23 de fevereiro de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Uma cor cravada na terra como uma flor do campo,
áspera e despreocupada.»
(Claudio Magris)

Nem sempre a lápis (263)




Passei pelos denominados lugares certos, antes ou depois da precisão do momento exacto; nunca lá estive. Testemunho a ausência, onde se curricula o vício da presença.

Papiro do dia (192)




«Uma vez, durante um congresso literário no museu judaico de Eisenstadt, a capital do Burgenland a poucos quilómetros de Viena, um rabino vienense, que participava na nossa discussão, perguntou-me com um vago tom de cautela: “Mas o senhor não é judeu, não é verdade?” Quase não acabara de lhe responder, dizendo-lhe que não o era de facto, e já o rabino se apressava a precisar, com as mãos entendidas para diante, como para desfazer qualquer eventual equívoco ou afastar uma preocupação minha: “Era só uma pergunta…”»
[Claudio Magris, Danúbio; trad. Miguel Serras Pereira, Quetzal, Março 2010]

21 de fevereiro de 2012

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Os livros deveras maus são raros e um falhanço literário clamoroso é um caso anormal relativamente à aculturação estilística média, como o é um vistoso erro de ortografia no quadro de uma alfabetização generalizada.»
(Claudio Magris)

Nem sempre a lápis (262)

Vejo-nos sentados em universos paralelos: ele, em cima da esteira a meditar; eu, a observar na esplanada da falésia. Sinto que comunicamos enquanto me ausento; que me observa. A ansiedade encena a realidade, tranquiliza-a.

Papiro do dia (191)

«A cisão entre natureza e cultura produz o mal-estar nesta última. Na cultura alemã está pelo menos viva a consciência do mal-estar e a nostalgia messiânica da sua cura. A lírica de Eichendorff, com o murmurar dos seus bosques, e o pensamento utópico de Bloch recordam-nos a nossa mutilação; Hölderlin diz-nos que somos órfãos dos deuses e que sem essa consciência do exílio não pode haver sequer esperança de redenção. Mas a nossa cultura não vem do bosque de Eichendorff nem do mar de Melville; nasce antes da monótona fantasia de Sade, na qual – dizia Flaubert – não há nem uma verdadeira árvore nem um verdadeiro animal. A mundanidade social constitui o nosso único horizonte.
O mal-estar na civilização, soberbamente evocado por Freud, resulta para mais de uma contradição insanável. A civilização e a moral baseiam-se numa distinção necessária e dificilmente fundamentável, a distinção existente entre homens e animais. É impossível viver sem destruirmos a vida animal, pelo menos a dessas existências mínimas que escapam à nossa percepção, e é impossível reconhecermos aos animais direitos universais e invioláveis, considerarmos kantianamente cada animal mais como um fim do que como um meio; a fraternidade solidária pode incluir a Humanidade, mas detém-se nela. A impossibilidade referida torna inevitável a separação entre mundo humano e mundo natural e obriga a cultura, que se bate contra os sofrimentos infligidos aos homens, a construir o seu edifício sobre o sofrimento animal, tentando aliviá-lo mas resignando-se a não o poder eliminar. A irremediável dor dos animais, povo obscuro que acompanha como uma sombra a nossa existência, lança sobre esta última todo o peso do pecado original. A obra de Canetti, especialmente Massa e Poder, é a descoberta da treva que se acumula em nós com a morte dos seres vivos de que nos nutrimos.»
[Claudio Magris, Danúbio; trad. Miguel Serras Pereira, Quetzal, Março 2010;
nutrição] 

20 de fevereiro de 2012

Colecção Ovelha Negra


«En un lejano país existió hace muchos años una Oveja negra. Fue fusilada. Un siglo después, el rebaño arrepentido le levantó una estatua ecuestre que quedó muy bien en el parque.
Así, en lo sucesivo, cada vez que aparecían ovejas negras eran rápidamente pasadas por las armas para que las futuras generaciones de ovejas comunes y corrientes pudieran ejercitarse también en la escultura.»
[para o Marcelo Teixeira] 

19 de fevereiro de 2012

Breve interlúdio musical



Jorge Volpi

Porque a Net fornece um novo dia

(com necrologia dos Palop)

Às vezes, lá calha...

