30 de janeiro de 2014

Breve (comovente) interlúdio musical


Porque a Saúde não é uma opção política


Às vezes, lá calha...

«As cigarras cantavam suavemente nas copas das árvores; até mesmo os pardais eram menos estridentes que os da aldeia. Porque seria que todas as pessoas e animais pareciam muito mais mansos no exército?»
(Ha Jin)

Nem sempre a lápis (482)

Memória descritiva
Rua
A minha rua era uma estrada, e nacional.
Delimitada por uma curva e uma ponte, obrigava-nos a olhar à esquerda e à direita, antes de nos lançarmos à conquista daquele espaço inferior a um quilómetro.
Tinha um marco azul e branco, onde se lia que a estrada era a 345, com destino fixo em Nelas, vindo da Mealhada.
Nunca nos ocorreu outro sentido que não este, em flagrante contradição com as regras da leitura.
Outros marcos mais pequenos marcavam-lhe as centenas, com o número bem gravado na superfície branca, ligeiramente biselada para facilitar a leitura dos condutores.
Era a minha rua, aquele pequeno troço da EN 345.
A partir da ponte, ou da curva que a limitava à esquerda da minha abordagem, era o Infinito.
Quando tinha acesso a um mapa, procurava logo a minha rua.
Nem todos se podiam orgulhar de ver a sua rua no mapa, e entretinha-me a imaginar o trânsito e a minha presença no emaranhado da rede viária, como uma impressão digital.
Um dia chegou a minha vez de a percorrer.
Ceder à tentação de me perder no labirinto proposto pelo mapa.
Esgotei-o depressa demais, e dei por mim junto à abstracção defendida com armas das fronteiras.
Contornei-a pelo lado mais humano, que era um caminho anónimo, paralelo à linha-férrea.
E nunca mais parei.
Nem para me voltar para trás, e ver que a minha estrada tinha desaparecido do mapa, e conquistava finalmente a dimensão de uma rua.

Papiro do dia (432)

«Ao longo de toda a manhã, sempre que não estava ocupado com um paciente, dava por si a pensar no encontro de Manna com o comissário Wei. Sentia-se muito inquieto, porque tinha ouvido histórias horríveis acerca da vida privada dos oficiais superiores e receava que Manna pudesse tornar-se uma das suas vítimas. Falava-se muito do general-de-campo, o comandante Pengfan Hong, que costumava mudar de esposa de três em três ou de quatro em quatro anos, porque era demasiado selvagem na cama para que uma mulher normal o pudesse suportar durante muito tempo. Todas elas caíam doentes um ano após o casamento, acabando por morrer de uma doença renal. O Partido ia conseguindo arranjar-lhe novas esposas, mas, após a morte de diversas mulheres, o comandante foi finalmente persuadido a casar com uma grande mulher russa, a única que conseguiu permanecer ilesa após sete anos de vida em comum. Os receios de Lin agravaram-se quando lhe disseram que o comissário Wei era um homem corpulento.»
[Ha Jin, À espera; trad. Rui Pires Cabral, Gradiva, Agosto 2000]

22 de janeiro de 2014

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Um bom casamento estava cheio de momentos de discórdia. O casamento rotineiro, esse, sim, é que estava destinado ao desastre. Numa palavra, as diferenças entre marido e mulher só serviam para ajudar a consolidar um casamento.»
(Ha Jin)

Nem sempre a lápis (481)

Memória descritiva
Quadro
Terá sido preto, o primeiro de que me recordo.
Preto da ardósia enorme onde esboçávamos as primeiras letras a giz, e lhe acrescentava a surpresa figurativa.
Outros pairavam por perto.
Em suportes tão diferentes como o cartão onde vinham as camisas novas do meu pai, dos caixotes de óleo da oficina e a madeira indefesa da carteira.
Ou até a terra do quintal onde cresci.
Nunca as árvores.
Muito cedo me apercebi que antes de fazer um desenho, ou pintar, precisava de o situar num espaço.
Como uma janela, por onde olhava o mundo.
Ou tentava fixá-lo como um retrato interior.
Muitos outros suportes se lhes seguiram: desde os papeis, aos tecidos, dos metais, às madeiras e ao vidro.
Ultrapassada a alegria da terra, e o fascínio efémero da areia da praia, permanece a vontade do ar.
Como uma ausência.

