata-se de algo extremamente ocasional e modesto. Uma vez por semana, mando pelo camionista que vem buscar os lençóis que a minha mãe lava para o hotel Angol, os poemas traduzidos do francês que o director do jornal publica no suplemento dominical.
O meu papá é francês e regressou a Paris há um ano, quando terminei os meus estudos no Ensino Secundário e voltei para Contulmo.
Eu desci do comboio e ele subiu.
Beijou-me desesperadamente nas faces e a minha mãe veio até ao cais de embarque vestida de luto. A minha chegada a casa jamais substituiu a ausência do meu pai. Cantava J’attendrais, Les feuilles mortes e C’est si bon.
Além disso, sabia fazer um pão estaladiço, a baguette, diferente dos papo-secos e pádoas desta zona. Também costumava levar laranjas e limões ao mercado. Passava todos os dias pelo moinho para ir buscar farinha e assim começou a amizade com o dono. Quando o papá se foi embora ou não soube reproduzir a sua arte para fabricar baguettes, mas mantive a amizade com o moleiro.
Ele conhece melhor o papá do que eu mesmo.
Conhece melhor o papá do que a minha própria mãe.»
[Antonio Skármeta, Un padre lejano (Versão final Outubro 2009); em tradução para a Teorema]

Porque a Net fornece um novo dia...

«Muito criativo e oportuno esse desenho. No Brasil, há esforços institucionais pela leitura, mas exemplos nada edificantes, mesmo na esfera pública. Exemplo magnífico deu um trabalhador da coleta de lixo, em São Paulo: ele formou uma biblioteca com livros retirados do lixo! Colocou tudo em seu casebre e o abriu à comunidade. Um abraço a vocês. Espero uma visita ao meu blogue
[Comentário ao boneco encontrado nesta caixa]

Nem sempre a lápis (11)

Nem Sempre a Lápis poderá vir a ser um bom título, parece-me, para um livro que paira entre o que aqui vou anotando. Não tenho alinhado duas palavras fora deste contexto, sem o compromisso do dia-a-dia. Ao rever os meses anteriores, sobretudo os deste ano e alguns do final de primeiro ano, apercebo-me de uma fiada subtil puxada no tecido; uma ânsia de autonomia, justificada. Ao rever o ano passado, verifico também que me espalhei na mais perigosa das tentações; escrever para o leitor, subvertendo a vocação particular do Diário, do diálogo sem interlocutor. Sempre que abro a gaveta pendurada na parede ao lado da cabeceira da cama, liberto um cheiro a cânfora, muito antigo. O fascínio da solidão reside também nestas pequenas coisas, insignificantes, anotadas sobre os poemas de Rumi; não comprei um livro, comprei um atril para escrever na cama, a lápis.

Este bloco acabou no Sul; durou um ano e uns trocos, poucos. Afeiçoei-me a ele; é à medida de qualquer bolso, não das calças, serve para guardar o BI, facturas, vales da fnac, lembranças. Contrariando o meu hábito, não arranquei mas risquei as folhas passadas a limpo, mantendo intacta a dimensão portátil e a vocação de secretária shandy; sem elástico. Vou conservá-lo bem manuseado e concluído, como um álbum de instantâneos para decifrar lugares; vou procurar uma fita nova para a máquina – Olympia – nas casas da especialidade. O caderno azul é demasiado hirto, não assenta bem em qualquer bolso.

Às vezes, lá calha...

Deixemo-nos de rodriguinhos, de dar graxa ao cágado;
«se a alma adora nadar» (Michaux),
«as almas também precisam de levar porrada.» (Céline)

25 de abril de 2010

Breve interlúdio musical

Militares procuram Baptista-Bastos

... ora vamos lá a saber, onde é que você estava no dia 25 de Abril?!

Meditação no confessionário...

[...do reverendo irmão lúcia, uma simpatia]

Eu sei, eu sei...