«Os nossos avós passaram por aqui a cavalo, diz uma legenda de fotografia, e nós varremos hoje estas ruas.»
(Claudio Magris)

Nem sempre a lápis (261)

Escrevo com frequência no computador, para onde traduzo as notas que gatafunho. Contrariando todas as sugestões dos colegas, o meu filho escolheu um notebook «para ele pensar que está a escrever à máquina». Escrevo no computador mas ler, só sei ler no papel. Nada de grave; é natural que tenha atingido o limite das minhas capacidades, destinadas a outras possibilidades.

Papiro do dia (190)

«No portal há uma dupla águia, que tem entre as garras a cabeça de um turco, e a pedra tumular de um chefe cigano. A grosseira pedra bárbara desta igreja presta justiça à altiva realeza nómada de um povo obscuro e desprezado, ausente da nossa consciência como da memória histórica em geral.
A grande poesia encontra-se muitas vezes impregnada por esta consciência da história natural do Homem: Lucrécio, Leopardi, os poetas líricos chineses que inserem o indivíduo, e a sua melancolia por causa de um amigo longínquo, na história milenar da paisagem na qual ele respira, no pano de fundo das montanhas e do lago. Também as grandes religiões levam em conta a matéria de que somos entretecidos; aquilo que as distingue das religiões postiças e supersticiosas, dizia Charleston, é o seu materialismo de boa cepa.»
[Claudio Magris, Danúbio; trad. Miguel Serras Pereira, Quetzal, Março 2010]

18 de fevereiro de 2012

Enquanto assistem...



17 de fevereiro de 2012

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Toda a viagem, como este nosso caminho para Dillinge, é uma resistência à privação, porque viajamos não para chegar mas para viajar e entre as esperas brilha o puro presente.»
(Claudio Magris)

«É bom trabalhar nas Obras» (104)

«Várias vezes por ano, celebravam-se reuniões de todas as famílias e era então que conseguíamos medir os estragos que aquela década desatinada tinha causado em cada uma. A essas festas acorriam, por exemplo, crianças cujos pais viviam em trio ou noutras situações de poligamia e, em vez de se sentirem envergonhados, gabavam-se disso. Os nomes dos meus contemporâneos constituem outro vestígio eloquente dessa época. Alguns correspondiam às tendências ideológicas da família, como “Krouchevna”, “Lenine”, inclusive “Soviete Supremo”, a quem pusemos a alcunha “o Viet”. Outros, a crenças religiosas como “Uma” ou “Lini”, cujo nome completo honrava a serpente energética da Índia, e outros a cultos mais pessoais, como “Clítoris”. Era este o nome de uma menina bonita e inocente – filha de um escritor infrarrealista – que ainda não compreendia a ofensa que os seus pais lhe tinham feito e que, para infelicidade dela, não contava com nenhuma alcunha.»


[Guadalupe Nettel, O corpo em que nasci; em tradução para a Teodolito]

Papiro do dia (189)

«Em Passau, o viajante sente que o correr do rio é desejo do mar, nostalgia da felicidade marinha. Esse sentido de plenitude vital, essa dádiva das endorfinas e da pressão sanguínea ou de algum ácido benevolente segregado pelo cérebro, tê-lo-ei sentido deveras nas ruelas e margens de Passau, ou terei julgado experimentá-lo apenas porque agora os procuro descrever a uma mesinha do Café San Marc? Provavelmente no papel finge-se, inventa-se a felicidade. A escrita talvez não possa dar verdadeiramente voz à desolação absoluta, ao nada da vida, a esses momentos na qual ela é só vazio, privação, horror. Já o simples facto de escrever enche de certo modo o vazio, dá-lhe forma, torna comunicável o horror e portanto, ainda que em escassa medida, triunfa sobre tudo isso. Existem altíssimas páginas de tragédias, mas para quem morre ou quer morrer, no instante em que morre ou quer morrer, até essas altíssimas páginas de dor soariam demasiado gloriosas, timoratamente aquém da dor do momento.
A privação absoluta não pode falar; a literatura fala dela e de certo modo exorciza-a, vence-a, transforma-a noutra coisa, converte a sua irredutível e inaproximável alteridade em moeda corrente. O viajante incerto, que na viagem não sabe que peixes pescar, ao reler os seus próprios apontamentos descobre-se, com certa surpresa, um pouco mais alegre e sereno e sobretudo mais decidido e resoluto do que, enquanto vivia e se deslocava, pensou; descobre ter apresentado claras e nítidas respostas às interrogações que o assaltavam, na esperança de poder, um dia, acreditar igualmente nessas respostas.
Entramos assim na tranquilização da literatura. Nela tudo se torna mais amável, serenizante como as portas e as praças de Passau.»
[Claudio Magris, Danúbio; trad. Miguel Serras Pereira, Quetzal, Março 2010;