Papiro do dia (431)

«No dia seguinte, depois do almoço, Shuyu entrou no quarto dele com um exemplar do jornal do condado, Obras do Campo, que na altura não passava ainda de meia dúzia de páginas manuscritas e mimeografadas.
Lin pegou no jornal e começou a folheá-lo. Na página três encontrou um artigo sobre a tentativa de divórcio. Dizia o seguinte:
Ontem à tarde, o Tribunal do Condado rejeitou um pedido de divórcio. Lin Kong, um médico do exército de Muji de 18.º posto, solicitou o divórcio ao tribunal, alegando que ele e a mulher, Shuyu Liu, já não se amavam. Mas Shuyu insistiu que se sentia ainda ligada ao marido por sentimentos profundos. Centenas de pessoas que apoiavam a mulher reuniram-se junto ao tribunal, criticando o marido pela inconstância dos seus sentimentos e exigindo que as autoridades protegessem os interesses da esposa. O experiente juiz, camarada Jianping Zhou, repreendeu Lin Kong e lembrou-lhe que era um oficial revolucionário e filho de um camponês pobre, dizendo-lhe: “Esqueceste a tua classe de origem e tentaste imitar o estilo de vida da classe exploradora. O tribunal aconselha-te a corrigires os teus erros, caso contrário, cairás irremediavelmente no abismo da desgraça.”
Todos se sentiram aliviados ao saber que Lin Kong e Shuyu Liu continuavam legitimamente casados no momento em que abandonaram o tribunal. Algumas pessoas aplaudiram
[Ha Jin, À espera; trad. Rui Pires Cabral, Gradiva, Agosto 2000]

 

19 de janeiro de 2014

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

 

Às vezes, lá calha...

«Uma tarde viu umas belíssimas colchas de cetim em saldo na mercearia do hospital. No canto superior esquerdo de cada colcha leu as seguintes palavras: “Para uma noite inesquecível”.»
(Ha Jin)

Nem sempre a lápis (480)

Memória descritiva
Porto Côvo
É uma fenda na falésia, como uma colherada furtiva num doce de domingo.
Visto de cima assemelha-se a uma mão entreaberta, com os dedos entregues à massagem das vagas.
Ou desentrançando as algas, com paciência de mãe em cabeleira amotinada.
Nunca o vi do mar.
Mas entretenho-me a imaginá-lo, sem o risco de repetir a surpresa e a segurança da atracagem.
Procuro-o a horas diferentes, e disposições indiferentes, nem sempre as mais fiéis, para lhe continuar a medir a dimensão da mão.
Como um aconchego.
Uma carícia reinventada.
Nele fundeei algumas das melhores recordações, e maiores sustos.
Covos como ele, à dimensão dos cais da descoberta.

Papiro do dia (430)

«Na Primavera de 1972, Lin recebeu uma carta do primo Liang Meng, que crescera no condado de Wujia e frequentara a mesma escola secundária que ele. Liang Meng vivia agora em Hegang, uma cidade de minas de carvão situada a cerca de cento e trinta quilómetros a oeste de Muji. A carta foi uma surpresa para Lin, já que os primos nunca tinham mantido correspondência regular.
Liang Meng pedia-lhe que o ajudasse a encontrar uma namorada no hospital do exército, já que gostaria de casar com uma médica ou uma enfermeira. A mulher dele tinha morrido dois anos antes, deixando-o com três filhos. Após um longo período de luto, Liang Meng sentia-se preparado para recomeçar a sua vida. Além disso, a família precisava de uma mulher que mantivesse o lar unido. Liang procurava há meses uma namorada em Hegang, mas sem qualquer sucesso; nalguns casos, as candidatas tinham ficado assustadas com o tamanho da sua família; noutros, Liang rejeitara-as, considerando-as demasiado vulgares. Era um homem muito instruído.»
[Ha Jin, À espera; trad. Rui Pires Cabral, Gradiva, Agosto 2000]

 

17 de janeiro de 2014

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

 

Às vezes. lá calha...

