31 de outubro de 2013
30 de outubro de 2013
Nem sempre a lápis (447)
Memória descritiva
Cal
Não me cega.
Quando a calma esturrica os campos do Baixo, procuro-lhe a frescura do tacto.
O repouso do olhar.
Em criança, aprendi a vê-la ferver na água, e a ouvir reprimendas por deixar que me sujasse a roupa.
Apanhávamos pequenos pedaços de cal nas obras, e aprendíamos a distinguir a viva da cozida.
A luz da cal atraía-me como um insecto.
O sabor também.
Disfarçadamente, passava a língua na parede das casas de férias, em Salgueirais.
Depois seguiu-se a festa alentejana, que ainda hoje me deixa aturdido.
Os meus olhos nunca tinham visto tanto volume numa parede branca, até onde o ar se separa da terra.
Tanta brancura, tanta cal, purificam o olhar e a alma.
Em Évoramonte, um ácido mostrou-me a cal a latejar junto à tijoleira do chão.
Eu sabia que transferia os movimentos da minha respiração para a cal indefesa da parede.
Cheguei mesmo a ouvir a cal caída no chão, bater como uma vaga.
O marulhar de um mar interior.
Depois disso, passei a achar repousante que se cubram os cadáveres com cal.
Papiro do dia (407)
«O primeiro amante era o sol, andando em volta do corpo deitado, lambendo-o com a sua língua de lume, batendo-lhe ao de leve com a sua cauda, farejando-o com o seu focinho de luz – via-se isso através das pálpebras, sem abrir os olhos, enquanto o corpo amolecia e se sentia mais forte o cheiro do vento – a agora o sol começava a apoderar-se de todo o corpo, avançava sobe ele com pés cautelosos, como um animal bravio, e a gente entregava-se, rendida, e o sol entrava pela pele, pelos ouvidos, pelas narinas, pela boca, e havia finalmente o momento em que se abandonava de todo a resistência e se afastavam também as pernas e se recebia o sol no meio do corpo – o sol, sim, o sol era o primeiro amante.
Ou o mar, o mar era o primeiro amante. Quando se ficava deitada na areia, quieta, quase sem respirar, tensa de expectativa, e ele subia desde longe, sem ruído, e rebentava de súbito sobre nós, inundando-nos com a sua baba de espuma.»
28 de outubro de 2013
27 de outubro de 2013
Nem sempre a lápis (446)
Memória descritiva
Café
Era um espaço construído de olhares e ruídos.
Antigo.
Delimitado pelo casulo da menina da tabacaria, com postigo para a rua, e o guarda-vento que lhe defendia a privacidade de gueto masculino.
As mesas dispunham-se ao longo das paredes.
Sublinhadas por fotografias desactualizadas, em conflito com a modernidade dos autocolantes.
Mesas privadas, e de vítima.
Infinitamente repetidas nos espelhos, que as devolviam aos interessados.
Tinha residentes:
o cauteleiro, que apregoava a felicidade avulsa, e um engraxador, de fato de macaco e sapatos cansados de mostrarem o brilho disponível dos seus gestos.
Sempre que podia, fazia-se ouvir com uma tira de pano de bilhar.
Afirmava-se, interrompendo as conversas dos senhores:
o médico, o advogado, o gerente do banco, o rico e o informador.
Também havia um artista.
Cafés sombrios e delatores, da Beira.
Ou catedrais de lavradores, como os de Évora, em dia de são porco.
Cresci neles, com uma onça de tabaco e um caderno, autorizado por um café de saco.
Nem todos foram pervertidos em bancos, ou travestidos em lugares de culto.
Mas entre as saudades do cheiro e do espaço, pondero a maldade e a arrogância da frequência.
Papiro do dia (406)
«As aulas começaram em Setembro. De repente estava-se na escola e a professora dizia: As vias do pensamento. Querendo dizer: a rádio e as comunicações telegráficas. Mas vias do pensamento era mais belo e de certeza mais exacto. Porque nada era tão veloz como o pensamento, nada corria tão longe, no mesmo instante, sobre os mares, até ao outro lado do mundo.