16 de fevereiro de 2012

rima pobre, é certo
mas com votos de bom emparelhamento

15 de fevereiro de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«O idílio não gosta das mobilizações nem da organização, foge dos regulamentos de segurança pública e das polícias da indústria cultural.»
(Claudio Magris)

Nem sempre a lápis (260)

Quando fui acordado pela notícia de que vou ser avô, a imagem que me ocorre é o inevitável tóing! – prolongado. Depois, passei a tarde a rir às gargalhadas despregadas e desfraldadas e enfunadas, ao Sol em Armação. Há trinta e seis anos que a praia me acolhe trazido pela mãe da criatura de três meses; assim, sempre no presente. Nos melhores momentos, vi o sorriso do meu avô estampado no meu rosto, a dizer-lhe que vou ser como ele. Lá mais para o final da época, no Algarve – onde encontro esta outra dimensão anotada no momento; há três semanas.

Papiro do dia (188)




«A história chama-se “A Rosa”. “A Rosa era feliz. Vivia em harmonia com as outras flores. Um dia, a Rosa sentiu-se murchar e estava quase a morrer. Viu uma flor de papel e disse-lhe: “Que bela rosa és tu” – “Mas eu sou uma flor de papel” – “E tu sabes que eu estou a morrer?” – A rosa então morreu e não voltou a dizer mais nada.»
[Claudio Magris, Danúbio; trad. Miguel Serras Pereira, Quetzal, Março 2010]

14 de fevereiro de 2012

Desacordo policial

13 de fevereiro de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Tragédias e contratempos são postos no mesmo plano, porque a verdadeira tragédia da vida é ela ser por inteiro e somente um contratempo.»
(Claudio Magris)
[plano

«É bom trabalhar nas Obras» (103)

«- Filhinhos, escutem-me bem – disse, sentada na cabeceira da nossa mesa de cedro. – O mundo que vos vai calhar, quando crescerem, será muito mais duro e difícil do que o vosso pai e eu tivemos. Por isso vão ter de estudar e prepararem-se para o enfrentar. Entretanto, contem comigo para vos encaminhar para um futuro a salvo de tudo.
Para o caso das implicações desta promessa escaparem a alguém, o que a mamã estava a dizer entrelinhas era que não nos iria deixar em paz um minuto da nossa vida enquanto não alcançássemos um título universitário útil (pelo menos uma formatura) e, a seguir, um trabalho estável graças ao qual pudéssemos poupar toda a vida, como ela fazia. Apesar do que lhe possa parecer, doutora Sazlavski, a minha mãe era também uma pessoa incrivelmente carinhosa, em parte por natureza mas também com o objectivo de educar seres humanos sensíveis, capazes de receber e transferir afecto. Sei pertinentemente que todas as pessoas vêem a sua mãe como uma pessoa bonita mas, digo-lhe com toda a franqueza – e não há ninguém que se tenha atrevido a contradizer-me –, a mamã superava as fasquias de beleza não só mexicana como as de qualquer país com possibilidades de concorrência. Não lia livros sobre educação (seguramente, pensava que ninguém podia ensiná-la), em contrapartida lia religiosamente Wilhelm Reich e a sua teoria do orgasmo como remédio santo. Enquanto o meu irmão e eu construíamos castelos de areia nas praias onde o meu pai nos levava, a mamã participava em seminários em Santa Bárbara sobre como desbloquear a sua energia sexual, quando, na realidade, teria feito melhor se tivesse ido a um consultório para aprender a contê-la. A minha mãe estava decidida a deixar para trás todas as suas inibições e a impedir que nós adquiríssemos as nossas.»
[Guadalupe Nettel, O corpo em que nasci; em tradução para a Teodolito;
envelhecer]

