27 de fevereiro de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Marian sugeriu que fosse a um psiquiatra e ele disse que a psiquiatria se tinha tornado um método avant-garde de uma pessoa se masturbar.»
(Carson McCullers)

Nem sempre a lápis (350)

até Jajouka
(2006)
 
10. Fui dar o retoque trimestral ao cabelo e enquanto esperava ser atendido chamou-me a atenção a vitrina de uma agência de viagens textualmente camuflada com promoções dos destinos mais incríveis ao alcance de qualquer bolsa.  (...) E, já agora, o que é que se entende por um bom leitor? As melhores respostas para o absurdo desta pergunta foram-me dadas por Piglia, sob as mais variadas e enriquecedoras formas em O Último Leitor, onde também se escalpelizam situações susceptíveis de nos interrogarmos ou meditarmos sobre o que é, verdadeiramente, um último leitor. E, a sê-lo, é-o porque lê o quê?

Papiro do dia (392)

«– O que estiveste a fazer?
– Estive sentado.
– Um escritor que conheci em tempos teve problemas sacroilíacos por passar tanto tempo sentado. Será que te está a acontecer o mesmo?
– Não – disse ele. – És a única pessoa honesta nesta sala.
Ele tentara tantas coisas diferentes quando as páginas em branco começaram a surgir. Tentara trabalhar na cama, e durante algum tempo escrevera à mão. Lembrara-se de Proust no seu quarto insonorizado e durante um mês usara protectores nos ouvidos, mas o trabalho não melhorara e a borracha provocara uma micose. Mudaram-se para Brooklyn Heights, mas isso não ajudou. Quando descobriu que Thomas Wolfe escrevia em pé, com o manuscrito sobre o frigorífico, também experimentou isso. Mas não parava de abrir o frigorífico e comer… Tentara escrever embriagado, e as ideias e imagens eram maravilhosas na altura, mas mudavam de forma drástica quando as lia depois. Escrevera muito cedo pela manhã, completamente sóbrio e infeliz. Pensara em Thoreau e Walden. Sonhara com trabalho manual e uma quinta de macieiras. Se pudesse dar longos passeios nas charnecas, a luz da criação voltaria… mas onde estão as charnecas em Nova Iorque?»
[Carson McCullers, Contos Escolhidos; trad. Ana Teresa Pereira, Relógio d’Água, Agosto 2012;
monturo]

26 de fevereiro de 2013

Coisas do nosso Ernesto


25 de fevereiro de 2013

Lá diz o povo e, por certo, com razão:*


[ia escrever "com tesão", mas foi-se-me, a cínica...]

23 de fevereiro de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

 

Às vezes, lá calha...


«Era Primavera em Portland e a chuva caía todas as tardes. E ao anoitecer eu ficava ali, deitado na cama, no escuro. E foi assim que a ciência veio ao meu encontro.»
(Carson McCullers)

Nem sempre a lápis (349)

até Jajouka
(2006)
9. Decorridos cinco anos – ficámos por lá uma semana, no regresso de Essaouira e Marrakech –, continuo a recordar com deliciada frequência a imagem de um indivíduo a caminhar pela baía de Asilah. (...) Vimo-lo umas duas ou três vezes, creio que não mais. (...) 

Papiro do dia (291)

«– Foi assim – continuou o homem. – Eu sou uma pessoa que sente muitas coisas. Toda a vida, uma coisa depois da outra me impressionou. O luar. A perna de uma rapariga bonita. Uma coisa depois da outra. Mas o importante é que, depois de desfrutar uma coisa, havia uma sensação estranha, como se tivesse ficado solta dentro de mim. Nada parecia completar-se, ou encaixar-se nas outras coisas. As mulheres? Eu tive o meu número delas. E era o mesmo. Depois continuavam soltas dentro de mim. Eu era um homem que nunca tinha amado.
Fechou as pálpebras muito lentamente, e o gesto era como o descer de uma cortina no fim de uma cena de uma peça. Quando falou de novo a sua voz estava excitada e as palavras chegavam depressa, os lóbulos das orelhas grandes e afastadas pareciam tremer.
– E então encontrei esta mulher. Eu tinha cinquenta e um anos e ela sempre disse que tinha trinta. Encontrei-a num posto de gasolina e daí a três dias estávamos casados. E sabes como era? Não consigo dizer-te. Tudo o que eu sentira até então se juntava à volta desta mulher. Já não havia nada solto dentro de mim, tudo se completava com ela.
O homem parou subitamente e esfregou o seu longo nariz. A sua voz desceu para um tom estável e cheio de reprovação. – Não estou a explicar isto bem. O que aconteceu foi isto. Havia estes belos sentimentos e pequenos prazeres soltos dentro de mim. E esta mulher era como uma linha de montagem para a minha alma.»
[Carson McCullers, Contos Escolhidos; trad. Ana Teresa Pereira, Relógio d’Água, Agosto 2012]