«Vou contar-lhe a minha história desde o princípio e farei por ser claro, porque necessito que me entenda e me creia. A falta de tranquilidade è a causa dos borrões.»
(Bioy Casares)

 

Nem sempre a lápis (479)

Memória descritiva
Poesia
Depois das fogueiras ancestrais, a poesia viajou de mão em mão, na garupa dos cavalos, entre os sabores e os cheiros.
Foi contrabandeada, moeda de troca, entre tribos do deserto, mendigos nómadas e a insónia das crianças.
Todas as tentativas para a aprisionarem em tábuas de argila, na trama colorida dos teares, na sinalética efémera dos curtumes, cederam à desertificação, à corrupção e à fome.
Isso é o que gostaria de acreditar, o que a cultura me ensinou ser de bom-tom e ficar bem em qualquer página.
Decorridos cinquenta anos, se tivesse de deitar contas à vida, digamos que a passei a escrever poemas.
Sem conseguir perceber onde fui apanhado pela poesia.
E sem me preocupar que o descaramento do balanço ou a indiferença pelo início, me exponham ao ostracismo e à desconfiança.
Recordo-me vagamente de uma tribo de ciganos à porta de casa, de um bibe a declamar numa sala vazia, de uma oliveira dilacerada pelo tempo e os canivetes.
Recordo-me também de um velho livro, com as capas roçadas pelo uso e as letras gastas por dedos titubeantes e fascinados.
Ao contrário do que talvez fosse de esperar, não agradeço nada à poesia, nem sinto que lhe deva o que quer que seja.
E se a nossa coexistência nem sempre foi pacífica, isso deve-se mais à atenção a que nos forçam, do que à ausência que nos exigimos.

Papiro do dia (429)

«Com esta faz três vezes que lhe escrevo. Daí nada posso concluir, pus o primeiro bilhete num sítio que cá sei. Pela manhã cedo, se quiser, posso recuperá-lo. É tão breve e escrevi-o com tanto apuro que nem eu o entendo. O segundo, que não é muito melhor, mandei-o por uma mensageira, de nome Paula. Como você não deu sinais de vida, não vou insistir com mais cartas inúteis, que no melhor dos casos o indispõem.
Decerto você há-de perguntar: “Porque não manda Bordenave o cartapácio a um advogado?” Com o doutor Rivaroli só tratei uma vez, mas o gordo Ricardo (a quem o digo!) conheço-o há muito. Não me parece de fiar um advogado que organiza as suas rifas com o Gordo de rifeiro. Ou então perguntará: “Porque me manda ele a mim o cartapácio?” Se alega que não somos amigos dou-lhe razão, mas também lhe peço que se ponha no meu lugar, por favor, e que me diga a quem poderia eu mandá-lo. Depois de percorrer mentalmente os amigos – escusado Aldini, porque o reumático o entumece – elegi o que nunca o foi. A velha Zeferina pontifica: “Nós, que vivemos numa viela, temos casa numa casa maior ainda.” Quer ela dizer com isto que todos nos conhecemos.
Decerto bem se lembra como começou a disputa.»
[Bioy Casares, Dormir ao sol; trad. António Sabler, Editorial Estampa, Dezembro 1980]

14 de janeiro de 2014

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

Cor, di-lo Rodrigues Lapa, é um velhíssimo galicismo que significa coração (em latim cor-cordis). mas também conhecimento, consciência. (...) Para os franceses, expressão semelhante (Lembrar de cor) é bem mais interessante. De cor, diz-se em francês par coeur, mantendo todo o seu significado sentimental.
(Roby Amorim)

Nem sempre a lápis (478)

Memória descritiva
Oliveira
Afinal, nem sempre era da serra.
Conhecemo-nos no Jardim-Escola, quando as brechas abertas no tronco escaqueirado me ofereciam refúgio para o suplício do soletrar.
O meu corpo insinuava-se entre os veios da madeira acinzentada, e perscrutava um horizonte animado por chapéus de palha e bibes cor-de-rosa.
Eu cultivava o autismo, com a mesma indiferença que a oliveira ocupava o espaço, e era tida em linha de conta nas partilhas.
Geográficas e outras.
Aprendi a saborear-lhe o amargo das folhas, para disfarçar o hálito dos primeiros cigarros, e o ouro do azeite quente das tibornas.
Mais tarde, divaguei entre os olivais industriais de Jaén, Asilah e da Sardenha, acompanhado pela memória de pias e bilhas engorduradas.
E das mãos gretadas que catavam a azeitona entre a geada.
Talvez por isso, nada me convence da origem mediterrânica da oliveira.
Que deveria ser da serra, como garantia a canção.
[Longe do mundo; frenesi 2004] 