Papiro do dia (187)

«Na praça de Ulm ergue-se a catedral, com a sua torre, a mais alta do mundo, e com a heterogeneidade da sua plurissecular construção, iniciada em 1377 e terminada – deixando de lado sucessivos restauros – em 1890. Entre os numerosos guias da catedral destaca-se o cuidadoso e pormenorizado texto de Ferdinand Thrän, que descreve e narra com minúcia, dos ornatos das colunas ao preço da venda de um par de calças oferecido por um devoto fiel, o moleiro Wammes, para os trabalhos da igreja (seis xelins e dois cêntimos). Além de autor do guia, Thrän era também um arquitecto goticizante e esteve quase a causar a ruína da catedral na sequência obstinada acerca de uma “lei” dos arcos, que julgava ter descoberto. Na capa da douta obrazinha (A Catedral de Ulm, Uma Descrição Exacta da mesma, 1857) o impressor, por uma distracção que parece obedecer à necessidade do destino de Ferdinand Thrän, esqueceu-se de escrever o nome deste último, que o bibliotecário da Biblioteca Nacional de Viena acrescentou a lápis, pelo menos no exemplar conservado no Palácio Albertina.
Esse esquecimento é um dos muitos agravos sofridos por Thrän, arquitecto e restaurador da catedral no século passado e hipocondríaco especialista em injúrias, como atesta o escrupuloso Caderno das Ofensas Recebidas que ele escreve durante anos e que jaz, inédito e ignorado, numa arca guardada numa arrecadação da catedral. Tenaz rogador de pragas e persistente alvo de contínuas injustiças, Thrän parece sublinhar, com uma complacência azeda, que a vida é despeito e afronta, pelo que não lhe resta senão manter um inventário rigoroso das respectivas prepotências. Se a escrita autêntica nasce do desejo de dar conta e razão do prolixo impasse de viver, Thrän é um autêntico escritor.»
[Claudio Magris, Danúbio; trad. Miguel Serras Pereira, Quetzal, Março 2010;

12 de fevereiro de 2012

11 de fevereiro de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

«A pergunta “quem és tu?” ou “quem sou eu?” tem uma resposta muito fácil: cada um conta a sua vida. A pergunta que não tem resposta é outra: “que sou eu?”. Não “quem” mas sim “quê”. Aquele que se faça essa pergunta irá enfrentar-se com uma página em branco, e não será capaz de escrever uma única palavra.»


Às vezes, lá calha...

«A literatura como transporte; há qualquer coisa, como em qualquer mudança, que se perde e qualquer coisa esquecida que se redescobre.»
(Claudio Magris)

Nem sempre a lápis (259)




Desta vez, passei duas semanas em casa sem ter ido a Lisboa; entrei e saí por Sete Rios, de autocarro. O frio assim o aconselhou, tomado o pequeno-almoço agora ao abrigo interior da esplanada. Sinto a falta do passeio com os cães, da pausada deambulação à descoberta do bairro, ao fim da tarde. É bom sentir o Sol em andamento, sentado nos quilómetros; dobradas as provas dentro do bolso. Vou ver das amendoeiras.

Papiro do dia (186)

«Céline fala do lugar inferior e fervilhante do sofrimento feio e imediato, grita com a voz destroçada das criaturas maculadas; reitera a inaceitabilidade e a insensatez do mal. O seu absoluto torna-se distorção e ele acaba por pôr no mesmo plano todos os actores de alguma maneira relevantes da História, Hitler e Léon Blum, na medida em que todos lhe surgem como igual expressão da vontade de poder, beneficiários do favor das massas e por isso detentores da força. Como um messias dorido e culpado, identifica-se com os algozes nazis, porque os vê na derrota.
No Carnaval fétido e sangrento de Sigmaringen tudo se lhe afigura insensato e intercambiável: o impotente Pétain, o louco Corpechot que se proclama almirante do Danúbio, Laval que, no colapso, nomeia Céline governador das ilhas de Saint-Pierre e Miquelon, os colaboracionistas franceses, as bombas americanas e os Läger nazis confundem-se num único e atroz sabat. Céline vive na pele esta desconexão, este “fio da História que me atravessa de ponta a ponta e de alto a baixo, das nuvens até à minha cabeça e ao olho do cu.”»
[Claudio Magris, Danúbio; trad. Miguel Serras Pereira, Quetzal, Março 2010;
Philippe Wojazer Reuters (arquivo)]