... os meus ouvidos já não são os mesmos,

mas je me souviens... e sabe-me bem

Porque a Net fornece um novo dia

[Alto momento d'O Pensamento Filosófico Português]

«É bom trabalhar nas Obras» (3)

«Os textos que eu traduzo são simples. Coisas que a gente desta zona pode compreender. Poemas de René Guy Cadou. Versos de aldeia e não catedrais de palavras. Em Santiago, pelo contrário, a imprensa publica versos monumentais que aludem à antiguidade grega e romana, cinzelados em mármore, e que meditam sobre a eternidade da beleza. Na capital publicam-se em “El Mercúrio” com ilustrações de Paris e de Roma e por baixo do texto, entre parêntesis, indicam o nome do tradutor.
Aqui, na província, a beleza nunca é eterna.
Por vezes, ponho no sobrescrito das traduções um original meu com um pedido ao editor para que considere editá-lo. A sua recusa é muito cortês, visto que não mos recusa nem mos publica.»
[Antonio Skármeta, Un padre lejano (Versão final Outubro 2009); em tradução para a Teorema]

À mão de ler (8)

«Enquanto o dia se vira e se desfolha entediado e indolente e o triunfo da mediocridade domina e acunha o enxame humano, guardamos as horas dentro da gaveta e zarpamos, proa altiva, até voluntárias derivas, belos naufrágios encadeados ao vento. Timoneiras dos nossos sonhos os dedos remam salobres de ar e fogo, dança aquática sob os lençóis. Do luto luzidio que lentamente lambias, deslizava prata doce e silente. A única âncora permitida: o coração.

Fendida, a tarde deita-se entre as searas.

O grito exibicionista e rápido dos falcões

(dizem que fazem amor em pleno voo)

arma-se o vento e me sacia de intempérie.

Vencida e condenada na idade da recordação,

a celagem de bronze da tarde

recolhe-me na ripa.

Que longo olvido que já não quer mais memória.»

Nora Albert (pseudónimo de Helena Alvarado Esteve), catedrática de línguas e literatura, ensaísta e tradutora, publicou Mots i brases (2004) e Tentacles de cel (2008), figura nas antologias Eròtiques i despentinades. Un recorregut per la poesia catalna amb veu de dona e Antologia de poetes eivissencs (2008).

[Antologia de Poesia das Ilhas Baleares / Rectal de poesia Casa Fernando Pessoa, 2 de Março 2010; trad. Ana Sofia Guerreiro Henrique e Anna Cortils Munné, catalunyapresenta]

Nem sempre a lápis (10)

Está mais frio do que contava, sobretudo ao entardecer, e esqueci-me do casaco de antílope quando troquei de carrinha, na Costa da Caparica; enfim, lá as vou desencantando à medida das necessidades. Antes de dar por ela – viria a dar na área de serviço, onde me dou sempre – fui surpreendido pela chamada do vendedor a perguntar se o casaquinho, teve a atenção de lhe chamar assim, também fazia parte do negócio; mas já ia longe e sem direcção fiável para encomendas postais. O cansadinho, na intimidade da utilização, é um velho casaco comprado esqueci-há-quantos-anos em Sintra. Pediu que o resgatasse do ambiente de uma loja – desconheço se ainda existe, nem quanto tempo existiu – preocupada com a reciclagem de roupa e objectos caídos em desgraça, com o toque de graça dos artesanais, tarambecos world; de Autor. Saí da atitude de comércio com ele vestido, usei-o exaustivamente até à cedência ao apelo ou à urgência do momento, cabendo à utilização da Nico, a minha mulher, a marca indisfarçável das mangas dobradas; a protecção de malha da gola já vinha descosida, como garantia de usado. Quando o recuperei, dirigi-me a uma lavandaria que demorou, à-vontade, umas duas semanas a recusar a responsabilidade da limpeza, com argumentos para disfarçar (mal) os problemas da idade. Tratando-se de um clássico, decidi-me pelo restauro sem obsessões de coleccionista, numa que lhe coseu muito bem o forro e a malha – deve haver um nome para aquilo, mas não interessa – passando a usá-lo por cima do polar, quando não chove; não vá afugentar-me o antílope.

Ausente por outras pastagens, o casaco até nem faz assim tanta falta; entretenho-me apenas, no silêncio da luz da sala apagada, a desfilar pela ala dos meus fantasmas, sem o encontrar nas sombras que se espreguiçam e trepam pelas paredes de uma casa habitada por sedimentações de múltiplas memórias. Se fosse minha, e não foram poucas as vezes que o desejei, mandava deitar abaixo a parede em frente para a sala ocupar a inutilidade do quarto ao lado – quando a uso – e nadar na réplica do espaço que habita a minha cabeça. Por muitas remodelações que fizesse, conservaria intocável a composição da mesa sobre o espelho ao lado da cama; intimamente, receio o que passarei a ver quando sair do oftalmologista.