Papiro do dia (428)

«O político e o polícia
Entre político e polícia a diferença é mínima, sobretudo se o político é o ministro da administração interna (ou o do interior, como se designava ainda há pouco tempo).
Entende-se que ministros e polícias devem ser urbanos e polidos. Tudo isto à volta de um conceito que durou milénios, contraditados hoje pelos factos, mas que não temos palavras para exprimir senão as muito velhas e altamente contestáveis. Isto é: que a civilização está na cidade e os rústicos não passam de uns bárbaros.
Polis, a cidade grega, vai degenerar em político, em polidez e também em polícia. A civitas romana será a cidade, o cidadão, a cidadania, a civilidade, os bons costumes de quem mora numa grande parvónia. E também a urbs, igualmente romana, determinará a urbanidade, que é uma maneira de ser civilizado ou polido, a urbanização de terrenos, por exemplo, tantas vezes ao acaso que exige a intervenção tanto da polícia como dos políticos.
Pelos campos, que o urbanismo vai invadindo, moram os rústicos, os bárbaros na expressão grega, que significava apenas os que não moravam na cidade. Para os romanos, quem não morava na Península Itálica, era um bárbaro e a palavra foi-se alongando. Mas igualmente os chineses, quando Fernão Mendes Pinto lá deu à costa, também entenderam que estavam em vias de facto com bárbaros e encontraram palavra equivalente.
Ao contrário do rústico, regido pelos costumes e pela autoridade patriarcal, os urbanos necessitaram de chefes e senhores para policiar a cidade. Na maioria dos casos com péssimos resultados. Começaram, na Anatólia, por arranjar um turannos, palavra indecisa que não quer dizer mais que governante. Mas para os subsequentes gregos, tyrano já significava um senhor absoluto, logo s seguir àquele que usurpava o poder.
Ou seja, um déspota, palavra que começa humildemente por significar aquele que tem um escravo, mais tarde, o dono da casa, o chefe de família até atingir as mesmas qualidades do tirano.
Um tirano, um déspota, acabam por exigir uma corte onde lhe façam salamaleques e lhes dêem noção da sua autêntica ou pretensa importância.
Com medo da polícia, ou por simples ambição na corte, até os mais rústicos (ver O Fidalgo Aprendiz) se podem tornar corteses e, como os verdadeiros cortesãos aprender a fazer cortesias.
Coisa que também se ensina, com certa facilidade, paciência e jeito, aos cavalos.»
[Roby Amorim, Elucidário de Conhecimentos (quase) inúteis; 2.ª ed. revista e ampliada. Edições Salamandra, Julho 1985;
errata da pág. 131, texto integral]

11 de janeiro de 2014

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia





«Obladi obladá, era a época do gelado Rajá.

Nasci no nº15 da Avenida António Augusto de Aguiar a 6 de Agosto de 1960 e a coisa mais radical que fiz nessa década foi receber o Prix de Turbulence no Liceu Francês Charles Lepierre, ainda as Amoreiras eram mesmo para apanhar as folhas que alimentavam aquelas lagartas que tínhamos em caixas de sapatos e que eram os únicos animais que a minha mãe permitia que coabitassem connosco. Os bichos-da-seda.

Já nessa altura dizia que queria ser pintora talvez por ter sempre à mão canetas de feltro, lápis de cor, de cera e lapiseiras (uma infância Caran D’Ache…).»

Às vezes, lá calha...

«Quando se espera, é assim. Vai-se muito ver as estradas, as pontes e o mar, para ver passar os que não ficam, os que se vão embora.»
(J. M. G. Le Clézio)

Nem sempre a lápis (477)

Memória descritiva
Medo
Durante anos, acreditei que o sono mata.
E como o sono me estimulasse a vontade de morrer, raras foram as noites em que não estreei uma morte nova.
Com a prática, aprendi a prolongar a morte, adiando a agonia do despertar.
Para minha surpresa, ou decepção, a manhã confrontava-me com a extensão da empresa.
Vítima e espectador da minha vítima, acabei por vulgarizar a morte, com prejuízo do repouso que o sono me exigia.
Hoje durmo com uma facilidade espantosa e, raramente, me lembro de adormecer.
Ou sonhar.
Sem que eu ou a morte tenhamos assinado qualquer espécie de tréguas.

