30 de junho de 2010

Breve interlúdio musical

Para já, não me soa nada mal...

Porque a Net fornece um novo dia

Coisa para tomar sem qualquer espécie de moderação,

Souvenirs (15)

Não há nada como roupa em segundo corpo.
Esta jeitosa, troquei-a em Porto Covo por uma infeliz comprada em Lagoa;
só a tirei para meter na máquina

«É bom trabalhar nas Obras» (16)

«Pertence à cada vez mais rara estirpe dos editores cultos, literários. E assiste todos os dias comovido ao espectáculo de ver como o ramo nobre do seu ofício – editores que ainda lêem e os que se sentiram sempre atraídos pela literatura – se vai extinguindo no começo deste século. Teve problemas há dois anos, mas soube fechar a tempo a editora que, ao fim e ao cabo, embora tendo alcançado um notável prestígio, rolava com assombrosa obstinação para a falência. Em mais de trinta anos de trajectória independente houve de tudo, êxitos mas também grandes fracassos. O declínio da etapa final atribuiu-o à sua resistência em publicar livros com as histórias góticas na moda e outros pastelões, e esquece assim parte da verdade: que nunca se distinguiu pela sua boa gestão económica e que, por outro lado, talvez o tivesse prejudicado o seu excessivo fanatismo pela literatura. Samuel Riba – Riba para todo o mundo – publicou muitos dos grandes escritores da sua época. De alguns, somente um livro, mas o suficiente para que estes constem no seu catálogo. Às vezes, embora não ignore que no sector honrado do seu ofício ficam no activo mais alguns corajosos dom quixotes, custa-lhe ver-se como o último editor. Tem uma imagem algo romântica de si mesmo, e vive numa permanente sensação de fim de época e de fim do mundo, sem dúvida influenciado pela paragem brusca das suas actividades. Tem uma notável tendência para ler a sua vida como um texto literário, para interpretá-la com as deformações próprias do leitor empedernido que foi durante tantos anos. Está, por outro lado, à espera de vender o seu património a uma editora estrangeira, mas as conversações encontram-se encrencadas há já algum tempo. Vive numa fortíssima e angustiada psicose do fim do mundo. E ainda nada, nem ninguém o conseguiu convencer de que envelhecer tem a sua graça. E tem?»
[Enrique Vila-Matas, Dublinesca; em tradução para a Teorema]

À mão de ler (45)

«Passei o último serão a escolher as coisas que ia levar, sabendo que para onde ia não havia carrinhos de bagagem, escadas rolantes nem bagageiros que me facilitassem as coisas. Despedira-me de todos e já estava possuído pela habitual alegria de me pôr a caminho, a sensação de alívio sempre nova que me inunda por saber que ninguém poderá alcançar-me, que não tenho marcações feitas nem me esperam em lado nenhum, que não tenho compromissos a não ser os que o acaso possa originar. Adoro misturar-me assim com a multidão, tornar-me um viajante qualquer, liberto do meu papel, da imagem que temos de nós próprios e que por vezes é uma gaiola tão apertada como a do corpo; com a certeza de não dar de caras com alguém com quem tenha a obrigação de conversar e com a liberdade de mandar para o diabo o primeiro que tente fazê-lo.»

[Tiziano Terzani, Disse-me Um Adivinho; trad. Margarida Periquito, Tinta-da-China, Novembro 2009]

Às vezes, lá calha...

«A linguagem literária cria-se
graças ao equívoco entre a realidade e o desejo.»