Às vezes, lá calha...

O comércio dos livros
não me interessa,
só enquanto sinónimo
de convivência.

[Composto e impresso aqui, há algum tempo]

24 de abril de 2010

Breve interlúdio musical

[Cover de manuel do anterior]

Porque a Net fornece um novo dia...

«Eu não gosto do campo.
Não posso dizer mal das árvores».

À mão de ler (7)

«Desventrado de musgo e de caruma, o túmulo lateja com paciência de animal antigo. Há sempre qualquer coisa de mentira nas nossas rezas. Em que tempos falamos dos mortos? Temos de guardar memória do voo da sua voz e extinguir-nos no seu eco.
Apodrecem as maçãs sobre a mesa, esquecidas pelo seu deus, as maçãs, que apodrecem. O silêncio fende as mãos indefesas que fazem inventário dum corpo. Em cada lugar secreto palpitam os sinais da evidência. Foi um longo caminho abraçando o veneno da fadiga, serenamente por cidades indecisas, atrás da pegada de lugares chegados dum outro horizonte. Resta-nos dentro de cada olho um sol que não ensombra, a dimensão mais verdadeira dum deserto.»
[Antoni Xumet, Antologia de Poesia das Ilhas Baleares; trad. Ana Sofia Guerreiro Henrique e Anna Cortils Munné]

Nem sempre a lápis (9)

Mergulhado na penumbra coada pelas janelas opostas – o Norte e o Sul, o mar e a serra –, os meus passos abalam pela areia, pelas dunas; feito o luto. Sento-me no aconchego das rochas, depois do rio. Ocorre-me uma bonita foto de John Berger, ainda não o conhecia, tomada de cima a escrever, a desenhar num bloco. Escrevi na areia sempre mais com o olhar; a última vez que o fiz num bloco, foi nos degraus de outras rochas; descobria-me Longe do Mundo.

«Então por cá, menino?», recebeu-me a pendurar as cortinas lavadas ou a tirá-las para lavar, equilibrada com um pé no parapeito da janela. «Bom-dia, vizinha», sorri-lhe, como sempre que somos vizinhos, enquanto abria a porta da rua. Acabei os dois primeiros contos de Hernández, Nos tempos de Clemente Colling e O cavalo perdido; se soubesse, tinha trazido mais um. Vou pedir que mos imprimam – continuo sem impressora; é mais saudável para ambos: a floresta e a preguiça – para os ler numa esplanada, de lapiseira em riste a malhar no tradutor. Estou disponível para caminhar na praia; para jantar na tasca ao lado da Florista do Sapal; encerro o mês disponível.

Às vezes, lá calha...

«Somos cativos resgatados
pelo testamento
que se escreve.»
[Foto da mesa de trabalho de M.G. Llansol, de que não foi possível identificar a autoria]

23 de abril de 2010

Breve interlúdio musical

O blogue foi à consulta

À mão de ler (6)

«Enfim, Harold, demorei bastante tempo a contar-te isto tudo – a minha pequena Olivetti está a deitar fumo, e não pouco – e agora pergunto-me para que me incomodo. Sim, tenho pensado sobre a dor, e numa carta anterior falei do modo como os falantes do francês a exprimem. A mente, foi uma coisa que descobri, não passa de uma coisa a seguir à outra, especialmente nos últimos tempos, mas isso não chega para justificar a intimidade do que acabei de te contar. Parece-te impróprio? Acho que é fácil para mim falar contigo porque não me lembro de ti muito bem. É como falar com a mobília, mas com o interesse acrescido de que no teu caso a mobília compreende, ou pelo menos finge que compreende. Desde que me escreveste tenho tentado ver a tua imagem. No princípio, ocorria-me o tipo cheiinho e rubicundo que eu costumava derrotar no pingue-pongue todos os sábados, mas claro que esse que eu conheci não podias ser tu ainda, por isso tenho tentado actualizar a imagem com pedaços de informação que me tens dado nas tuas cartas, e fiquei-me, admito que vagamente, por alguém metido numas jardineiras.