A professora é gorda e sem idade, e tem um ar doce de boneca de pano antiquada. O peito muito grande começa quase logo abaixo da cabeça, a pele do pescoço é caída e flácida. Repete sempre as mesmas coisas e usa o cabelo apanhado em volta da nuca, numa espécie de rolo grosso, preso de ambos os lados por travessas. De vez em quando espeta melhor os ganchos que seguram o rolo, e volta-lhes a ponta para dentro. Chama-se ganchos invisíveis, mas na verdade vêem-se. Caem no chão às vezes, ou em volta da cadeira.
Em geral ela não se senta durante muito tempo, passeia entre as cadeiras pela sala e em algumas ocasiões tem um ar quase aflito.
Eu sou, tu és, nós somos, diz Dona Eulália, e nós repetimos em coro, balançando nas carteiras, e escrevemos um F muito inclinado de Fevereiro e de Fanisse, um J de Jussa, um M de Margarida e de Miranda, um Y de Yasmin e um G de Gita.
Escrever é difícil, porque os dedos se ajeitam mal a pegar no lápis, ficam logo sujos e mancham o papel, o caderno dobra-se nos cantos e tem de se molhar o indicador na boca para voltar as folhas, e a borracha perde-se logo e tem de apagar-se com as mãos.
Dona Eulália senta-se outra vez na cadeira e abana-se com um leque chinês, de papel pintado. Ao leque ela chama: ventarola. E à tabuada também chama casa: A casa dos quatro, a casa dos cinco.»
[Teolinda Gersão, A árvore das palavras; Sextante, 6.ª ed., Maio 2008;
vezes um]
vezes um]
26 de outubro de 2013
25 de outubro de 2013
Porque a Net fornece um novo dia
«(...) e estamos a despir-nos, e de novo a fazer amor, quatro, seis, oito em cima do tapete - o terrível milagre de uma alucinação de pernas, braços, seios, mãos, sexos, coxas, cabeças, vestidos, camisas. (pág. 71)
«Ele disse que era uma mancha de esperma, esperma ainda vivo.
Esperma?
A mancha azul, ao meio do quadro, no chão, entre aqueles corpos grandes das mulheres.
Que era esperma?
Disse que era esperma ainda vivo.
Disse que ele próprio tinha esperma nas mãos.
Havia esperma por toda a parte.
Terrível.
Sim, terrível.
Um dia agarrou-me na cabeça, passou os dedos pela minha boca e disse: tens esperma na boca.
Já não sabia que fazer, pois encontrava esperma entre as páginas dos livros, nos bolsos, nos cigarros.
Uma vez atirou fora os cigarros e gritou: porque está aqui esperma, nos cigarros?
Não se pode fumar.
E depois como foi?
Parece que o esperma invadia tudo. (pág. 111)
(...) e encostou o rosto ao sexo dele, e sentia-se só no meio das trevas.
Estava cega.
Beijou-lhe o sexo devagar, e a boca tremia (...)
E apertou entre os lábios o pénis, devorou-o lentamente, enchendo a boca com aquela coisa quente e viva (...)
(...) e disse-lhe ao ouvido puta, chama-me puta.
E ele disse puta.
E ela voltou-se e pôs-se de joelhos na cama, dobrada, e disse mete no cu.
E, se fechavam ou abriam os olhos era a treva.
Para ambos e para sempre.
Amavam o terror, um no outro, cada um o seu terror no outro.
Talvez pudessem morrer. (pág. 120)
(...) Da raíz dos testículos subia já o florescimento maldito (...) (pág. 162)
(...) Haviam-me caído as sobrancelhas e os pêlos do púbis (...) (pág. 163)
(...) mão atentamente aberta sobre uma vagina viva como uma boca nas virilhas, na flor do ânus, a flor do ânus (...) (pág. 186)
Nota: etc, não encontrámos.
Às vezes, lá calha...
«Respiro devagar, estou unida ao mundo pela boca. O hálito é um sopro, o sopro do vento. Partilho-o com o vasto horizonte em volta, faço parte dele como ele de mim.»
(Teolinda Gersão)
Nem sempre a lápis (445)
Memória descritiva
Cachimbo
Comprei-o à socapa na Feira de S. Mateus, com o dinheiro que o meu avô me tinha dado para os carroceis.
Teria talvez uns 13 anos, era outra vez Setembro, e íamos às botas.
Durante anos a fio, o meu pai não encontrou melhor pretexto para nos refastelarmos com umas fiadas de enguias de escabeche.
Das de Aveiro.
Das genuínas.
Mumificadas numa barriquinha de madeira.