22 de fevereiro de 2013

Vão por mim

[em todos os sentidos]

21 de fevereiro de 2013


«... a saudade da vida não é exactamente um sentimento, é uma experiência da alma e do corpo ao mesmo tempo, não pode ser reproduzida a pedido.»
(Paulo Varela Gomes)  
[ nem amêndoas roubam]

19 de fevereiro de 2013

Breve interlúdio musical




Da novel série:

Encadernam-se comentários
(e montam-se dromerdários)

Táxi Pluvioso said...
Mais um momento histórico na cultura lusa. Ao popularizarem a expressão "tomar no cu", e não a corrigirem, os desacordistas estão a dar mais um tiro na língua e depois é chora chora que estão a matar a nossa querida língua, o lóbi brasuca, patata patati, ora em Portugal "apanha-se no cu", ou "leva-se na peida". Ironicamente, o Acordo é culpa dos desacordistas, que preguiçosos deixaram de pronunciar as letras, não dizem "inaquetivo", não dizem "aquetor", não dizem "excepeto", e depois confundem grafia com semântica, fonética, morfologia... e choram como uns fiscais das Finanças que lhes estão a estragar a língua do Camões.

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Deixou que se esvaíssem todos os projectos e planos, e tentou aprender a difícil arte de viver um dia de cada vez.»
(Paulo Varela Gomes)

Nem sempre a lápis (348)

até Jajouka
(2006)

8. (...)

Papiro do dia (290)

«“Selvagem e bárbaro” certamente, escreveu P., mas não indigno. Na época em que Carrère [Joseph-Barthélemy-François] escreveu, os portugueses não eram ainda aquela massa de gente amorfa criada pelo fim trágico das revoluções, em meados do século XIX, esse engano sangrento que amarfanhou todo um povo e lhe quebrou a espinha, dando origem à humilhação e desencanto que foram confirmados depois pelo falhanço da República e pelo regime de medo difuso de Salazar, e finalmente pela ópera bufa do desmanche da revolução do 25 de Abril e da entrega do país à União Europeia.
Cada vez que saía de casa, o horror que era Portugal aparecia-lhe como um pesadelo de que não se consegue emergir, de que ele próprio não conseguiria de facto emergir, e como uma espécie de confirmação do destino. Dizia que vivera os mais destrutivos cinquenta anos do último século e meio da história do país e que, pelo acaso do nascimento, fora forçado a assistir ao desmantelamento do que restava do Portugal antigo e à sua substituição por um país não apenas moralmente corrupto, mas também o mais feio da Europa ocidental.»
[Paulo Varela Gomes, O Verão de 2012; Tinta-da-China, Janeiro 2013]

17 de fevereiro de 2013

Sem se vir

[perdão, sem-se-ver]

16 de fevereiro de 2013

Então, até logo

(em Lagoa, claro)

15 de fevereiro de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

 
 
«O futuro, sem contornos, tornara-se de repente uma imagem nítida. Isto, que pareceria assustador, era afinal um estímulo à paz, porque até ao fim daquele prazo não aconteceria nada.»
(Paulo Varela Gomes)

Nem sempre a lápis (347)

até Jajouka
(2006)
7. Já estou outra vez no Monte Alto e acordei firmemente determinado a ir a Sevilha ou a dar um pulinho ali a Huelva. (...) Estimulado o alarme comercial, existem biografias para todos os gostos e escolas para todas as alternativas: psicóticas, paranóicas, religiosas, ficcionadas, fotográficas, fac-similes dos famosos papelinhos ilegíveis escritos a lápis, com o seu inevitável esquadrão de especialistas, de intérpretes e descodificadores. Depois, é aguardar que sejam profícuos em contradições e argumentos, para alimentar polémicas e nada esclarecer. Deduzo ser essa, fundamentalmente, a ideia de Robert Walser. Suíço, mas cantão alemão, esclareça-se. (...) Walser só não é achincalhado como poeta-chapéu, porque teve a sorte ou o azar, de não ser português. E já agora, ao reler Reflexões Sobre a Mentira fiquei com a impressão que Alexandre Koyré se antecipou e escreveu-me este período: «Qualquer agrupamento secreto, quer seja doutrinário quer voltado para a acção, uma seita ou uma conspiração – a fronteira entre estes dois tipos de agrupamento é, aliás bastante difícil de traçar, sendo o agrupamento de acção, ou nisso se tornando quase sempre, um agrupamento doutrinário –, é um agrupamento com um segredo, ou segredos