Papiro do dia (427)


«À mesa
Já ninguém tem regras nem horas para estar à mesa, dizem os mais velhos. Pelo menos no que respeita à terminologia estarão cheios de razão.
Começava-se o dia com a parva (a pequena refeição) ou desjejum, o mata-bicho, hoje o pequeno-almoço.
O almoço vinha um pouco mais tarde, mas ainda à pressa, ao calhar da conveniência dos horários de cada um. A palavra não é árabe, como pode julgar-se pelo al inicial. É romana: ad-morsus, ou seja, à dentada, rapidamente para ir à vida.
A merenda fazia-se no pino do calor como um intervalo indispensável, ao meio-dia (meridie) e só no regresso a casa a família acabava por se juntar na ceia (do grego Koene: conjunto). Os simpósios que hoje reúnem professores, cientistas, etc. não passavam de uma patuscada, de pretexto para mais uns copos, pois simpósio significa beber em conjunto.
Na Idade Média, a mesa era posta pela simples razão de que não havia casa de jantar e comia-se ao gosto do momento, aqui ou ali.
A mesa (ou mensa como se diz nalguns sítios do Alentejo mantendo exactamente o termo latino) era armada (posta) sobre pernas em xis, como ainda se faz com os tabuleiros dos vendedores ambulantes.
Antes de se levantar a mesa, tirava-se a toalha, já bem suja porque os comensais ali tinham limpo as mãos (embora fosse regra não meter na comida mais do que as pontas dos dedos, que também podiam limpar-se ao pêlo dos cães que solicitavam um osso sobrante). O que vinha depois, as frutas e os doces era comido directamente sobre a mesa. Daí a sobremesa. Comia-se com colher ou à mão de um recipiente comum e daí cada um meter a sua colherada.
O garfo só vai aparecer no século XVI. Objecto insólito, cuja primeira utilidade, então com um só dente, fora a de escrever as missivas romanas sobre tabuinhas de cera. Era o graphium com que se grafava, ou se escrevia.
Garfo, que, no passado, se apelidara stylum, o instrumento com que se gravavam os caracteres cuneiformes nas Babilónias e Caldeias. Cada qual com o seu estilo, e os cirurgiões com o seu estilete para fazerem talhos nos males que nos afligem, e daí talhante o que corta a carne que comemos, cada dia mais doloroso… E comemos, claro, com os nossos talheres.»
[Roby Amorim, Elucidário de Conhecimentos (quase) inúteis; 2.ª ed. revista e ampliada. Edições Salamandra, Julho 1985]
 

8 de janeiro de 2014

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

 

Às vezes, lá calha...

"Não é sempre com alguém ausente que realmente falamos?
Não foi também por isso que inventámos Deus?"
(Teolinda Gersão)
 

Nem sempre a lápis (466)

Memória descritiva
Mata
A mata era um dos espaços interditos da infância.
Hoje nada resta desse lençol ondulante das mimosas, acácias e austrálias, que separavam o jardim-escola da escola, e nos aguardava como um passo irreversível na idade da razão.
No limiar da transgressão, habitada por uma moura no recato húmido de uma gruta, a mata incitava-nos ao crescimento, e era um dos melhores covis da minha imaginação.
A adolescência revelou-me outras matas, onde as estações do ano me ensinaram a decantar a folhagem e a luz da sombra, nas margens de um rio devorado por uma barragem.
Delas apenas conservo alguns ocasos, como uma memória esticada pelo arco de uma ponte romana, entretanto submersa pela secura do futuro.
De quase todas elas, porque a única mata que me resta, resume-se a uma árvore, em Silves, ensinada pela moura que me dispensa a imaginação.
Ou a saudade.