29 de junho de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

II FEIRA DA ACHADA
Sábado, 10 de Julho, das 10 às 19h no Largo da Achada
Uma feira de livros usados, muitos deles difíceis de encontrar, discos em vinil, cêdês vários, objectos com marcas de época de vários estilos. Uma feira onde será possível comprar obras de arte. Ver algumas aqui. Haverá mais serigrafias e desenhos.
Uma feira animada por jogos para grandes e pequenos, fotografias «à la minute» e outros fabricos.
Uma feira onde se poderá beber e comer. E conviver.
Tudo oferecido à Casa da Achada - Centro Mário Dionísio para angariação de fundos. Quem quiser oferecer mais coisas, ainda vem a tempo. Até 7 de Julho.
Durante a feira, haverá, na Casa da Achada:
- uma visita guiada por Eduarda Dionísio à exposição «50 anos de pintura e de desenho», com obras de Mário Dionísio e artistas seus amigos (Abel Salazar, Cunhal, Júlio, Pavia, Pomar, Portinari, Resende, Vieira da Silva, etc.), às 16h.
- uma sessão «Direis que não é poesia» com Elisabete Piecho, que brincará com poesia, a partir de textos de Mário Dionísio e outros, às 17h30.
A feira encerrará às 19h com o Coro da Achada a cantar no Largo da Achada.

Souvenirs (14)

Como tenho pena de não saber árabe, qualquer dialecto...

À mão de ler (44)

«Os fotógrafos não entraram, mandaram Tita Recasens para a casa de banho, e o senhor Santiago Vilabrú Cabestany (dos Vilabrú-Comelles e dos Cabestany Roure) assinou tudo em pelota. O primeiro ponto do acordo referia-se à adopção, pelo casal Vilabrú e Vilabrú, de um menino chamado Marcel, de pais desconhecidos.
– Onde o foste desencantar?
– Não é da tua conta.
– Mas que história vem a ser esta?
– Tu assina aqui e cala-te.
Gasull deu-lhe a caneta e Santiago Vilabrú teve de utilizar a cama do amor e do pecado para assinar o papel onde expressava, em pêlo, o seu desejo de adoptar esse bebé.
– O que é que me estás a fazer?
– O que mesmo que me tens andado a fazer desde que voltámos. E ainda antes.
Bom, o segundo documento referia-se à beneficiária testamentária, a senhora Elisenda Vilabrú Ramis (dos Vilabrú de Torena e dos Ramis de Pilar Ramis de Tírvia, meia puta, meia melhor não falarmos nisso por respeito para com o pobre Anselm), da fortuna do senhor Santiago, avaliada em cinco casas de habitação em Barcelona, um considerável punhado de hectares no vale de Ássua e noutros lugares da comarca e um capital de aqui te espero, mas que diminuía, embora não de maneira alarmante, porque o senhor Santiago Vilabrú Cabestany (dos Vilabrú-Comelles e dos Cabestany Roure) tinha decidido que era mais cómodo viver das rendas. Assinado em El Nidito, no dia vinte de Novembro de mil e novecentos e quarenta e quatro.
Gasull pegou na caneta, como se temesse que ele a guardasse num lugar impossível.
– É melhor não voltares a pôr os pés em Torena – disse-lhe ela –. Se tiveres de lá ir, avisa-me.
– Tenho o direito de lá ir sempre que quiser – lembrou-se de repente, como se tivesse piada –. Para ver o meu filho, não?
– Comprei um andar em Barcelona. Tu deixa-te estar no apartamento de Sarrià e tenta nunca mais ires a Torena. Nem ver o meu filho.
– Vai receber uma cópia da acta notarial – informou o notário Carretero sem entusiasmo.
– Atiro-a ao lume.
– Pode fazê-lo à vontade. – Olhou-o nos olhos e, pela primeira vez durante a tarde toda, sorriu e abanou a cabeça –: Vai-o fazer sentir-se melhor. – Para Elisenda –: Por mim, estou pronto, senhora.
– Podem continuar – disse, amavelmente Elisenda –. Queres que te recorde onde é que iam?»
[Jaume Cabré, As Vozes do Rio Pamano; trad. Jorge Fallorca, Tinta-da-China, Setembro 2008]

Nem sempre a lápis (49)