Papiro do dia (289)

«Ao longo daqueles dias, tão cheios de premonição que não tiveram história, tão obcecados com o que vinha que mal se aperceberam do que já era, conseguiu acalmar a terrível angústia da mulher e encarar os amigos com risos e graças acerca do cancro. Todavia, por detrás da resignação, estava não apenas a esperança de que, milagrosamente, todos estivessem enganados, quer dizer, estavam não apenas as mentiras que a vida conta para enganar a morte, mas também uma espécie de satisfação pelo cumprimento da profecia antiga, pela realização do destino, uma satisfação próxima do sentimento suicida das crianças: quando proclamava à sua volta que não tinha importância, que era até um alívio, que se ia embora contente, que sessenta anos eram anos bastantes, que só tinha pena dos próximos, a mulher, os filhos, os pais e irmãs, os cães, estava a reproduzir a ameaça, não inteiramente retórica, antes cheia de perigo e de terror, que a criança ou o jovem adolescente formulam num pedido desesperado de socorro: eu morro e depois vocês vão ver… Disse-me, numa das sessões, que experimentava uma grande ambiguidade de sentimentos quando algum dos seus amigos, ao saberem o que o esperava, começavam a chorar ou ficavam terrivelmente angustiados, tentando animá-lo mas precisando antes que os animassem a eles. A ambiguidade provinha do facto de a piedade e o desgosto confirmarem a sentença de morte. Estes amigos confessavam ao chorar que não podiam fazer nada por ele, e a criança, desprotegida e indefesa, sentia ao mesmo tempo medo e fúria.»
[Paulo Varela Gomes, O Verão de 2012; Tinta-da-China, Janeiro 2013]

13 de fevereiro de 2013

O caminho para casa

 

 
 
[no Panda con el señor erizo]

11 de fevereiro de 2013

Com eles na relva

... e a ternura pelo meio

10 de fevereiro de 2013

Olhem,

9 de fevereiro de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia


Às vezes, lá calha...

«Com os braços pendentes, o olhar atónito, o ex-doente escuta-nos. É agora prisioneiro, não em nome do passado mas em nome do futuro.»
(Albert Londres)

Nem sempre a lápis (346)

até Jajouka
(2006)

6(...) o Caramulo foi a minha inconsciente Patagónia. Talvez por isso, o Caramulo tenha sido a mais verdadeira, a mais pura, a minha mais consistente Patagónia. (...) Abordei a serra pelos vários caminhos que fui aprendendo e aventurando-me pelos que me foram sulcando o mapa ainda em branco da imaginação. (...) Durante a subida pela velha estrada que liga Mortágua ao Campo de Besteiros, foi mais a partir daqui que me surpreendeu a ausência das laranjeiras protegidas pela serra e da água a jorrar para as bermas da estrada onde, nalgumas poucas curvas, ainda resistem as velhas guardas de rede que balizam as ribanceiras. A estrada é praticamente a mesma que fazia de mota (...) tirando um ou outro chalé alpino decrépito e algumas corajosas placas de metal e betão que enfrentam o avanço da fosforescente actualidade comunitária, quase não dei pelos sinistros edifícios dos sanatórios – que me ameaçaram a infância como um papão –, nem vislumbrei manadas de vacas na serenidade dos prados, agora decepada pelo silêncio quixotesco das pás eólicas a rodar (...) pareceu-me ver muitos mais cafés às moscas. Passado o cruzamento para o Cabeço da Neve e o Caramulinho, à medida que as luzes que brilhavam lá em baixo se iam tornando cada vez mais próximas e identificáveis, compreendi que já me tinha despedido há muito tempo desse fantasma. Mas não delirava pela serra, quando aos vinte e dois ou vinte e três anos tudo em que então acreditava era «escolher Tânger para se perder» (...)
 