O teu velho amigo,

Andy

[Sam Savage, O Grito da Preguiça; trad. Fernando Villas-Boas, Planeta, Fevereiro 2010]

Nem sempre a lápis (8)

Conheci-o a amanhar peixe no mercado, encontrei-o a servir à mesa da pastelaria; para lá da rua do Candeio, apagada essa função. Tive receio de lhe dizer, «Acabaste o prato e passaste à sobremesa», a sorrir. Há coisas que não se devem dizer nem a sorrir, a pessoas que levavam o peixe que sobrava para comer com os pais e os irmãos, alheias a um Sorriso Aos Pés da Escada (Henry Miller).
Ando pelo Sul sem endereço, com o sabor intacto da transgressão.

Sempre que ouvia as badaladas do relógio da igreja, quedava-me à entrada de uma viagem não reconhecida; era assim na praia, mais fortes de frente para o mar; foi assim em casa, mais veladas nas traseiras. Quando ouvi as badaladas aceitei a sina ubíqua de um relógio comum a duas igrejas: esta aqui, voltada para o mar; a outra ecoada ao fundo e à entrada da aldeia serrana do meu pai, no concelho de Celorico da Beira. A noite está calma, a lua cheia; escrevo no bloco apoiado na versão Hiperión dos Poemas sufíes (Rumi), com os pés apontados para Sueste e o computador ligado na sala.

Às vezes, lá calha...

«Às vezes, a minha cabeça era como uma taberna pobre no meio de uma feira; e enquanto eu olhava distraído através das janelas, entravam toda a sorte de palavras.»

22 de abril de 2010

Breve interlúdio poético

Eles "andem" por aí...

«Hoje, na Faculdade de Direito de Lisboa, realizou-se um teste de Direito Constitucional II. O Prof. Doutor Paulo Otero, o regente da cadeira, decidiu que seria este o caso prático que os alunos deveriam resolver e, numa provocação discriminatória e ridícula, fez-se um paralelismo entre a poligamia / bestialidade e a homossexualidade, disfarçando de humor aquilo que é um desrespeito e uma ofensa de proporções maiores do que o Sr. Professor pode imaginar.»
[Sublinhados meus de um certo "senso de humor" denunciado aqui]

Porque a Net fornece um novo dia...

Nem sempre a lápis (7)

Entreguei-me a um regime de café com biscoitos da padaria, pão quente com cavalinhas do Sul, amaciadas com limão e fruta, janelas – portas e portadas de madeira – escancaradas, gaivotas nas varandas e terraços, não necessariamente «em terra» com uma chávena acabada de fazer; «amanhã» faço-me às dunas, por enquanto em casa. Não mandei copiar mais uma vez as chaves; é impressionante o número de objectos reencontrados – o cinzeiro, a caneca de esmalte azul, a fruteira de louça da feira – e não acartarei para me ser concedida a virtude da reconciliação, sem regresso.

Enquanto fazia um café, só hoje me chamou a atenção o aviso – «NÃO ACENDER» seguido pelo consequente «PERIGO DE EXPLOSÃO» – muito bem escrito; a esferográfica numa folha pautada, colada com fita prateada a tapar a janela do piloto do esquentador. Não foi o risco de tomar duche que me ocupou, mas a convicção de Felisberto Hernández ser o Marcel Proust de Montevideu, à medida que vou avançando na tradução de Contos Reunidos. Como não li o clássico francês, justifico a pertinência da convicção pelo anonimato do sul-americano.

No Sul pouco se nota, mas a hora mudou; é significativo distanciar.

