31 de julho de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

Acabei por fazer sessenta anos enquanto traduzia Diário Volúvel; um ano mais velho, Vila-Matas aproxima-se dos sessenta em Dublinesca, que agora traduzo. É domingo, 15 de Junho de 2008; ele acaba de chegar a Dublin, eu encontrava-me há um mês em Mortágua.

Nem sempre a lápis (65)

Não sei quantas vezes o terei lido, mas há mais de dois anos que não o fazia e haverá uns quatro que o tenho; arrematado num pack de não sei quantos títulos, onde faltava Suicídios Exemplares, mas esperavam-me os irrecusáveis conhecimentos de História Abreviada da Literatura Portátil. O título anterior e o meu primeiro Vila-Matas, de bolso, encontrei-o no expositor de uma área de serviço, entre Bolullos del Condado e Sevilha; nunca cheguei a lê-lo, foi alma levada pelo sumiço dos suicidas. Antes de me deitar, apanhei – sem hesitações, na movimentada confusão da estante –, essa preciosidade que é Bartleby & Companhia em igual tradução de José Agostinho Baptista. Esta noite, dei folga a Ulisses; por vezes, prefiro copiá-lo contado, lido pelo autor de Dublinesca. Percorrida mais de metade da tradução, encontro-me na fase (perigosa) de delirar e cultivar este tipo caseiro de equívocos. Bem vistas as coisas, também não tenho mais nada para fazer; «Preferia não o fazer», mas lá terá de ser para o blogue. Memorizei logo o arranque da primeira linha até à determinação de Bartleby, «escondido atrás do biombo quando já tinham desmantelado o escritório de Wall Street, onde vivia: "Preferia não o fazer"». Cheguei ao final da primeira nota de pé de página, «sem texto», deste diário bartlebiano – o autor também lhe chama rastreio –, cheguei à página vinte com o livro cheio pacotes de açúcar (vazios), bilhetes, tiras de livros de mortalhas – a ira da minha empregada: «Também não são precisos tantos!», sabe lá ela –, destinados a marcar material para o blogue e a converter-me num copista formado pelo Instituto Pierre Menard (Roberto Moretti). «Disponho-me, pois, a passear pelo labirinto do Não (…) uma tendência que interroga o que é a escrita e onde está, andando à volta da impossibilidade da mesma e dizendo a verdade sobre o estado de prognóstico grave – mas sumamente estimulante – da literatura deste fim de século. Só da pulsão negativa, só do labirinto do Não pode surgir a escrita por vir [sublinhado meu].» E os exemplos sucedem-se: «A literatura era precisamente – como acontecia com Kafka – a única coisa que eu tinha para me tornar independente do meu pai.»; mal eu sabia que, quando ele me ofereceu a máquina de escrever para nos despedirmos, já «Robert Walser sabia que escrever não se pode escrever, também é escrever».

À mão de ler (69)

«Nunca tive sorte com as mulheres, suporto com resignação uma penosa corcova, todos os meus familiares mais próximos morreram, sou um pobre solitário que trabalha num escritório pavoroso. Quanto ao resto, sou feliz. Hoje mais que nunca porque começo – 8 de Julho de 1999 – este diário que vai ser ao mesmo tempo um caderno de notas de rodapé sobre um texto invisível e que espero que demonstrem a minha solvência como rastreador de bartlebys.
Há vinte anos, quando era muito jovem, publiquei um romancezinho sobre a impossibilidade do amor. Desde então, por causa de um trauma que já explicarei, não tinha voltado a escrever, pois renunciai radicalmente a fazê-lo, tornei-me um bartleby, e daí o meu interesse, desde há algum tempo, por eles.
Todos conhecemos os bartlebys, esses seres nos quais habita uma profunda negação do mundo. Tomam o seu nome do escrevente Bartleby, esse empregado de escritório de um conto de Herman Melville que nunca foi visto a ler, nem sequer um jornal; que, durante períodos prolongados, fica de pé a olhar para a rua, através da pálida janela que existe atrás de um biombo, na direcção de um muro de tijolo de Wall Street; que nunca bebe cerveja, nem chá, nem café como toda a gente; que nunca foi a parte nenhuma, pois vive no escritório, inclusivamente aos domingos; que nunca disse quem é, nem donde vem, nem se tem parentes neste mundo; que, quando lhe perguntam onde nasceu ou o encarregam de um trabalho ou lhe pedem que conte alguma coisa sobre ele, responde sempre com:
- Preferia não o fazer.»
[Enrique Vila-Matas, Bartleby & Companhia; trad. José Agostinho Baptista, Assírio & Alvim, Março 2001]

29 de julho de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Em primeiro lugar, o passado. Esse sofrimento à volta do que poderia ter feito e não fez e deixou enterrado como um monte de rosas debaixo de muitas pazadas de terra; a sua necessidade de não olhar para trás, de obedecer ao seu impulso heróico e de dar o salto inglês, de orientar o olhar em frente, para a insaciabilidade do seu presente.»