Desde que activei o blogue, há dois meses e pouco, fui-me afastando do espírito anotador de citações; não por acaso, comecei o ano a braços com a então gravidade de não dispor de uma citação que lhe abrisse o mês. Quando nada me faz tropeçar durante a tradução ou a leitura em mãos, recorro às que fui coleccionando ao longo de ano meio em O Cheiro dos Livros, como abertura de cada edição da minha revista, da minha presença electrónica; chamemos-lhe editorial: às vezes, lá calha... E calha ocorrer-me o desinteresse conquistado pela work in progress – o meu livro póstumo, na intimidade apaparicada da solidão –, não anotando citações publicadas no blogue para não falsear a sequência cronológica e tão somente mensal da coisa destinada à impressão doméstica. Ganhará um, outro perderá, é a lei natural das coisas; a natureza intrínseca da permuta, enquanto comunicante. Terminada a minuciosa revisão de Hernández, o suficientemente para a entregar ao cuidado e à impiedade do revisor, arquivado o original fotocopiado e o da tradução, passei o fim-de-semana refugiado na toca a navegar até me doerem os olhos; fui pôr a carrinha a trabalhar, parada há duas semanas; ocupei o lugar vazio de Contos Reunidos com as folhas fotocopiadas de Dublinesca (Vila-Matas) para preparar a tradução. Comecei por fazer o trabalho da praxe: abrir a página de rosto, badanas, contracapa, dedicatória e citação se a houver, para no dia seguinte me entregar ao miolo. Mas foi mais forte a tentação de copiar o primeiro período, também começado em Maio, para corrigi-lo no espaço público do blogue, onde se encontra agendado após o ciclo dedicado ao encontro sobre a tradução de As Vozes do Rio Pamano (Jaume Cabré), integrado numa curiosa parceria entre a Pó dos Livros e Catalunya Apresenta. E foi deitado, a esmifrar a vertiginosa aproximação do final de Disse-me Um Adivinho, que guardei para mim esta comovente citação de Tiziano Terzani: «À noite – não sei se o sonhei ou se o imaginei de olhos abertos – vi-me deitar fora um dicionário com que trabalhara até então e pegar noutro que só tinha palavras positivas.»
À noite, sempre que as vagas de vento abanam o cortinado de tela – cadenciado como um cata-vento e não o alarme de um espanta espíritos –, enchem-me o quarto de mar.

Às vezes, lá calha...

«Eu estava destinado a encontrar-me só com uma parte das pessoas, e ainda por cima por pouco tempo e como se eu fosse um viajante distraído que tão-pouco soubesse para onde ia.»

28 de junho de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

... e não só

«Entre 1967 e 1993, Alberto de Lacerda leccionou em universidades americanas, primeiro em Austin (no Texas), depois em Nova Iorque, por último em Boston, onde esteve a partir de 1972. Durante esses vinte e seis anos, passava um semestre de cada lado do Atlântico. Um dia, já depois do 25 de Abril, o dirigente máximo do organismo (o Instituto de Alta Cultura) que em Portugal garantia a logística dos docentes portugueses no estrangeiro, descobriu que Alberto de Lacerda não tinha habilitação própria, ou seja, licenciatura. E não hesitou: mandou rescindir o contrato. As autoridades académicas americanas não queriam acreditar que o “seu” professor de Poética fosse posto de lado por tal motivo. E fizeram o óbvio: contrataram-no directamente.»

Souvenirs (13)

Eh, monami, quieres chocolá?
Até a andorinha deu à sola com a transacção, phónix!
Sentate, repose toi monami, tea mint?
O mauritano já embrulhou este com prata de chocolate...
É só artolas, é chocolate e deve ser da vaquinha, fiufiu...

À mão de ler (43)