À mão de ler (5)

«Mas a Jolie, turista incansável que ela era, ou parecia ser, não deixou que isso lhe alterasse os planos. Nos primeiros dias, enganado pelos modos dela (o exterior agradável que já mencionei) e pela convicção de que, com toda a certeza, conhecia a Jolie, não suspeitei de nada. Ao chegar a casa ao fim da tarde, palradora que nem uma carriça, ela chutava os sapatos – “absolutamente estoirada” por “palmilhar” Paris inteira – e sentava-se na minha cama, ou no chão do corredor, de costas para a casa de banho, se era lá que eu estava, e falava-me dos sítios onde tinha estado. Como é que eu podia ter adivinhado que ela sacava as descrições do guia de viagens? É certo que, quando me beijava a despedir-se para sair, todas as manhãs, o beijo era na testa, em vez de nos lábios, como antes. Reparei mas achei que estava só a evitar os meus micróbios. Foi o cheiro que finalmente a denunciou. Os meus poderes olfactivos são normalmente bastante ténues – tenho praticamente de enfiar uma rosa pelo nariz para cheirá-la. Talvez a brandura purgante das batatas cozidas e da água de Vichy os tenha apurado. O facto é que o cheiro a traiu. Nessa altura, os hotéis baratos de Paris não tinham banheiras, nem sequer chuveiros – estou a falar do género de hotéis a que um par de amantes poupados pode recorrer por uma tarde – e a Jolie, inocente como era, não fazia ideia do que fazer com um bidé. Uma manhã, estava eu a rastejar debaixo do lençol à procura de umas meias, quando a verdade me foi apresentada.
Para encurtar esta história – de facto não é muito comprida, apenas pareceu durar uma eternidade – acabámos num ménage à trois com o jovem Gustave Lepp, professor numa escola secundária perto do nosso apartamento. (Esta não é a parte divertida.) A Jolie tinha-o conhecido no bistro do pequeno-almoço, no segundo dia da nossa estada em Paris. Era uma dessas pessoas com quem podemos passar um serão e ficar perfeitamente seduzidos, arrebatados pela inteligência e erudição, pelo facto de que parecem inteiramente interessados em nós, para acordarmos na manhã seguinte com a sensação de que fomos enrolados.»
[Sam Savage, O Grito da Preguiça; trad. Fernando Villas-Boas, Planeta, Fevereiro 2010]

Às vezes, lá calha...

«O saque dos anos inúteis que, com tanto zelo guardaste,
delapida-o agora:
restar-te-á o triunfo desesperado de ter perdido tudo.»

21 de abril de 2010

Breve interlúdio musical

Actualização

Aos leitores/seguidores de Moleskine ® Literário,
em pausa desde Março,
basta activar o cursor.

Nem sempre a lápis (6)

Enquanto não tenho azo para substituir a secretária da entrada por uma mesa, para ser recebido pela Hermes 2000 quando abro a porta, optei por escolher uma pedra da marquise para mudar a recepção. É uma das muitas pedras roladas que apanhei nas praias do Barlavento, escolhidas aos fins-de-semana fora de época, trazidas pela minha ex-nora. O objectivo, urbano, era – seria, porque nunca o vi – fazer um jardim a armar ó zen, prescrito pela escola ikea, pelas revistas de interiores, que me sugerem sempre lingerie doméstica; lingerie para o lar. Imagino a surpresa de quem entrar – a mulher-a-dias amanhã, por exemplo – e vir a decoração; o arranjo. Dificilmente lhe passará pela cabeça que tenha posto uma pedra em cima de tantos assuntos.

«Era uma história que tendia a alastrar em todas as direcções e que, no entanto, se mantinha essencialmente portátil.» (J. D. Salinger)

À mão de ler (4)

«Tenho a impressão de que muitas vezes ouvimos o que queremos.