Papiro do dia (288)

«E no meio desta sarabanda alucinante, há com os loucos homens que o não são.
Mal penetramos no antro, correm para junto de nós pensionistas a estender-nos mãos com cartas, a suplicarem que olhemos para eles: “Olhe lá para mim! Por que estou aqui? Não sou louco. É uma infâmia. Vão deixar-me morrer nesta prisão?”
Gritos, gestos vivos não provam que estes emparedados tenham perdido o juízo. O homem que cai no fundo de um poço fará ouvir a sua voz, mal oiça alguém passar perto.
Outros estão calmos:
- Não nego que tive uma anemia cerebral, mas já lá vão três anos. Há mais de dois que não sinto nada, estou tão lúcido como antes estava. Por que me não dão alta?
Se fosse um doente do fígado, dos brônquios, dos intestinos, mal estivesse curado sairia do hospital. É isso que está nos hábitos, por a medicina geral ser mais velha do que a psiquiatria. Daqui a vários séculos a psiquiatria terá bases sólidas. No ano 2100 o curado terá direito a estar curado. Nos nossos dias tem de esperar pela sua hora; como a ciência espera a sua! O louco nasceu cedo de mais.
- Doutor, este homem está mesmo curado?
- É possível que sim. Há meses que o seu estado é normal. Mas não terá uma recaída?
Mais vale um homem ser bandido do que louco. Quando o bandido já cumpriu a pena, abrem-lhe a porta da prisão sem perguntar se vai voltar ao mesmo.»
[Albert Londres, Com os loucos; trad. Aníbal Fernandes, Sistema Solar, Julho 2012]

8 de fevereiro de 2013

Aqui faz solinho; bom fds




Concordo

porque não tentar um individual?

6 de fevereiro de 2013

Breve interlúdio musical


Porque a Net fornece um novo dia

 

Às vezes, lá calha...

«Ele imaginara como seria quando tivesse vinte anos. E ela tinha o rosto branco como uma flor e era tudo o que sabia a seu respeito.»
(Carson McCullers)

Nem sempre a lápis (345)

até Jajouka
(2006)
 
5. «Oh, pá, parecias-me tu, mas estava longe de te saber por cá. Então e que tal?» E, acto contínuo, instala-se a incomodidade de um silêncio devassado pela memória. Sorrimos. Timidamente, infantilmente, sorrimos, incapazes de assumir o que a memória nos devolve como um ferro em brasa, temperado pela forja incandescente do livro sobre a mesa. Até que um, e não necessariamente o mais corajoso, volta a perguntar: «Então e que tal?» Novo silêncio. Agora, ambos sabemos que não há mais nada a dizer – e ambos gostaríamos de falar de tanta coisa, sem recorrer à bengala cansada de estarmos mais velhos – que, o mais provável, é precisarmos de outros vinte e tal anos para nos voltar a ser concedida a alegria com que nos encontramos:
«Então e que tal?»
Às vezes, é quase insultante; é como se se empenhassem em continuar a recusar-me o direito de acompanhá-los, de envelhecer com eles.
Enquanto se afasta, retomo o livro sem mágoa, e John Berger tranquiliza-me: «Encontramos nos braços do outro uma forma de partir juntos, um meio de nos transportarmos para outro lado».

Papiro do dia (287)

«Conhecia as traseiras daquelas casas como o seu próprio quintal, os velhos tanques de lavar, os arcos de barris, as ameixieiras, as latrinas, a carcaça de automóvel sem pneus que estava havia anos atrás de uma das casas. Conhecia o Quarter nos domingos de manhã quando as mulheres penteavam e entrançavam os cabelos das crianças ao sol nos degraus da frente, quando as raparigas crescidas andavam de um lado para o outro nos longos vestidos de seda brilhante, e os homens olhavam e assobiavam baixinho os blues. E depois do jantar também o conhecia. Então a luz das lâmpadas de óleo piscavam no interior das casas e fazia nascer longas sombras cá fora. E havia o cheiro de fumo e peixe e milho assado. E havia sempre alguém a dançar ou a tocar harpa.
Mas havia uma altura em que o Quarter era estranho para ele, e era tarde na noite. Algumas vezes ao regressar tarde a casa depois de uma caçada, ou quando estava simplesmente inquieto, passara na rua àquela hora. As portas estavam todas fechadas ao luar e as casas pareciam ter encolhido e tinham o ar de choupanas vazias há muito tempo. Ao mesmo tempo havia aquele silêncio que nunca se instala num lugar abandonado, e só se faz sentir num lugar onde há muita gente a dormir. Mas enquanto ouvia aquele silêncio absoluto, tomava gradualmente consciência de um som, e era isso que tornava o Quarter um lugar estranho tarde na noite.»
[Carson McCullers, Contos Escolhidos [Fragmento sem título]; trad. Ana Teresa Pereira, Relógio d’Água, Agosto 2012;