Sentia-lhes o cheiro a quilómetros, ou até meses, entre o travo acidulado do vinagre e o calor da folha de louro.
Entretanto, a acolhedora barrica cedeu lugar a um invólucro asséptico - suponho que ecologicamente correcto e europeu - com a memória das aduelas de madeira serigrafada.
Em contrapartida, a minha mãe sentia-se no direito de lambuzar os lábios e os dedos de açúcar e canela, junto às crepitantes frigideiras das farturas.
Durante anos assisti à irremediável comparação dos preços, entre dentadas de farturas, e a destreza com que deixávamos a espinha inteira no prato.
Enquanto isso, os nossos pés mediam forças com a forma das botas, que só levavam a melhor até chegarmos ao pátio.
E até ao primeiro dia de escola.
Hoje tenho mais de uma centena de cachimbos, entre sarrafos baratos e dispendiosos objectos de colecção.
Mas a melhor cachimbada, ainda é a que me recorda o sabor daquele sarrafinho comprado em Viseu, atestado de mata-ratos.
E já me apanhei a ir lavar a gordura dos dedos, ou a sacudir o açúcar dos lábios.
Papiro do dia (405)
«A cidade cerca-nos, com os seus muitos braços, os seus muitos círculos, nenhum dos quais nos exclui. Ninguém nos pode tirar essa sensação de pertencer, de estar contido. Somos parte de um todo, uma cidade viva. Algures os barcos passam, entram no porto ou partem. Na praia as crianças brincam, os fatos de banho serão manchas claras ao sol. Haverá barcos de recreio mais ao longe e saindo a barra paquetes, vapores transatlânticos. Abarcar-se-á tudo isso de um ponto alto, de um mirante, ou mesmo a partir de uma pérgola florida.
Nada vejo, aqui sentada diante da mesa redonda do café, e no entanto essas coisas longínquas, como os barcos passando, o movimento dos barcos, fazem parte deste minuto, em que tudo está contido. Rodo a colher no gelado, levo-a devagar à boca. Creme vermelho, de groselha, derretendo. Sabor de Verão. Mais alto, contra o céu, balançarão as acácias. O que penso não tem nitidez, é talvez só uma precisão inexacta. A vida cabe numa colher de gelado, respira-se, devora-se com a boca.
Tudo acontece agora muito devagar, os barcos têm todo o tempo para partir ou para entrar no porto, as crianças riem, de puro prazer de brincar nas ondas. Devagar, devagar. O tempo é um hálito, um sopro.»
23 de outubro de 2013
Às vezes, lá calha...
«Não se precisava de olhos para ver, a tal ponto se conhecia e possuía tudo, e também quase não era necessário esperar nem desejar, as coisas aconteciam por si mesmas, vinham ao encontro das pessoas.»
(Teolinda Gersão)
Nem sempre a lápis (444)
Memória descritiva
Bilha
Sem querer, assisti a um ritual da água.
Estava num café em Barrancos, e num nicho na parede, junto ao balcão, repousavam duas bilhas de barro.
Aparentemente inúteis.
Velhas, encardidas pela sofreguidão das mãos sequiosas que as levaram à boca.
A minha ignorância urbana pretendia-as esquecidas, não lhes concedendo sequer as veleidades do artesanato.
Que turismo se desloca a um café de Barrancos para ver duas bilhas abandonadas num nicho?
À falta de espargos com ovos, saboreava o catalão assado, e foi quando me dei conta que os fregueses iam ao pátio encher as bilhas.
Ponderavam a frescura de cada uma, e levantavam-nas acima da cabeça.
Bebiam como os vizinhos espanhóis, deixando que a água lhes caísse directamente na boca.
Sem que os lábios tocassem o gargalo.
Mal os ouvia, e a discrição com que se saciavam, não me concedia a oportunidade de ouvir barranquenho.
Creio que é por aqui que há tocadores de pedras.
Escolhem-nas entre os seixos do leito calcinado do rio, e interpretam-nas à maneira que a sede os ensinou.
Como só é possível entre povos que conhecem a graça da água.