10 de fevereiro de 2012

estivesse eu por perto, e dava-lhe à bomba

9 de fevereiro de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia



Às vezes, lá calha...

«Toda e qualquer vida se decide na capacidade de crença ou na sua ausência, toda e qualquer viagem se joga entre a pausa e a fuga.»
(Claudio Magris)

«É bom trabalhar nas Obras» (102)

«As escadas do meu prédio jogaram um papel na minha educação que os meus pais nunca suspeitaram. Tratava-se de um lugar bastante fresco e solitário, iluminado apenas o indispensável por umas janelas de tijolo de vidro. Nelas, quase acidentalmente, levei a cabo uma descoberta importante relacionada com o meu corpo. Ocorreu durante umas férias em que fazia muito calor. Uma das minhas brincadeiras favoritas consistia em subir aos saltos, de dois em dois, os degraus de tijolo e descer a escorregar pelo corrimão de ferro que havia para nos segurarmos. Era uma coisa que eu tinha praticado muitas vezes, mas de maneira bastante inócua. No entanto, essa tarde, por uma razão que não saberia explicar, a sensação revelou-se surpreendentemente agradável. Era como umas cócegas, logo acima da entreperna, que exigia que o repetisse uma e outra vez, cada vez mais rápido. Era o contraste total: a sensação de estar ali oculta, ao abrigo dos olhares, e, ao mesmo tempo, o perigo de que passasse alguém e me encontrasse entregue a esse jogo que adivinhava inadequado; a frescura do corrimão e o calor da fricção provocavam um calafrio viciante no meu corpo. Aquelas sensações abriram-me, em questão de segundos, as portas para o mundo paradisíaco do onanismo, como quem tem acesso a uma segunda dimensão ou descobre uma substância psicadélica. A última coisa que me ocorreu nesse momento, foi relacionar aquilo com os longos e aborrecidos discursos dos meus pais sobre as funções do sexo. Tanto assim é que uma tarde, com a maior das inocências, revelei à minha mãe o motivo por que passava tanto tempo nas escadas de serviço e, para minha surpresa (provavelmente para a sua também, doutora Sazlavski), não lhe pareceu uma ideia nada boa que a sua filha se masturbasse num espaço tão exposto como aquele, por onde não circulava ninguém, mesmo fazendo-o vestida e a fingir que brincava a outra coisa qualquer. A sua reacção foi muito mais próxima da vergonha do que da exaltação e, como se se tratasse de uma coisa quase reprovável, pediu-me que fizesse "isso" unicamente no meu quarto onde, naturalmente, também dormia o meu irmão. E foi assim que, em plena década dos setenta, me incorporei na ancestral tradição dos onanistas de closet, essa legião de crianças que raras vezes assomam a cabeça acima dos lençóis. Devo admitir, no entanto, que a minha obediência não foi completa. Voltei muitas vezes à escada, muitas mais do que as que a minha mãe imagina, redobrando a vigilância para que ninguém me visse entregue ao refrescante ritual. Ainda me surpreende recordar as coisas que me excitavam nesses primeiros anos. Tratava-se de eventos pouco previsíveis como palavras, entoações de voz, ou presenciar um beijo na via pública, mas também certos sons, como o assobio do vendedor de batata-doce ou do amolador. Todas essas insignificâncias eram um apelo para correr para o corrimão ou para o meu quarto. Às vezes, vejo cachorros que, perante qualquer possibilidade de fricção, se abandonam publicamente aos prazeres de Onan. Eu era assim, aos seis anos. Uma menina incontinente que sucumbia a uma espécie de desejo pelos móveis, os braços da poltrona, a beira de uma mesa, a beira frontal do lavatório, os tubos de metal que seguravam os balancés.»
[Gudalupe Nettel, O corpo em que nasci; em tradução para a Teodolito] 