Papiro do dia (426)

«O mar
Muitos séculos de permanente contacto com o mar introduziram na língua portuguesa uma longa terminologia naval que passou rapidamente ao simples quotidiano.
Não se pode entrar no metropolitano porque está “à cunha”. À cunha estava o navio quando completamente aparelhado e já com os mastaréus no seu lugar. Quem, assim, perdeu o metropolitano pode também perder as estribeiras. E as estribeiras não são mais do que o ponto de apoio onde os marinheiros que trabalhavam no alto das vergas colocavam os pés. Quem perde as estribeiras, vai, fatalmente, cair ou ao mar ou ao convés, quase sempre com fatais consequências.
Estribeiras vem de estribo, como os dos cavalos, e encontramos um outro estribo no portaló de honra, no ponto de entrada a bordo das personagens principais. O bordo do estribo chamou-se estribordo inicialmente, hoje estibordo. O que se transformou numa grande confusão na marinha portuguesa (confusão apenas de lógica verbal), pois o portaló de honra, em Portugal, fica a bombordo.
Bombordo, à esquerda dos navios, quer dizer o lado bom, aquele em que se esperava (e se conseguiu) encontrar o caminho para as Índias, mas invertendo a terminologia habitual das embarcações que se limitavam a cruzar o Mediterrâneo e onde, consequentemente, bombordo era o lado de terra, sempre à direita do navio.
O mesmo sujeito que aguardava o metropolitano, sempre à cunha, deveria já “estar pelos cabelos”, o que é expressão bem intrigante. Ora, ao chegar ao porto, os navios lançavam a âncora, isto é, ferravam-na. A âncora podia ser colocada “a ferros” de maior ou menor segurança (à galega, a olho, a pé de galo, a pique). A mais insegura das posições era a de “ferro pelos cabelos” e daí que hoje se esteja pelos cabelos quando em perigo iminente de, pelo menos, perder a tramontana. (A tramontana é o lado norte do Mediterrâneo, por extensão, a Estrela Polar).
Depois de “chamar à fala” (como se fazia no alto mar para melhor identificação de um navio) o chefe da estação, o nosso homem embandeirou em arco ao saber que vinha uma próxima carruagem vazia. Fê-lo como os barcos usavam em datas festivas em que se “empavesavam”, cobrindo o convés (ou pavés) de bandeiras e panos.
Entretanto, a situação já criara grande “celeuma”, outro termo náutico lembrando as cantigas, ou a simples gritaria dos marinheiros quando alavam os cabo (que também pode dizer-se seleme, salema, saloma). O chefe da estação estava “enrascado”, também muito nauticamente. Enrascar é embaraçar cabos, velas, bandeiras numa polé, objecto náutico que iria ser precioso para o desenvolvimento dos processos da Inquisição.
Ao que parece, o homem que protestava já tinha bebido um pouco e estava um tanto “adornado”, como os navios que se inclinam com água a bordo ou com a carga mal distribuída, mas mantinha a sua indignação “a todo o pano”, e “aguentava a guinada”.
Não fosse uma daquelas mulheres facilmente “abordáveis” que o ajudou a recompor-se, tudo teria sido pior, porque o homem estava “desorientado” ou "desnorteado” (como os marinheiros a quem as nuvens não permitem ver a Estrela Polar para encontrar o Norte ou a profunda escuridão não deixa saber onde é o Oriente, onde nasce o Sol).
Se ao menos, como no Algarve, os ventos fossem constantes e se soubesse que barlavento é o sítio de onde parte o vento e sotavento aquele para onde se dirige, o nosso homem ficaria mais tranquilo.
Assim, pegou na sua tralha (no fundo, o lugar onde se amarram os cabos inúteis e que não estão a ser utilizados) e para regressar foi tomar lugar num calhambeque, tendo já totalmente esquecido que a palavra significa apenas um barco pequeno, insignificante.»
[Roby Amorim, Elucidário de Conhecimentos (quase) inúteis; 2.ª ed. revista e ampliada. Edições Salamandra, Julho 1985]

4 de janeiro de 2014

Breve interlúdio musical




Às vezes, lá calha...

«As estradas eram circulares, levavam sempre ao ponto de partida, traçando círculos cada vez mais estreitos em torno da Saguiet el Hamra. Mas era uma estrada que não tinha fim, pois era mais longa que a vida humana.»
(J. M. Le Clézio)

Nem sempre a lápis (465)