«É bom trabalhar nas Obras» (27)

«Hora: logo a seguir às onze da manhã.
Dia: 15 de Junho de 2008, domingo.
Estilo: Linear. Compreende-se tudo. Conserva um ar familiar com o capítulo sexto de Ulysses, onde encontramos um Joyce lúcido e lógico, que introduz, de vez em quando, pensamentos de Bloom que o leitor segue com facilidade.
Lugar: Dublin Airport.
Personagens: Javier, Ricardo, Nietzky e Riba.
Acção: Javier, Ricardo e Nietzky, que já estão há um dia em Dublin, recebem Riba no aeroporto. A ideia é celebrar amanhã, ao cair da tarde e antes de visitar a Torre Martello, as exéquias fúnebres da galáxia Gutenberg. Onde? Há já uns dias que Riba delegou em Nietzky a decisão, e este pensou, muito acertadamente, que o cemitério católico de Glasnevin – antes, Prospect Cemetery, onde Paddy Dignam é enterrado no Ulysses – poderia ser um lugar adequado. Mas quanto ao funeral, nem Ricardo nem Javier, ainda não sabem de nada. E por não saberem, nem sequer sabem que foram incluídos no informal programa de actividades que Riba e Nietzky andaram a preparar. Por outro lado, os três escritores e amigos de Riba são já, ainda sem que eles o saibam, as réplicas vivas dos três personagens – Simon Dedalus, Martin Cunningham e John Power – que acompanham Bloom no cortejo fúnebre do sexto capítulo de Ulysses. Secreta satisfação de Riba.
Temas: Os mesmos de sempre. O passado já inalterável, o presente fugitivo, o inexistente futuro.»
[Enrique Vila-Matas, Dublinesca; em tradução para a Teorema
foto: Ordem do Finnegans no Bloomsday, Dublín 2010. Antonio Soler, Garriga Vela, Malcolm Otero Barral, V-M, Giralt Torrente, Jordi Soler y Eduardo Lago]

28 de julho de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

... sugerido, em beleza, pelo livreirito

Às vezes, lá calha...

Apoquenta-me sempre, o atrevimento com que a letra maiúscula começa a linha. Aborrece-me a imagem impositiva, oficial, do que deveria começar como chegou ao papel para continuar; assim.
[ilustração: Drawing Hands, M. C. Escher]

«É bom trabalhar nas Obras» (26)

«Embrenha-se na Crónica de Dalkey, de Flann O’Brien, o que não é mais do que outra forma de se preparar conscientemente para a viagem a Dublin. Além disso, o pub Finnegans, onde Nietzky tem pensado fundar a Ordem de Cavaleiros, fica nessa povoação de Dalkey, a pequena cidade situada a umas doze milhas a Sul de Dublin, na costa.
Da localidade de Dalkey, diz Flann O’Brien: "É um lugarejo peculiar, acocorado, calmo, como que adormecido. As suas ruas, que não o são tão claramente, são estreitas e nelas sucedem-se encontros que parecem acidentais."
Dalkey, localidade de encontros casuais. E também de estranhas aparições. Na Crónica de Dalkey aparece Santo Agostinho vivo e a dar ao rabo, em diálogo com um amigo irlandês. E também aparece James Joyce, que trabalha como empregado num bar turístico de Dublin e recusa-se a ser relacionado com Ulysses, livro que considera "sebento, essa colecção de imundice".
Uma rajada violenta de sono impele-o agora a abanar a cabeça para a frente. E chega-lhe de novo a impressão de estar a ser visto. Celia voltou e não a ouviu entrar? Chama-a, mas ninguém responde. Completo silêncio.
- James?
Bom, não sabe muito bem porque perguntou por James, mas espera bem que não seja precisamente Joyce quem agora ande por aí.»
[Enrique Vila-Matas, Dublinesca; em tradução para a Teorema]