Papiro do dia (185)

«Entre as muralhas deste castelo nas margens do Danúbio um outro actor de primeiro plano do sangrento teatro do século, Céline, viveu, sofreu e recitou o desenraizamento e o pesadelo da guerra total.
Há uma rapariga que serve de cicerone aos visitantes do castelo. Com uma cantilena mecânica desbobina e ilustra a História e a Arte, tapeçarias do século XVII, os canhões oferecidos por Napoleão II. Quando lhe pergunto onde estava instalado o marechal Pétain, encolhe os ombros, perplexa, com o ar de quem ouve tal nome pela primeira vez: pouco depois, indicando algumas salas, diz-nos que eram os aposentos de Laval. As palavras “Vichy” e “Laval” soltam-lhe a memória e fazem-na desfiar datas e dados, mas nunca ouviu o nome de Pétain.
Este saber intermitente da guia turística desprevenida teria agradado a Céline, o qual descobriria nele a tragicómica esquizofrenia da História que ele próprio vivera justamente em Sigmaringen, onde chegara no rasto do Governo de Vichy em plena catástrofe. No D’un Château l’autre, que encurta e dilata a estada em Sigmaringen, Céline escreve: “se balbucio disparates, pareço-me, no fundo, com numerosas guias”; o seu livro é com efeito de algum modo um baedeker, um compêndio de História ou, para Céline, do seu delírio desenfreado. Ele próprio, em Nord, profetizava que dentro de dez anos já ninguém saberia quem era Pétain ou confundiria o seu nome com o de uma mercearia.»
[Claudio Magris, Danúbio; trad. Miguel Serras Pereira, Quetzal, Março 2010;
& derivados]

8 de fevereiro de 2012

7 de fevereiro de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«A vida, dizia Kierkgaard, só pode ser compreendida quando se olha para trás, embora devesse ser vivida olhando para a frente – ou seja, para alguma coisa que não existe.»
(Claudio Magris)

Nem sempre a lápis (258)

Não aderi ao controverso acordo ortográfico por uma questão de princípio e ponto final; se é que tal coisa existe. Ganho muito mais em ler o poliglota Raduan Nassar e o polifónico Ruy Duarte de Carvalho; na verve local da língua portuguesa. Junta-se-lhes agora a mineira Andréa Del Fuego, simplesmente por isto: «Serra Morena é íngreme, úmida e fértil. Aos pés dela vivem os Malaquias, janela com tamanho de porta, porta com autoridade de madeira escura.»

[os Malaquias]

Papiro do dia (184)

«Talvez escrever signifique colmatar espaços brancos da existência, esse nada que imprevistamente se abre nas horas e nos dias, entre os objectos do quarto, sorvendo-os numa desolação e numa insignificância infinita. O medo, escreveu Canetti, inventa nomes para se distrair; o viajante lê e anota nomes nas estações que deixa para trás com o seu comboio, nas voltas dos caminhos por onde o levam os seus passos, e continua um tanto aliviado, satisfeito com essa ordem e esse escandir do nada.
Sigmund von Birken procurava os nomes verdadeiros das coisas e pusera-se a viajar, como dizia, para observar directamente a fonte do Danúbio, sobre o qual tantos haviam escrito mas que poucos se tinham dado ao trabalho de ir ver. Não o convencia plenamente a Cosmografia de Sebastien Münster, que referia a origem do Danúbio ao dilúvio universal (XI, 11) e queria verificar se o nome do rio podia ser realmente remetido para o rumor, para o fragor das suas nascentes, conforme algumas etimologistas sustentavam. O seu gosto barroco pelos gracejos e extravagâncias não podia em todo o caso induzi-lo a comprazer-se no imaginar o grande rio tornado seco pelo fechar de uma torneira.»
[Claudio Magris, Danúbio; trad. Miguel Serras Pereira, Quetzal, Março 2010;
funileiro]