Papiro do dia (404)
«Ao quintal chegava-se através da porta estreita da cozinha. E se é verdade que a cozinha era escura, nem por isso se deixavam de ver os objectos, as panelas de alumínio e as gordas caçarolas, os púcaros e as tigelas de esmalte, o fogão esbranquiçado, de bocas de latão, a grande mesa com tampo de pedra onde havia sempre alguma louça esquecida. Mas sobre isso passava-se de largo, sem realmente olhar, corria-se em direcção ao quintal, como se se fosse sugado pela luz, cambaleava-se, transpondo a porta, porque se ficava cego por instantes, apenas o cheiro e o calor nos guiavam, nos primeiros passos – o cheiro a terra, a erva, a fruta demasiado madura – chegando até nós no vento morno, como um bafo de animal vivo.
As coisas, no quintal, dançavam: as folhas largas de um pé de bananeira, as folhas e as flores do hibisco, os ramos ainda tenros do jacarandá, as folhas de erva nascediça, que crescia como capim e contra a qual, em dada altura, se desistia sempre de lutar.
Era quando alguém se deitava sobre a erva que via como eram finas as folhas do jacarandá varrendo o céu e como o sol era um olho azul e doirado espreitando, cegando todos os outros, para que só ele pudesse olhar. O sol, sobre o quintal e a casa, era o único olhar não cego.»
[Teolinda Gersão, A árvore das palavras; Sextante, 6.ª ed., Maio 2008;
21 de outubro de 2013
20 de outubro de 2013
Dor de corno
19 de outubro de 2013
Nem sempre a lápis (443)
Memória descritiva
Barco
A serração era um oceano de carcódoas.
Para ser verdade, nem sequer lhe faltavam Adamastores, e tormentas de mães zeladoras de calções.
Atravessava-se a estrada, de navalhinha em riste, e sentávamo-nos no chão, encostados aos troncos.
Grudados pela resina, permanecíamos horas a fio a desbastar carcódoas, como mestres de laboriosos estaleiros navais.
A maior parte das vezes em silêncio, ouvindo-se apenas a lâmina a desbravar a casca da circum-navegação infantil.
De certeza que também se ouviam cigarras.
O canto das cigarras fica sempre bem nestas coisas.
Era Verão, e elas deveriam estar empoleiradas nos postes telefónicos, antecipando comunicações.
Lançando o alerta de que não tardaria a fazermo-nos ao mar.
Também os fazíamos de papel.
Mais no Inverno, para velejar nas selhas do banho semanal.
Ou lançar ao sabor dos imensos Nilos das valetas animadas pela chuva.
Que me recorde, não havia naufrágios, pirataria, nem azáfama piscatória.
Os nossos barcos só cumpriam viagens.
Papiro do dia (403)
«Tudo se passava ali, no interior; não havia nada no exterior, nada que viesse e espantasse. Era uma fuga contínua, o retiro dos órgãos e dos ossos, um apagamento progressivo, manhoso. Joseph mantinha-se de pé, debruçado sobre o cadeirão da velha, e dos olhos fechados, dos lábios secos e apertados, agitados debilmente num gesto de sucção, de todo aquele corpo abandonado no seu vestido-avental, recebia na própria face como que pancadas, profundas, cruéis. O rosto largo, cheio de cartilagens e carne, com a pele lívida, fechava-se no centro, à maneira duma anémona-do-mar. As mãos, as pernas, o busto curvado, tudo parecia aspirado por uma boca feroz, por uma ferida em forma de estrela cujos lábios enrugados se apertavam um contra o outro, com terríveis esforços de cicatrização. Só havia mesmo esta boca, ou este ânus, que se retraía, se dobrava, velha pele de serpente, sufocava-se sobre ela própria, devorava-se sem repugnância. Era preciso fazer como ela, sem dúvida; viver no interior, mergulhar a cabeça no interior do corpo, alimentar-se da própria carne, consumir-se totalmente, criminosamente, até ao esquecimento. Se o tempo se despejasse das suas drogas, distinguia-se a extensão escura, uma verdadeira sala luzindo por buracos, em que as palavras e as dores não têm onde se agarrar, onde tudo é nu, engolido, sufocado. Ouvia-se, às vezes, no fundo desta estufa, o passo de vidro da eternidade, música que lambe o sono. Assim. Lascivamente. Indolentemente. Para si.»
15 de outubro de 2013
Às vezes, lá calha...
«Há uma corrente de ar frio que conduz ao minério, e os objectos tremem pelo desejo louco de entrarem vivos na pedra.»