Memória descritiva
Mar
O mar chegava-me pela mão do meu avô.
O cão saía disparado do alpendre e denunciava-lhe a presença, a metros de distância.
Pouco depois o carro parava junto ao portão, onde o cão gania a reclamar as saudades de uma festa.
Como eu das suas histórias da Costa Nova, da Gafanha da Nazaré.
Do mar distante que me ensinou a ouvir num búzio.
Creio que o meu primeiro mar terá sido o da Figueira.
Como consta numa velha fotografia à-lá-minuta, encarrapitado numa BSA onde queimei um pé no escape.
Olho a fotografia, junto ao mesmo paredão onde anos mais tarde entreguei a minha vida a uma garraiada.
Sem capa, nem batina, e é tudo quanto me lembro dele.
Guardei-me para outras vagas.
Sem avô e com poucas fotografias, que troquei pelos equívocos da memória, onde convivem todos.
É assim que prefiro recordar-me do trovão de Mira e da Tocha.
Do larido de Porto Côvo e de Asilah.
Da filigrana vulcânica dos Biscoitos e da Serreta.
E já nem preciso de fechar os olhos, para que o meu avô me volte a trazer o mar pela mão.

Papiro do dia (425)

«Antes de começar
 
Diz o Acto dos Apóstolos: “susceperunt verbum cum omni aviditate”, ou seja, perscrutaram as palavras com toda a avidez. Como um operário da palavra, que é o meu utensílio, a minha pá, a minha enxada, procurei sempre identificar-me com a sua lógica interna como um motorista deve saber que regras determinam o funcionamento dos cavalos-vapor, da marmita de Papin aos mecanismos computorizados, dos foguetões à energia nuclear do engenheiro von Braun.
Seria fascinante saber-se porque se designa um certo animal como cão, uma peça de mobiliário por cadeira, uma determinada árvore por pinheiro. Seria preciso percorrer todo o passado das palavras até ao velhíssimo pai Adão, que teve o direito de nomear as coisas. Nomear é, de resto, possuir essas mesmas coisas. Quando se grita: “Oh Joaquim!”, o Joaquim pára na rua possuído pela nossa nomeação.
Mais grave é tentar descobrir o autêntico nome de Deus, o que seria equivalente a possuir-lhe os segredos ocultos, a conseguir o conhecimento total. É uma situsção tão séria que o e=mc2 de Einstein (que se aproxima do conhecimento total) serviu para criar a bomba atómica, da mesma maneira que a construção da Torre de Babel se acabou pela destruição de um possível entendimento entre os homens.
Este livro não pretende ser um tratado de semântica – que se deixa para os peritos – mas sim uma orquestração sobre a simbologia da palavra, embora lhe sobre um pouco de didatismo menos intencional.
Que é um palavra, até mesmo, que é uma letra? Porque, na verdade, se pode ir ainda mais longe.
“As letras, segundo o zohar (um medieval tratado da Cabala) revelam, pela sua forma, um ensinamento. São o símbolo de todo o universo”. De acordo com a mesma fonte “compareceram diante do Senhor para reivindicarem a honra de começar a criação do mundo.”
No que a Cabala concorda com o Evangelho de João, onde explicitamente se informa que “ao princípio era o verbo”.
De qualquer maneira, “as letras fechadas e misteriosas aguardam a interpretação dos iniciados para desvendar os seus segredos”. A gruta de Ali-Babá só pode abrir-se porque o mercador babilónico sabe a chave do segredo. Se não referisse a palavra mágica “sésamo”, a gruta ficaria para sempre ignorada.
Há um mundo de palavras e estas (por vezes a sua representação escrita) têm uma função a cumprir. O gólem é uma estátua que, em período de êxtase, uma rabi pode animar (dar-lhe vida) escrevendo-lhe na testa emet (a realidade, a verdade). Mas quando se lhe apaga a primeira letra, a palavra passa a significar morte e o gólem desfaz-se em poeira.
A palavra serve para o homem se entender, mas também para se confundir, como acontece, pelo menos desde os tempos da Torre de Babel. “Separam as águas de cima das águas de baixo. São a separação entre o fundamento masculino e o fundamento feminino.”
Mas a velha China afirma que as palavras só têm um valor sugestivo porque contêm, não a verdade, mas apenas alusões mais ou menos veladas.
Este livro não pretende ir tão longe em caminhos assim fascinantes. Fica-se, reverente e parcamente, por pequenas escavações na epiderme da língua portuguesa, sem a esperança de que este verbo próprio possa desencadear cabalísticas metamorfoses a não ser talvez um possível maior amor por aquilo que mais directamente interliga os homens: a sua capacidade de utilizar inteligentemente as palavras.»
[Roby Amorim, Elucidário de Conhecimentos (quase) inúteis; Edições Salamandra, 2.ª ed. revista e ampliada, Julho 1985]