«Gasull meteu a chave na fechadura e abriu. Entraram os três de repente no quarto. O senhor Santiago Vilabrú Cabestany (dos Vilabrú-Comelles e dos Cabestany Roure) estava a praticar um elaboradíssimo cunnilingus a uma mulher jovem e exuberante, que Elisenda reconheceu imediatamente como a puta assanhada da Recasens. Tita, a irmã de Pili, sim, a Milonga, como lhe chamavam.
O senhor Santiago, nu e com o sexo a postos, voltou-se assustado. Empalideceu quando viu a sua querida esposa, que havia já um par de meses ou mais que não visitava, tirar o véu do rosto e avançar em direcção a ele e Tita Recasens, que nesse momento fechava as pernas, ainda desorientada. Santiago Vilabrú tapou o sexo decrescente com as duas mãos, enquanto Tita saltava da cama com a intenção de desaparecer.
– Tu não te mexas – disse Elisenda, autoritária.
O casal furtivo estava tão surpreendido que não fazia a menor ideia como contra-atacar. Tita não se mexeu e Santiago manteve-se de pé, pálido, vermelho, verde, desejoso de estar noutro sítio.
– Agora – disse Elisenda – vais assinar umas quantas coisas.
– O que é que se passa? O que é que queres?
– O senhor Carretero – anunciou apontando para o homem gordo – está a lavrar a acta notarial da situação.
– Queres chantagear-me…
– Não sei. – Para Tita Recasens –: O meu marido vem aqui duas vezes por semana. Uma vez contigo e a outra com uma prostituta. – Com um sorriso amável –: Tem cuidado não te tenha pegado alguma doença, porque gosta de bacanais.
– És uma…
– Sim. Queres que te diga o que é que tu és?
– Um momento, que me vou vestir.
– Não. Tu ficas aqui e quieto.
– Nem pensar.
– Muito bem. – Elisenda para Tita Recasens –: A tua maquilhagem aguentou-se, rainha? – E num tom seco, para Gasull –: Os fotógrafos que entrem.»
[Jaume Cabré, As Vozes do Rio Pamano; trad. Jorge Fallorca, Tinta-da-China, Setembro 2008;
foto: Jaume Cabré com Yuri Jívago um dos protagonistas de As Vozes Do Rio Pamano]

Às vezes, lá calha...

«A prostituição - já o aprendi - é o primeiro sinal
da libertação e da recuperação económica!»

27 de junho de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Souvenirs (12)

Mudança de ramo,
mas o mesmo paladar...

À mão de ler (42)

«Madame Corine (Pilar Mengual, fora do trabalho) olhou para a mulher e os seus dois acompanhantes com os olhos inquietos. Não distinguiu o rosto da senhora porque levava um véu escuro que lhe cobria as feições.
– Estão conscientes de que se aceito, perderei um cliente?
– Estou-me nas tintas para os seus problemas laborais – disse, pálido, o advogado Gasull enquanto depositava um pouco de cinza no pires.
– Mas eu, não. – Levantando a voz –: Mas o senhor julga que…?
– Se se recusar – interrompeu-a Gasull com suavidade, sem a olhar nos olhos e dando uma fumaça –, só avisaremos a polícia, dizemos-lhe que El Nidito existe, apesar das proibições explícitas do Caudilho, e damos-lhe a direcção. Provavelmente, a primeira coisa que irão fazer será mandar-lhe um pelotão de falangistas indignados para que destruam tudo, e só depois chegará a polícia demasiado tarde e, quando aqui estiverem, contamos-lhes o se passou no Natal com aquela rapariga galega. – Tirou um fio de tabaco e sorriu para a madama –: É a nossa contraproposta.
A madama, pálida de raiva, levantou-se, dirigiu-se a um pequeno armário, abriu a porta com uma chave que tinha com ela e tirou outra chave. Brilhava uma etiqueta com o número quinze e o coração de Elisenda deu-lhe um baque.
– Segundo andar. – Gasull quase lha arrancou dos dedos –. E por amor de Deus, não façam barulho.
O homem gordo piscou o olho choroso de modo quase imperceptível à senhora do rosto velado e os três abandonaram a sala do Nidito rumo à escada que conduzia ao segundo andar.
– Estou-me a cagar para as senhoras que são mais putas do que as putas – resmungou a madama, enquanto os convidados abandonavam a sala. Pararam os três de repente.
– O que é que disse? – perguntou o homem gordo com um tom de ameaça bem forte.
– Também me vão proibir de barafustar? – A madama tinha levantado a voz, sem se intimidar.
– Deixem-na – ordenou a senhora Elisenda dirigindo-se para a escada. Os dois homens seguiram-na, depois de olharem para a madame Corine com o pior olhar que tinham no catálogo.»
[Jaume Cabré, As Vozes do Rio Pamano; trad. Jorge Fallorca, Tinta-da-China, Setembro 2008]

Às vezes, lá calha...