(J.-M. G. Le Clézio)
Nem sempre a lápis (442)
Memória descritiva
Azeite
Uma vez, deparou-se-me uma rua que dava pelo nome de Goutte d’Or.
Nunca procurei decifrar o ofício escondido pela metáfora, e duvido que o azeite, o mel ou o ouro, ainda gotejem nas ruas de Paris.
A Bretanha ficava longe, no sonho, e eu precisaria de muitos anos, e outra tanta vida, para aceitar as coisas como são.
Sem dar por ela, a rua perseguia-me.
Desse as voltas que desse, a Goutte d’Or esperava-me como uma nódoa.
A marca de um sinal.
Passaram-se anos, e ao temperar a comida, ainda hoje sou assaltado pela magia desse gesto que me liga àquele fio de ouro.
Quando me predisponho à vagabundice, à preguiça, deixo que esse fio me ligue a uma salada em Asilah.
Ou às tibornas da Beira e aos potes do Algoz.
E consinto que a nódoa me marque como um sinal de fogo oculto.
Papiro do dia (402)
«Eis o que é preciso fazer: partir para o campo, como um pintor de domingo, com uma grande folha de papel e um lápis. Escolher um sítio deserto, num vale encaixado entre as montanhas, sentar-se num rochedo e olhar durante muito tempo à sua volta. E depois, quando se olhou bem, pegar na folha de papel e desenhar com palavras o que se viu. Compreendem, é preciso inscrever a paisagem, peça por peça, sem esquecer nada; longamente, metodicamente, é preciso fazer a carta deste bocado de mundo, indicar o mínimo calhau, o mínimo tufo de erva, fazer o esquema das visões e dos odores, escrever tudo, desenhar tudo. Depois de se acabar, e vir a noite, pode-se regressar a casa. Na folha, ali, naquele rectângulo de papel de 21 x 27, garatujou-se uma parcela da terra. Fez-se o retrato de alguns quilómetros de luz, de ruídos e cheiros. Achataram-se como num postal, muito facilmente. E agora, pertencem-vos, esses quilómetros já não apodrecerão no esquecimento; ficarão martelados com pequenos sinais, na vossa cabeça até à eternidade. Ou, pelo menos, o tempo que viverem.»
13 de outubro de 2013
12 de outubro de 2013
Às vezes, lá calha...
«Vivemos num mundo muito frágil. É preciso prestar atenção onde pousamos o olhar, é preciso desconfiarmos de tudo quanto ouvimos, de tudo o que nos toca.»
(J.-M. G. Le Clézio)
Nem sempre a lápis (441)
Memória descritiva
Algarve
Há uma curva à entrada de Lagos, que me fascina.
Hoje é quase só uma curva, com os paralelepípedos soterrados pelo asfalto, como acabará por suceder às pequenas casas que a ladeiam.
Dentro em breve, as laranjeiras e as buganvílias juntar-se-ão ao património arqueológico.
E duvido que a curva subsista às urgências rectilíneas do trânsito.
Eu descobria o Algarve, e a rusticidade e aspereza da minha pronúncia soletrava a doçura dos nomes revelados pelos faróis:
Aljezur, Bensafrim.
E adivinhava figos e mel, cúmplices com a alfarroba e as estevas.
Sempre que posso - e a ansiedade não me condiciona o prazer da ida, ou a inevitabilidade do regresso - percorro a mesma estrada litoral, assistindo à agonia das placas de trânsito de azulejo, onde ainda é possível ler Odesseixe e distâncias entretanto desactualizadas pelo progresso.
Fiel, a minha curva à entrada de Lagos aguarda-me para me franquear a vastidão do horizonte.
Os mistérios do Sul.
Seja qual for a hora, do dia ou da noite, ou a época do ano, a curva prevalece como fiel guardiã.
Um livro que se abre à ida, ou fecha no regresso.
Papiro do dia (401)
«Se querem realmente saber, eu preferia nunca ter nascido. A vida, acho-a muito fatigante. Claro, a coisa agora está feita e já nada posso alterar. Mas haverá sempre no fundo de mim mesmo esse remorso, que não chegarei a expulsar completamente e há-de estragar tudo. Agora trata-se de envelhecer depressa, de devorar os anos o mais rápido possível, sem olhar nem para a esquerda nem para a direita. É preciso suportar todas as mordidelas da existência, procurando não sofrer demasiado. A vida está cheia de loucuras. Não passam de pequenas loucuras quotidianas, mas são terríveis se repararmos bem nelas.