~

Também não concordo com a declaração de que o Sr. Whittaker terá sido levado dali em lágrimas. As “pequeninas contas alumiadas” na sua face eram, creio, gotículas de Chablis que uma das senhoras – uma encorpada, de calções vermelhos – lhe tinha lançado à cara. Quando estavam a empurrá-lo para dentro do carro, reparei que o copo de papel amachucado ainda estava alojado na gola do seu casaco. Um símbolo ajustado, creio, a todo o episódio. A lançadora do copo, veio-se a ver, era uma amiga de Eunice Baker, que tinha lido partes do seu livro de poesia nessa tarde. Miss Backer, para as legiões que nunca ouviram falar dela, é co-editora da Notícias da Arte. Foi durante a leitura dela que Whittaker saltou para o palco da primeira vez. Segundo a vossa repórter: “Whittaker roubou o microfone e começou a vociferar contra a poesia da autora [Baker]”. Este não é de modo nenhum o tipo de exactidão que se espera de um jornalista profissional. Como homem de ciência, prezo bastante a exactidão. O que significa vociferar? O que foi dito, precisamente, durante essa particular instância de “vociferação”? Um relato factual seria mais ou menos assim: “O Sr. Whittaker, em voz alta (tinham-lhe desligado o microfone), mas com bastante calma, fez uma breve análise crítica do desempenho de Miss Baker, na qual descreveu a sua apresentação como ‘um mugido de menopausa’ e os seus poemas como sendo ‘traques’ de vaca’”. O vosso repórter diz então que o público “reagiu com vaias constantes”. Embora isto seja em geral correcto, houve pelo menos um par de rapazes, na parte de trás da multidão, que se ria às gargalhadas. As ondas de hilaridade desses dois alegres compadres flutuaram como estandartes sobre o burburinho geral e emprestaram uma tonalidade bastante diferente ao episódio. E este é precisamente o que quis sublinhar na carta anterior: a nossa cidade e o nosso estado precisam de pessoas como Whittaker, pessoas que se recusam a amaciar, e não têm medo de afrontar a “opinião pública” quando crêem que essa opinião está errada. E as pessoas que riem não merecem ter também o seu porta-voz?»

[Sam Savage, O Grito da Preguiça; trad. Fernando Villas-Boas, Planeta, Fevereiro 2010]

Às vezes, lá calha...

Pensei que ganhara um certo direito ao descanso
e a perder-me no sempre grato capítulo da preguiça.
[Autoria da foto que não foi possível identificar]

20 de abril de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia...

Nem sempre a lápis (5)

Lisboa cheirava a castanhas assadas à entrada do metro; na paragem em Carnaxide o ar cheirava a arrepio, só. Aproveitei o pedido do Jaime Bulhosa para repor mais cinco livros – foi rápida, a alergia ao pó – por ter comentado no blogue se ainda havia exemplares como este livreiro: «Sempre fui verdadeiro com os meus clientes em relação ao que pensava dos livros. Nada mais me tem enganado do que a minha sinceridade.» Enganei-me, naturalmente, na estação e saí em Entrecampos. Durante mais de um ano foi o meu transporte (à borla, que me lembre) para o Marquês – chamava-se então Rotunda –, quando vivi num «quarto de estudantes» no Bairro de S. Miguel e tinha o tal emprego nas Amoreiras. Fiz o percurso inverso ao dos ponteiros do relógio, presentes em todo o lado, obsessivos indicadores da tendência publicitária até os utentes «mergulharem no caos doméstico» (Ana de Amsterdam, Ana Cássia Rebelo). Tomei a estação certa, a do Campo Pequeno, a apreciar as montras das lojas fechadas e a fechar, enquanto fumava um cigarro à porta. De nada me valeu o argumento, sincero, de que não sou de cá. «Volte no sábado», sugeriu-me a apagar o cigarro e fechou a porta. Assombrei-me com a imagem dos rebentos de uma figueira, primorosamente podada, à entrada de um prédio de escritórios na Avenida da República. Voltei atrás para confirmar o que não vi lá em baixo; as amendoeiras também já não estavam floridas, só a promessa de uma boa época de nêsperas. Depois senti-me espiado e não observado, até sairmos no Largo do Rato, pelo mesmo acesso. Ter-me-á confundido com alguém, não a reconheci na ala dos meus fantasmas; pensei enquanto subia a Álvares Cabral para me sentar a esta mesa, de madeira, onde jantei e anoto que vou até à Trama; ou não fosse 5.ª feira. Tinha visto um Italo Svevo, Colecção Gabinete de Curiosidades da Teorema, e o tal Tiziano Terzani, adiados a conselho de um adivinho. Esta manhã, enquanto me preparavam o pequeno-almoço e com o ar de quem vai buscar o jornal, comprei O Grito da Preguiça (Sam Savage), para amenizar 2666. Creio não ter gritado outra coisa, esta semana, no silêncio cúmplice do bloco.
[Foto: Nico]

Meditação na livraria

«Todo o escritor sabe que o seu maior desígnio é escrever uma obra-prima. Mas também sabe que uma vez escrita a sua vida estará cumprida. É por esse motivo que os escritores retardam ao máximo a sua publicação. E é só por isso e por mais nenhuma razão que, na sua grande maioria, jamais chegam a publicar uma.»
[Dúvida encontrada por entre o Pó dos Livros]