Arrumo os livros; desfaço o saco, penduro a roupa nas costas das cadeiras. Um roupeiro é muito tempo.

26 de junho de 2010

Breve interlúdio musical

Hoje, há disto...

... e amanhã, mais daquilo

Souvenirs (11)

Tirem-me daqui!!!
Tázaí a fazer, pá? Andava à pesca e o guarda fechou a porta... Vcs não me ouviam?, teve de ser ela a chamar-vos?
Ah, deve ser por causa deste casal marado que tem a mania de vir aqui tirar fotos,
armados em artistas

À mão de ler (41)


«Bikku, apesar da sua declarada necessidade da racionalidade ocidental, tornara-se um crente absoluto nos meandros do misticismo oriental. Pareceu-me que precisava de crer neles. Tal como Karma Chang Choub, também este sentira a necessidade de encontrar um mestre e fora procurá-lo muito longe. Queria-me parecer que ele se perdera um pouco nessas andanças e que agora lhe era impossível reencontrar o caminho para casa.»

[Tiziano Terzani, Disse-me Um Adivinho; trad. Margarida Periquito, Tinta-da-China, Novembro 2009]

Às vezes, lá calha...

«Se bem que continuasse a ler, pensava na inocência com que a estátua tinha de representar um personagem que ela mesma não compreenderia.»

25 de junho de 2010

Breve interlúdio musical

Começou ao meio-dia

Leitura integral, em voz alta, do romance

Porque a Net fornece um novo dia

Souvenirs (10)

Estou aflitinho de todo...

S’l’m aleikum!

Chiça, não via a hora deste sossego!

À mão de ler (40)

«(...) Foi no chat que comecei a trocar impressões com a minha BarCode, uma eventual psicóloga, de prováveis trinta anos, supostamente solteira e presumivelmente disponível para amar. A bem dizer, eu não procurava amor. A bem dizer, não procurava nada. Queria apenas experimentar uma nova aventura, um novo mundo, uma realidade diferente daquela em que vivia todos os dias, mas apercebi-me que não havia assim grande diferença entre os mundos ditos virtual e real. Eram ambos preenchidos por pessoas. Logo, eram ambos desinteressantes. Desagradava-me falar com alguém sem lhe ver os olhos, sem lhe sentir o odor dos sovacos. Sabia lá eu com quem estava a falar. Era como se estivesse a falar para uma parede com capacidade de resposta. Era como se as pessoas não fossem pessoas. E isso era agradável. Por outro lado, estimulava-me bastante e dava-me confiança falar com alguém que eu sabia exactamente nas mesmas condições que as minhas, ou seja, alguém que não me podia sentir o odor dos sovacos ou olhar-me olhos nos olhos. Sendo assim, não correria o risco que tantas vezes senti de não saber onde meter os olhos quando do outro lado estão olhos que nos olham como se nós não tivéssemos olhar. (...)»
[Nick a pregar no status]

Nem sempre a lápis (48)