Não acredito muito nos grandes sentimentos. Em vez deles, vejo um exército de insectos ou de formigas que mordem em todos os sentidos. Por vezes, estas minúsculas flechas negras reúnem-se, e a razão dos homens perde o equilíbrio. Durante alguns minutos, algumas horas, é o reino do caos, da aventura. A febre, a dor, a fadiga, o sono que chega, são paixões fortes e tão desesperantes como o amor, a tortura, o ódio ou a morte. Outras vezes, o espírito assaltado pelas sensações sucumbe numa espécie de êxtase material. A imagem da verdade é mais ofuscante que um protector.»
[J.-M. G. Le Clézio, A febre; trad. Liberto Cruz, Ulisseia, Novembro 2008]
10 de outubro de 2013
O Nobel e as Antas
À revelia – ou melhor – manifestando um profundo desprezo pela recente boutade do crítico literário que mais anima a bloga, a desavergonhada Academia sueca atribuiu o Nobel da Literatura a Alice Munro, escritora canadiana que já anunciou ter batido com a porta da mesma. Da literatura, entendamo-nos. A notícia colheu-me, sem surpresa, ao balcão do livreiro que a semana passada me conseguiu Amada Vida. Curiosamente – ou melhor – como vai sendo hábito, a escritora laureada passa ao lado e ao largo da pretensa secreta shortlist especulada por Eduardo Pitta, onde o delírio colonialista o leva a especificar que é integrada pelo israelita Amos Oz e o judeu-húngaro Imre Kertész.
Faz-me lembrar os dois fdp (aka filhos do Porto) que se encontram e um pergunta ao outro se vai às Antas. Responde que não, que vai ver «Os Colhões de Navarone». Ao que o outro emenda: «Ó pá, não são colhões, são canhões». «Ó caralho, então bamos às Antas». Pim!, acrescento eu.
Por motivos que não vêm agora à baila, entrei na única livraria de Portimão firmemente determinado a interromper Amada Vida, precisamente no conto intitulado “Orgulho” para, com justificado sentimento, me entregar ao prazer da escrita de Teolinda Gersão. Deixado o mais recente título, As águas livres, ao cuidado de uma leitora n’A cidade de Ulisses, encontrava-me na disposição de apanhar qualquer título da minha vizinha «da biblioteca do Mondego», embora não nos tenhamos cruzado na Fortaleza de Armação de Pêra – tudo o leva a crer, seja a imaginação tão livre como as águas.
Havia A árvore das palavras, no formato desejado (20 x 14) e não a aberrante paginação de As águas livres que Teolinda Gersão não merece. Abram o livro e vejam; ler, só a magia da escrita nos prende. Tivesse eu o livro à mão e ilustrava a minha indignação com uma das cento e tal páginas. E atenção para com a floresta também não colhe: arrisco que o tamanho e tipo de letra são muito próximos de O silêncio e deste «retrato de Lourenço Marques, antes da guerra colonial e já depois do seu começo.» – Lê-se na contracapa: – «É um livro sobre o fascínio de África e da cultura africana (…) Um livro mágico sobre a infância, à qual não se pode voltar, a não ser através do milagre da literatura.»
Alice Munro ganhou o Nobel da Literatura 2013, muito bem; e eu esta noite começo a ler A árvore das palavras, enquanto aguardo os títulos que não tenho de Teolinda Gersão e a fazer figas para os conseguir no formato que a respeite.
Não sei se me fiz entender, ou se terei de ir às Antas.
9 de outubro de 2013
Às vezes, lá calha...
«Não imagino sequer o que seria sentir uma carícia terna – a minha pele está ressequida como um deserto à falta de ser tocada.»
(May Sarton)
Nem sempre a lápis (400)
Longe do mundo
Os espelhos já não me devolvem a imagem. O fogo extinguiu-se nas ruínas
e deambulo entre o despertar e o sono. Retoco a insanidade. Adio-me.
Um dia as fotografias ficarão vazias
e as dedicatórias em branco. É tudo quanto me ocupa.
Quando a idade me devolve a luz e o ar, as dedicatórias chocalham no horizonte.
Há medida que os anos passam, sinto as árvores, o ar, cada vez mais inúteis. E as palavras também.
Já tive melhores ilusões para envelhecer.