6 de fevereiro de 2012



5 de fevereiro de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Uma vez desmembrada a família,
a terra dividiu-se em dois continentes.»
(Guadalupe Nettel)

«É bom trabalhar nas Obras» (101)

«Outras das ideias dominantes na minha família era a de nos proporcionar uma educação sexual livre de tabus e repressões de qualquer índole. Esta era levada a cabo através de um diálogo aberto e, em certas ocasiões, excessivamente franco sobre o tema, mas também por meio de contos alegóricos. Durante muitas noites – embora também pudesse ocorrer a meio da tarde, se o considerava oportuno – a minha mãe contava uma história da sua própria e surpreendente inspiração, esclarecendo, isso sim, que se tratava de um conto fictício com intenções educativas. Recordo, por exemplo, a sua versão muito peculiar de «A bela adormecida», mais ou menos assim:
Uma tarde fria, de Inverno, a rainha chamou alarmada o médico da corte para que lhe explicasse por que é que havia mais de dois meses que não menstruava. O médico, espantado com a ingenuidade da sua soberana, respondeu-lhe: «Sua majestade deveria saber nesta altura que se uma mulher – nobre ou plebeia – não sangra durante mais de trinta dias seguidos, o mais provável é que se encontre grávida.» Essa tarde, o rei e a rainha anunciaram a notícia aos súbditos: muito em breve iria haver um herdeiro ao trono. E foi assim que, em menos de nove meses, nasceu uma bela princesinha a que chamaram Aurora.
O que sucedia depois: a roca envenenada, o sonho da princesa e tudo o resto, deixava de ter importância, depois de um início como este. No entanto, o conto não explicava de todo o assunto. Passado pouco tempo, essa informação começou a tornar-se-me incompleta e, ao mesmo tempo, inquietante. Qual era exactamente a natureza da regra? Porque razão podia uma rainha ficar grávida? Que relação tinha o sangue com o fabrico de um bebé? A história não esclarecia tudo isso. Os meus pais não queriam mentir-nos a esse respeito, mas tão-pouco lhes era fácil lutar, como pretendiam, contra a tradição de mistério em que eles próprios tinham sido educados. Para facilitarem a tarefa, ofereceram-nos uma série de livros que explicavam a anatomia detalhada dos homens e das mulheres, assim como as relações sexuais e a sua consequência. No entanto, antes que tivesse tempo para assimilar o tema da reprodução, os meus pais apressaram-se a explicar-nos que o uso dos genitais não estava unicamente destinado a esse fim, mas também a outros, recreativos como o sexo. Embora os filhos sejam produto do coito, o objectivo de um encontro como esse não era o de gerar novas vidas, pelo menos na maioria dos casos.
Em vez de adquirirem claridade, as coisas tornavam-se cada vez mais confusas e desesperantes.
- Então – perguntava eu a caminho da escola, no assento de trás do carro, a tentar recapitular –, para que é que as pessoas têm relações sexuais?
- Para sentir prazer – respondiam em uníssono os dois adultos sentados na parte da frente.»
[Guadalupe Nettel, O corpo em que nasci; em tradução para a Teodolito;
fila da frente]

Papiro do dia (183)

«A relação é uma epístola incisiva, cuja precisão científica se combina com a elegância humanística e se contamina de melancolia; nela se reconhece não só o autor dos estudos sobre abalos e deslocações de massa, marcos miliários da sedimentologia, mas também o mais distante e esquivo autor de textos menos conhecidos, como Elogio da Distracção, e de escrupulosas e inquietantes traduções de poemas românticos alemães.
Compreende-se, pela relação, que deve ter sido num primeiro momento a pousada a atraí-lo, essa Gasthaus com o telhado íngreme, revestida de madeira, que se encontra perto da fonte do Breg. Há muitos hotéis na sua relação, que é a narrativa verdadeira de uma expedição, como a dos exploradores em busca das nascentes do Nilo, e regista assim as etapas e fases do caminho; locandas com anões de pedra no jardim, raparigas, velhas pianolas, escadas de madeira conduzindo aos desvãos do telhado. Entre as linhas da relação, escrita por um homem sob outros aspectos tão amável e tranquilizador, existe uma dissimulada tentativa de fuga, o andamento vicioso de alguém que parece procurar um esconderijo, um lugar onde desaparecer e passar a não ser ninguém. As estalagens são sítios acolhedores de conversa e bebida, mas nos recantos um pouco mais escuros da Stube ou nos quartos com o tecto inclinado o autor procura algo de diferente e antitético, a cabana da bruxa na floresta, descoberta nos livros de infância, e à qual ninguém pode jamais voltar. É como se, ao contrário de Tristram Shandy que temia nunca mais voltar a encontrar-se, ele quisesse perder-se e fornecer a si próprio indicações de engano.»
[Claudio Magris, Danúbio; trad. Miguel Serras Pereira, Quetzal, Março 2010]