Estimados leitores – futuramente perturbados com o que se espraia aos vossos olhos, se não virem gorado o esforço para chegarem ao fim desta linha –, recentemente chegada de Nova Iorque, onde se terá deslocado para colher formação que lhe permita entrevistar-me para uma conceituada revista internacional de arte (vírgula) solicita-me a minha amiga e ex-colega (eu sei que colegas são as putas, não te rales; distinguem-se cada vez menos, a crise…) do falecido Diário de Lisboa, publicação vespertina onde tínhamos um especial condão para nos pegarmos, em acertados e invariavelmente certeiros dias, prosseguindo o convívio estabelecido, saudosos anos antes, à mesa da entrada da Cervejaria da Trindade, no passadiço d’A Brasileira, abancados no 13 da rua do Norte; pede-me a Lourdinhas, na intimidade ortográfica do nome, que lhe bata uns dois mil narcisos à pala do Zé Povinho.
O Zé Povinho?, interrogou-se a minha incredulidade electrónica ao abrir o e-mail, prontamente socorrida por um busto de louça empoleirado atrás do balcão de uma tasca manhosa. Apreciei-lhe a espontaneidade do gesto, confesso. Não posso dizer que o pedido me estragou o dia, mas passei-o sentado a observar os exemplares do Museu de Antropologia atraídos até às esplanadas pela força do astro-rei, cada vez mais preocupado com a responsabilidade de satisfazer o pedido em tempo útil – três dias, frisou bem – a lavrar considerações sobre o Zé Povinho. Ah, polvinho à lagareiro, como tu marchavas aviado pelo labrego de suíças em barro modelado – ashes to ashes –, que terá satisfeito a sofreguidão criadora de Bordalo. Minha querida Lourdes Féria (posso chamar-te Lourdettes, só para te ver os olhos felinar um bocadinho?), lamento desapontar-te, esforcei-me, não consenti que nada – e tanta coisa havia – me desviasse a atenção, mas é como te digo: Zé Povinho, já não temos; deixou de se fabricar, possíveis normas comunitárias. Em contrapartida, talvez as tuas ausências no estrangeiro ainda não te tenham permitido confirmar, que, bafejados precisamente pelas normas comunitárias, passámos a dispor de uma vasta gama, colunável até à clonagem, do Zé Parvinho. Não sei se serve, mas foi tudo o que a realidade me ofereceu sobre o tema: o Zé Parvinho. Grato pela confiança generosamente depositada na minha modesta e, por ventura, discutível conclusão. Olha, depois não te esqueças de apresentar a livreira que te encomendou o desabafo.
[Lourdettes, pirei-me para Asilah e nunca mais me lembrei de dar a volta ao texto – ocultar o lado íntimo –, mas as saudades de viajar e de ti, ficam aqui firmemente repostas e o Zé Parvinho que se lixe. Até breve, ou… cioleiter.]

Às vezes, lá calha...

«Elas já me tinham dado uma ideia dos seus costumes e quando eu via que um capricho meu iria mais além do permitido, calava-me; então procurava realizá-lo às escondidas; e em último caso, conformava-me a imaginar que o cumpria; assim, as pessoas adultas iriam por um lado, eu por outro, e estaríamos todos em paz.»

24 de junho de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

«Esta gente enoja-me: o tipo que demoliu a casa do Garrett foi nomeado presidente do Conselho de Administração da Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva»

Souvenirs (9)

Cheguei agora, naquele ferry... Ora mostra lá a cena, ó djin desatinado;
mas lembra-te que venho do Gharb e estamos na Place de Faro
O quê?, 20 € por isto?! Já andaste a beber, sacana...
Olha, dou-te 10 dirhams (1€) e só porque ainda se consegue conversar contigo...
Vês, nem foi preciso recorrer ao tinhoso do interprete...
[reportagem de Nico]

À mão de ler (39)

[Sintonizado algures na bloga, o emissor que se identifique]

Nem sempre a lápis (47)

Um dia destes, se a BT me mandar parar e manifestar curiosidade em ver a espaçosa bagageira da carrinha, ainda me convidam a soprar no balão. A mim, que não molho o bico fez vinte e dois anos em Maio; aproveitei a solidariedade do dia e trespassei a adega aos trabalhadores, assim o afirmava, à maneira dele, Salazar: «Beber, é dar de comer a um milhão de portugueses»; ele há datas que nunca mais se esquecem. Encaldeirei-me talvez por ter ido a Lisboa levar as provas, revistas pelo revisor, de Um Pai de Filme – e não Um Pai Ausente, assim o decidiu à última da hora Antonio Skármeta e, em princípio, o autor é que sabe – e aproveitar a deslocação para assistir à apresentação do DVD & etc., de Cláudia Clemente, na fnac. Cada vez que ouço o Paulo da Costa Domingos dizer, triste e carinhoso, «o Vitor não deve aparecer, já está velhinho», envelheço de uma forma brutal, ainda privado do diminutivo. Calcorreei as ruas e avenidas com pisar flâneur recuperado no Sul e em Asilah, a ver a cidade ao telemóvel, secretária febril de sms, embandeirada, estridente, plasmada em plasmas, suja, desleixada, pretensiosa, linda de se morrer, a pé e de sandálias, invadida de mochilas e de ténis e de botas radicais e insuportáveis, dissecada e aberta no plano, no mapa, na radiografia, segura por mãos indecisas, e eu a ver, trocando o olhar pela curiosidade de quem me olhou, alguém sugeriremos a quem nos sugere; um dia destes, lembrava eu, a BT ainda me manda soprar no balão, apenas porque não há meio de trazer para casa uma chapa esmaltada, um reclame, dos Vinhos Abel Pereira da Fonseca, com um Sol que vi estampado nas bandeiras da Argentina; ocupação selvagem do marketing. Parece que havia futebol, mas nenhum pombo me cagou em cima enquanto bebi um café, caríssimo, na esplanada do Nicola, a fazer de conta que estava em Barcelona, talvez por causa das barras azuis das bandeiras; daltónico quanto convém. Como não gosto de televisão, não posso dizer mal da programação; obrigado Cossery, vieste mesmo a calhar. Vim para casa, onde me encontro; a noite está serena, as mariazinhas crescem no vaso, entre as pedras. É o meu Rif, em miniatura; iluminura.