[Longe do mundo; frenesi 2004]
Os espelhos já não me devolvem a imagem. O fogo extinguiu-se nas ruínas
e deambulo entre o despertar e o sono. Retoco a insanidade. Adio-me.
Um dia as fotografias ficarão vazias
e as dedicatórias em branco. É tudo quanto me ocupa.
Quando a idade me devolve a luz e o ar, as dedicatórias chocalham no horizonte.
Há medida que os anos passam, sinto as árvores, o ar, cada vez mais inúteis. E as palavras também.
Já tive melhores ilusões para envelhecer.
[Longe do mundo; frenesi 2004]
Papiro do dia (440)
«Ultimamente tenho levado o meu livro para o quarto do Standish e sento-me com ele. Não sei bem se ele está inconsciente a maior parte do tempo, ou apenas demasiado deprimido para comunicar. Está deitado com as mãos crispadas sobre a colcha, uma maneira de se resguardar a si próprio, acho eu. Quando acorda ou se agita, geme. Por duas vezes imaginei que ele estava de facto a morrer. Uma vez corri à cozinha e pedi à Harriet que viesse ver. Ela ajeitou-lhe s almofada, viu-lhe o pulso, e depois pediu-me que fosse à cozinha para termos uma “conversinha”. “É um caso terminal”, explicou-me, “cancro”, e não há nada que o médico possa fazer.” Esta, explicou-me, é a razão por que ela não insistira em que ele viesse. Foi muito terra-a-terra acerca de tudo isto.
Quando uma criança nasce, morreria se ninguém lhe batesse no rabo e provocasse o choro que a ajudará a receber o ar frio e cruel nos pulmões. Que rito de passagem existe para os que morrem? Tenho de perguntar isto ao Richard Thornhill...
Especialmente quando não existe fé em Deus, que podemos esperar que lá haja para limpar o suor frio de uma testa, ou pegar numa mão (as do Standish estão geladas) e tentar aquecê-la?»
[May Sarton, Prepara-te para a morte e segue-me; trad. Bárbara Smith, Cotovia, Março 1997]
8 de outubro de 2013
7 de outubro de 2013
Nem sempre a lápis (399)
Longe do mundo
O ar risca a luz como um buril antigo. E assisto impávido à venenosa sequência dos meus dias.
Sem esperança, nem conformismo.
Optei pela demissão. É tarde e apercebo-me que não há citrinos para lá do muro azul do mar.
Os livros usurparam as tábuas. Onde antes palpitavam veios, alinham-se agora letras horizontais. Letárgicas.
A cerâmica deixou as letras órfãs, e os buris apodrecem nas jazidas cuneiformes.
Quando as lombadas empenam o horizonte, recortadas pelo analfabetismo,
os poetas emendam a voz. A poesia sobra.
Papiro do dia (439)
«A notícia de um visitante iminente desconcertou-me – perdi o fio àquilo em que queria ponderar esta manhã. Ah, pois, o que acontece às pessoas que têm completo poder sobre os outros. Este seria um lugar muito melhor e mais afável se alguém preocupado connosco se desse ao trabalho de olhar em redor, de sentir as coisas, de observar, e de ver as nossas vigilantes com um olhar descomprometido. Mas iniciativas deste tipo são coisa que parece não existir – há uma timidez fundamental no que diz respeito a interferir. Afinal de contas, as filhas e os filhos dos pobre velhos que aqui estão podem pensar, não é da nossa conta, e o pai está a perder o juízo, como podemos acreditar no que diz? É-lhes dito, sem dúvida, pelas assistentes sociais e talvez mesmo pelos médicos, embora estes raramente parem por aqui, que os velhos se tornam “mentais”, palavra que sempre me divertiu por parecer sugerir o oposto do que significa. Dizem-lhes, julgo eu, que os velhos ficam naturalmente deprimidos, e que essa depressão “vem de dentro”, e que a forma de a tratar é com drogas, não com imaginação ou amabilidade. E a maior parte deles são gente simples, terrificada pela atmosfera própria de um hospital ou de um “lar”, pouco à-vontade, incapazes de serem eles próprios. O comportamento de Harriet com eles é conspiratório. Falam em sussurros uns com os outros, e em tons de falsa jovialidade com os pacientes, e o filho ou a filha parte sentindo que fez tudo o que podia ao vir de visita. O resto é com a “instituição”. Não são gente que alguma vez tenha tido a coragem de despoletar uma guerra. A polícia, os patrões que têm, no caso de serem operários, a “empresa”, o “governo”, são tudo poderes aterrorizadores que não podem controlar nem sequer compreender.»
