«A sua memória deu-me muito que pensar. Os indícios que me permitiam julgá-la fizeram-me imaginar uma ginástica intelectual única no mundo. Não se tratava, nele, de faculdade excessiva – mas educada ou transformada. Vejam-se palavras suas: “Há vinte anos que não tenho livros. E também queimei os meus papéis. Agora risco directamente na carne-viva… Retenho o que quero. Mas difícil não é isso. É reter aquilo que amanhã vou querer!... Andei à procura de uma instintiva peneira…”
De tanto pensar nisto, acabei por concluir que o Sr. Teste descobrira leis do espírito que ignoramos. Por certo passara anos a investigá-las: e mais certo ainda era ter destinado outros, muitos anos, a amadurecer as invenções que tinha feito para fazer com elas os seus instintos. Encontrar, nada é. Difícil é acrescentar a nós próprios o que encontramos.
A delicada arte da duração, o tempo, como se distribui e o seu regime – como é gasto em coisas bem escolhidas para as alimentar, especialmente – era uma das grandes procuras do Sr. Teste, muito atento à repetição de certas ideias; fixava-lhes o número. Servia-lhe isto para tornar finalmente instintiva a aplicação dos seus estudos conscientes. Chegava a resumir esse trabalho. Era vulgar dizer: “Maturare!...”
Por certo a sua singular memória retinha pouco mais do que essa parte das nossas impressões que a imaginação não pôde, sozinha, construir. Se imaginarmos uma viagem de balão, com sagacidade e força podemos produzir muitas sensações prováveis do aeronauta; mas na ascensão qualquer coisa há-de haver, no entanto, que é individual e cuja diferença perante o nosso devaneio exprime o valor dos métodos de um Edmond Teste.
Bem cedo este homem soube a importância daquilo a que podemos chamar plasticidade humana. Investigara-lhe os limites e o mecanismo. Como ele devia pensar na sua própria maleabilidade!
Eu vislumbrava sentimentos que me faziam estremecer, uma obstinação terrível em experiências inebriantes. Ele era o ser absorvido na sua variação, aquele que se transforma no seu próprio sistema, o que se entrega inteiro à disciplina assustadora do espírito livre e mata com as suas próprias alegrias as alegrias que tem, a mais fraca com a mais forte – a mais suave, a temporal, a do instante e da hora começada, com a fundamental – com a esperança da fundamental.
E sentia-o senhor do seu pensamento: escrevo aqui este absurdo. A expressão de um sentimento é sempre absurda.
O Sr. Teste não tinha opiniões. Julgo que se apaixonava como queria, e para atingir determinado fim. O que fizera da personalidade? Ele próprio não se via?... Nunca ria, no seu rosto nunca havia um ar de infortúnio. Tinha ódio à melancolia.»
[Paul Valéry, O Senhor Teste; trad. Aníbal Fernandes, Relógio d’Água, 1985]