Às vezes, lá calha...

«O vento Norte brandinho
faz andar o mar picado»
(Tradicional da ilha Terceira, Açores)

23 de junho de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Souvenirs (8)

Deixózir... Incrível, precisão de ferry!,
e uma horinha metida ao bolso, fiufiu...

À mão de ler (38)

«Raramente a humanidade se encontrou, como hoje, privada de figuras inspiradoras, de faróis orientadores. Onde está um grande filósofo, um grande pintor, um grande escritor, um grande escultor? Os poucos que nos vêm à mente são sobretudo fenómenos de publicidade e de marketing
[Tiziano Terzani, Disse-me Um Adivinho; trad. Margarida Periquito, Tinta-da-China, Novembro 2009;
foto: sugestões do manuel]

Nem sempre a lápis (46)

À medida que vou esgotando as anotações escritas na casa de ninguém, é curioso verificar como cheguei a Asilah num pulo e acabei por não fazer nada do que parecia ter planeado; não tenho jeito para programas. Não fosse uma foto desmentir-me, diria que me sentei no terraço em frente do quarto para fumar e pintar de cabeça e sentir a Torre de Menagem nas minhas costas e ouvir as rolas na açoteia ao lado e ver o movimento na rua paralela à muralha, até lá acima, até onde a vista alcança e o coração continua; só ele conhecia. Não abri um livro; Terzani serviu de altura para o portátil respirar enquanto descarregava fotos ou ouvia música; abri o bloco lá fora para desentorpecer a lapiseira e guardar bilhetes de autocarro para outras leituras; não parei em Tânger no regresso, fui da gare para o porto de petit-taxi; a Librairie des Colones estava fechada para obras e inventariação de fundos e em Sevilha, era domingo. Passei o tempo a passear pela Medina, sentado nas esplanadas dos café au kif, numas a ver e noutras a jantar; o dente recusou-se a deixar atirá-lo ao mar do terraço da antiga mesquita; comprei um chapéu de palha do Rif por um euro e meio, ao teu cuidado; uns tinhosos de uns putos foram por trás de mim e atiram-me a garrafa de água ao chão, e tu riste-te; deixei pendurado o velhote que foi a casa cortar kif «do dele», por uns míseros dois euros, sentado a fumar sebsis oferecidos pelo impaciente comunicativo Abdo, no passeio acima do mercado. Na última noite, deu-me a fraqueza por volta da uma da manhã e subi a rua com mais de metade das esplanadas cheias de filósofos; entrei num local aberto e tirei uma mesa de cima de outras para beber um café com leite, a ver um combate de boxe parecido com um concerto, com o que deve ser um rock in rio; agradeci com um sorriso um sebsi discreto que já não aceitei, oferecido por uns putos que me fizeram lembrar Terzani: «Adoro estes personagens. Um bocado exibicionistas, um bocado velhacos e gabarolas, mas ao fim e ao cabo também calorosos.» Desta vez trouxe comigo Bartleby & Companhia; aproxima-se a vez de copiar Dublinesca, de voltar a escrever a meias com Vila-Matas.