[May Sarton, Prepara-te para a morte e segue-me; trad. Bárbara Smith, Cotovia, Março 1997;
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3 de outubro de 2013
Às vezes, lá calha...
«Suponho que seja possessivo não gostar de ler um jornal que passou por várias mãos, que está um bocadinho amarrotado.»
(May Sarton)
Nem sempre a lápis (398)
Longe do mundo
Vi as cordas entrelaçadas nas vitrinas. As artes da morte e da viagem. Os labirintos.
Era tarde, e o cheiro áspero do sisal não detinha o trânsito. Não apaziguava os rostos.
Já ninguém escreve nas esplanadas,
ou precisa de bússolas para atravessar os dias.
Percorro a praia dividido entre a memória e a ausência. Todos os sentidos me contrariam as pegadas na areia molhada.
As bibliotecas.
Sento-me de frente para o mar, com um saco de laranjas ao lado. A loucura é uma arte menor.
Papiro do dia (438)
«Hoje passei algum tempo a ler sobre dois acidentes de automóvel; um deles resultou em morte. Para além deste artigo, vinha uma entrevista com um oficial que regressava depois de cinco anos numa prisão no Vietname do Norte. Dizia ter ficado horrorizado no seu regresso ao ver como nós, Americanos, nos enraivecemos à menor frustração. Segundo ele, um homem entra no carro e se não o consegue ligar à primeira ou à segunda tentativa, fica furiosamente zangado. As pessoas que ficam paradas no trânsito, por pouco tempo que seja, perdem a cabeça. Poderá ser verdade estarem todos sempre tão próximos da fúria que o equivalente a tropeçar num dedo do pé provoca um ataque repentino de mau humor? E como podemos nós lidar com este estado de desequilíbrio? Porque é disso que se trata. Quase todos os dias lemos que um maluco qualquer agarra numa espingarda e dispara sobre várias pessoas, simplesmente para aliviar uma pressão intolerável. Mas o que é que causou a pressão? E por que é que só se alivia com uma violência assassina? Perguntas, perguntas a que eu seguramente nunca poderei responder...»
[May Sarton, Prepara-te para a morte e segue-me; trad. Bárbara Smith, Cotovia, Março 1997]
1 de outubro de 2013
Às vezes, lá calha...
«De certa maneira, este caminho para dentro e de retorno ao passado é como um mapa, o mapa do meu mundo. Se o puder desenhar adequadamente saberei onde estou.»
(May Sarton)
Nem sempre a lápis (397)
Longe do mundo
Vi a terra parada como uma noite de luar. Sem o perfume das raparigas nas eiras,
os leitos de feno e camomila, acoitados na penumbra cúmplice da música.
Depois, julgo que ouço um cavalo
ou sonho, mas o granito já não me defende a memória.
A cal ferve sob os azulejos. A roupa dardeja nas varandas, empresta humidade ao vento, e o ferro forjado peneira o entardecer. Aquece as sombras.
As gaivotas refugiam-se nos telhados,
o rio esqueceu-se da foz. Adiou a viagem.
Papiro do dia (437)
Passado um bocado adormeci. A chuva tamborilava no telhado. Senti que durante algum tempo teria de ser absolutamente passiva, flutuar de momento a momento e de hora a hora, deixando de fora sentimentos e pensamentos. Eram ambos demasiado perigosos. E eu temia o choro. Ultimamente, desde o hospital, tenho chorado muito, o que pode ser uma razão para o John achar que eu tinha de partir. As lágrimas são uma ofensa e fazem com que os outros, mais do que sofrer, se sintam atacados e irritados. Quando o mundo interior transborda desta maneira, há qualquer coisa de muito pessoal que se mostra onde não deve, ou onde não deve mostrar-se pelo menos quando se tem a minha idade. Só as crianças têm direito às lágrimas, portanto, de certa maneira, o facto de me terem mandado para aqui é um castigo. Caramba, agora não posso pensar assim. É perigoso tudo o que não é passivo. Aprendo a aceitar.»
[May Sarton, Prepara-te para a morte e segue-me; trad. Bárbara Smith, Cotovia, Março 1997]
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