«É bom trabalhar nas Obras» (2)

«Naquela tarde em Mendoza, tinha estreado uma peça a pensar que embora ainda não a dominasse de todo, poderia, mediante grandes esforços, realizar com ela uma aventura extraordinária; imaginava que chegaria a viver instantes desconhecidos de paixão, não só porque não sabia a impressão que produziria nos outros, como tão-pouco sabia o que me aconteceria a mim mesmo com ela. Por outro lado, precisava de brilhar e sentia curiosidade por ver o que diriam os outros. Foi então que ocorreu o desastre e me enfastiei tanto com o meu corpo; mas depois, não tive outro remédio a não ser pensar que entre ele e eu havia, por outro lado, um entendimento estranho. No imediato, no instante de tocar em frente dos outros, ele não tinha medo; pelo contrário, inchava-se de pretensões que teriam sido muito difíceis de cumprir, e chamava todos os sonhos que eu tinha tido antes para que despejassem no presente todo aquele futuro que eles tinham sonhado. O corpo olhava para os seus dez dedos como da altura em que estaria colocado um director de orquestra que tivesse aos seus pés o fosso que está à beira do palco, e onde dez músicos miseráveis se debatessem para servi-lo. A sua cabeça, eriçada pelo orgulho dos seus sonhos, imaginava que no final daquele espectáculo, ele subiria ao palco e as suas mãos seriam tomadas por outras, pelas mulheres pálidas que o levariam à beira do palco; ele inclinar-se-ia perante o público ensurdecedor; e então, baixaria as pálpebras e não olharia os dez músicos que estavam no fosso.

Mas naquela tarde em Mendoza as coisas ocorreram de outra maneira. A princípio ele esperava que os seus sonhos se entenderiam directamente com os sonhos. Mas depois começaram a atraiçoá-lo aqueles dez miseráveis que estavam no fosso. No entanto, ele tinha sido o grande culpado: por um lado, o orgulho dos seus sonhos tinha feito estirar, entre ele e os do fosso, uma distância cheia de esquecimentos (era como uma ponte cheia de buracos) e por outro lado ele tinha tiranizado com paixão cega aqueles pobres miseráveis; tinha-lhes tirado a liberdade de que teriam necessitado para servi-lo melhor: além disso, se a sua paixão não o tivesse cegado desde o princípio, quando trabalhava e ensaiava juntamente com eles, se se tivesse preocupado com a vida e os interesses de cada um e então eles ter-lhe-iam respondido melhor. Mas agora o seu orgulho e a sua paixão tinham sofrido um grande castigo; quando ele viu que eles não podiam cumprir o que ele lhes ordenava, nesse preciso momento quis preocupar-se com cada um deles: foi um recurso de desespero. Quando eles começaram a ficar rígidos, a reter cada um os seus próprios músculos e a confundir o jogo que deviam realizar com os seus companheiros, começou-se a verificar o desequilíbrio: eles iam-se estreitando entre si como jogadores grosseiros. E foi então que o director tinha ido baixando, pouco a pouco, a sua orgulhosa cabeça, quando tinha agachado, pouco a pouco, o seu corpo como se fosse pôr-se de cócoras; tentava comunicar com cada um em separado, mas estavam todos feitos numa massa informe que ia detendo o jogo, e começavam a mostrar os instantes de pausa em angustiantes silêncios que não correspondiam à obra; então, quando o director queria movê-los de novo, mudava de lugar a massa inteira, mas não lograva separá-los. Por fim, ele mesmo aderia ao pelotão, e a coisa terminava sem se saber como: jaziam todos no próprio fosso.»

[Felisberto Hernández, Contos Reunidos; em tradução para a Colecção Ovelha Negra, Oficina do Livro]

Às vezes, lá calha...

«Creio que uma pessoa olhar pela sua carreira não é nada de que se tenha vergonha, mesmo que isso signifique atravessar-se metade do território. É uma sorte termos o transporte aéreo.» (Sam Savage)

19 de abril de 2010

Breve interlúdio musical

... ou, como diria o livreirito,

uma cançãozita para depois de jantar