5 de fevereiro de 2013

Uns, omitem


2 de fevereiro de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

Nem sempre a lápis (344)

até Jajouka
(2006)
4. Faz um calor sufocante; ao longo do rio e das margens da barragem da Aguieira vêem-se bandos de famílias espojados na relva. Vistos da ponte lembram uma feira, um arraial de plásticos coloridos, em hilariante contraste com a arrogância metalizada dos veículos acautelados sob o recato dos freixos e chorões. (...) «Já cheira a Algarve…», disse-me a Olga com expressão sonhadora a primeira vez que chegámos a Santana da Serra, a meio de uma tarde de Maio de 1976. Decorridos trinta anos continuo a sentir esse cheiro intacto ao alcance da mão e das minhas narinas surpreendidas; motivo de peso para continuar a usar a Nacional com os vidros da carrinha bem abertos.
(...) Parei o carro para o meu pai cumprimentar um rapaz da sua criação – «Já não te lembras de mim, ó Arelo?», enquanto o outro folheava um álbum com oitenta anos à procura da expressão ou da voz que lhe era familiar, catano! – e vi por entre a voragem do mato o que resta da eira. Gostava de me deitar ali depois de jantar, nas lajes quentes, a ouvir os manguais a malhar pão e tretas cochichadas e interditas às primas, que nos ficavam a ver sentadinhas nos degraus da escada, a uma distância que as tias lá sabiam por que a consideravam suficientemente prudente. Se calhar, roídas de inveja; se calhar, talvez não. Volta e meia viravam a cabeça e via-as com a mão a tapar a boca e a rirem-se a olhar-nos pelo canto do olho, as grandes ranhosas!
(...) encaminho-me para o Café do Casino – esperançado de que o aspecto exterior corresponda ao interior – decidido a comprar um livro e uma lapiseira. Mas quando entro, enquanto o meu sobrinho pedia as bicas a uma empregadita vestida à civil, como uma vulgar cliente, não vi as estantes baixas onde, como se atraído pela inevitabilidade do destino, achei o único exemplar de Apresentação do Rosto (Herberto Helder) entre um amontoado de livralhada para os decadentes veraneantes que, no início dos anos 70, ainda teimavam em ir a águas para o Luso. Nessa altura, eu só tinha lido, emprestado e com prazo de devolução, A Colher na Boca, e marimbei-me para o filme que acho que ia ver (...) deixando-me ficar a ler no café até os empregados, fardados como funcionários do casino, pigarrearem de toalha na mão para me darem a entender que já chegava; podia estragar a vista.
 

Papiro do dia (286)

«Le cuento a Robert que el lunes de Pentecostés, en el estreno de El sueño de Strindberg, estuve sentado justo detrás de Thomas Mann. Me llamaron la atención su larga y puntiaguda nariz y su cabello espeso, que no había encanecido. Robert dice:
- Ésa es la higiene del éxito. ¡Cuántos hay a quienes el fracaso lleva antes de tiempo a la tumba. Thomas Mann lo ha tenido todo desde su juventud: tranquilidad burguesa, seguridad, felicidad familiar, reconocimiento. Ni siquiera la emigración fue capaz de derribarlo. Siguió escribiendo en suelo extranjero como un diligente gestor en su oficina, y por eso las novelas de José, que resultan secas y sudorosas, no son ni con mucho tan bellas como sus asombrosas primeras obras. De algún modo, a las cosas tardías se les nota el aire del despacho, y ése es también el aspecto de quien las compone: el de alguien que siempre ha estado sentado, laborioso, al escritorio y ante los libros de contabilidad. Pero su formalidad burguesa y su esfuerzo, casi científico, por poner cada detalle en el sitio adecuado tienen algo que impone respeto.
Más tarde, mientras pasamos a toda prisa ante un grupo de árboles cargados de fruta, dice:
- Los árboles sí que tienen suerte. Pueden dar fruto todos los años.
[Carl Seelig, Paseos con Robert Walser (e 6 fotos); trad. Carlos Fortea, Siruela, 3.ª ed. Setembro 2009]