4 de fevereiro de 2012

3 de fevereiro de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Era como se, a certa altura, tivesse decidido construir uma geografia alternativa, um território secreto dentro da unidade para passear à minha vontade, sem ser vista.»
(Guadalupe Nettel)

«É bom trabalhar nas Obras» (100)

«Nesse tempo – eu devia estar a começar a primária – fui adquirindo o hábito da leitura. Começara a ler uns dois anos antes, mas, dado que agora tinha um acesso contínuo ao universo nítido ao qual pertencem as letras e os desenhos dos livros infantis, decidi aproveitá-lo. Lia principalmente contos, alguns mais ou menos longos como os de Wilde e os de Stevenson. Preferia as histórias de suspense ou de terror como O retrato de Dorian Gray ou O diabo numa garrafa. Também lia com frequência um volume de lendas bíblicas que o meu pai tinha – tão ou mais aterradoras –, como aquela em que a princesa Salomé decide decapitar o homem que tanto desejava ou aquela em que atiram Daniel para a cova dos leões. O passo para a escrita deu-se naturalmente. Nos meus cadernos pautados, à maneira francesa, apontava histórias em que os protagonistas eram os meus companheiros de aula que passeavam por países remotos, onde lhes sucediam toda a espécie de calamidades. Aqueles contos eram a minha oportunidade de vingança e não podia desperdiçá-la. A professora não tardou a dar-se conta e, movida por uma estranha solidariedade, decidiu organizar uma tertúlia literária para que pudesse expressar-me. Não aceitei ler em público sem antes me assegurar de que um adulto ficaria ao meu lado nessa tarde, até que os meus pais me viessem buscar, pois era provável que mais do que um dos meus companheiro se lembrasse de ajustar contas à saída das aulas. No entanto, as coisas correram de maneira diferente da que eu esperava: ao terminar a leitura de um conto, onde os meus companheiros morriam tragicamente enquanto tentavam escapar de uma pirâmide egípcia, os meninos da minha turma aplaudiram emocionados. Os que tinham protagonizado a história aproximaram-se satisfeitos para me dar os parabéns, e os que não tinham, suplicaram-me que os fizesse participar no conto a seguir. Foi assim que, pouco a pouco, adquiri um lugar particular dentro da escola. Não tinha deixado de ser marginal, mas essa marginalidade já não era opressiva.
Eram os anos setenta e a minha família tinha abraçado algumas das ideias progressistas que imperavam nesse momento.»
[Guadalupe Nettel, O corpo em que nasci; em tradução para a Teodolito;
hábito de leitura] 

Papiro do dia (182)

«A desgraça fascista de Heidegger não é um incidente ocasional, porque o fascismo, na sua dimensão menos ignóbil mas nem por isso menos destrutiva, é também esta atitude de quem sabe ser um bom amigo do seu companheiro de assento, mas não dá conta de que igualmente outros homens podem ser do mesmo modo amigos dos seus companheiros de assento. Eichmann era sincero quando em Jerusalém ficou horrorizado ao descobrir que o pai do capitão Less, o oficial israelita que o interrogara durante meses e para com o qual sentia um profundo respeito, morrera em Auschwitz. Horrorizado, porque a sua falta de imaginação o impedira de descobrir nas listas das suas vítimas rostos, feições, olhares, homens concretos.»






[Claudio Magris, Danúbio; trad. Miguel Serras Pereira, Quetzal, Março 2010;