27 de julho de 2010

Breve interlúdio musical

... encontrado por entre a poeira dos dias

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Desfazer esse outro passado, talvez, desfiar esse tecido de eventos para voltar ao ponto em que fui despojado. Afinal de contas, não é isso que sempre desejamos?»
[foto: Nico]

Nem sempre a lápis (64)


Precisei de mudar três vezes de mesa para encontrar a posição mais confortável e anotar a súbita pertinência desta vulgaridade; como mandam as regras, já consultei tantas vezes a velha tradução de João Palma-Ferreira, editada pela Livros do Brasil que, a partir desta noite, deixo de pertencer ao vasto número «de leitores que se vangloriam de nunca ter lido Ulisses». Tenho ali – mais como objecto curricular, juntamente com o Cahier de L’Herne sobre a Beat e Apocalipse, editado por Fernando Ribeiro de Mello – o livro I de Finnicius Revém, versão brasileira, introduzida e anotada de Donaldo Schüler, que a Ateliê Editora / Casa de Cultura Guimarães Rosa, em 1999, se propunham publicar nos dezassete capítulos que perfazem as quatro partes do enigmático texto de Joyce, mas terá sido acelerada a avaliar pela capa do livro II. É curioso que chegue ao fim do mês para me entregar ao ambiente de Dublin, sem barbour nem mackintosh, não com o exemplar que sobrevive esquecido na tabacaria da Fortaleza, em Armação, mas outro da mesma tiragem – até há bem pouco, intacto – que ainda não tive oportunidade de devolver. É um pouco como a estupidez de procurar realizar, quantas vezes por todos os meios e inventem-se os que forem necessários para concretizar fantasias. Nunca mais se recuperam e nada é tudo o que ocupa o espaço vazio; o equívoco algarvio que me gangrenou o Sul.

À mão de ler (66)

não chega para escrever uma novela.»
[ilustração: Van Gogh]

26 de julho de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Numa pausa da tradução de Dublinesca (Vila-Matas) - onde «o último editor literário» se prepara para celebrar as exéquias da era Gutenberg, durante o Bloomsday, em Dublin -, fui ver as montras e deparei-me com isto:
«No final do século XIX, convivas de um serão londrino entretêm-se a imaginar o futuro próximo da humanidade. Das artes, da literatura. E dos livros. Edison, o inventor do fonógrafo, acaba de apresentar o cinematógrafo e Gutenberg parece condenado pela ascensão do som e da imagem em movimento. O livro impresso vai desaparecer, vaticina uma das personagens.»

Às vezes, lá calha...

«Desde que começam as minhas recordações que os meus lábios se mexem sozinhos. Se estou diante de um teclado, teclo; se diante de uma página em branco, anoto; sem outro instrumento, uso a língua.»
[foto trazida No vazio da onda]

Nem sempre a lápis (63)

Regresso esfalfado da expressão «tu, tem tento»; bem sei que também é muito corrente a versão ainda mais abrutalhada «tem-me», mas não é essa que me convém. Devo ter passado horas de olhos fechados, outras abertos, a ouvir o mar no cortinado, a desossar a ladina expressão nas mais inumeráveis situações sugeridas pela penumbra do quarto, sem espaço para reboliço. São quatro tês, um a seguir ao outro; um, dois, três, quatro. Julgo que terá sido a hesitação funambulista de quem procura atravessar uma ribeira, de pedra em pedra, a que esteve mais presente; sem descurar o derrube sequenciado das pedras de dominó sobre o tampo de mármore de uma mesa, o Lego da literatura.
Ao abrir o documento, reparei que não era substituído desde as 03:31 16-07-2010, praticamente à mesma hora; vista à distância, parece código de barras.

À mão de ler (65)

«A teologia ensina-nos que, de entre todos os pecados, os de omissão são os mais interessantes e os mais complexos. Eu próprio, como fui sempre um escritor oculto, de uma discrição exemplar, quase obsessiva, ofereci aos meus amigos a justificação de todas as suas traições. Todos eles puderam dizer que a minha desaparição não era senão a sequela esperada e normal do meu conhecido estado de indecisa presença.»
[Alberto Manguel, Todos Os Homens São Mentirosos; trad. Umbelina de Sousa, Teorema Abril 2010]

25 de julho de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

Há tarde, no Sul;
e nela tudo se espreguiça,
por havê-la.

Nem sempre a lápis (62)

A ociosidade alarga o horizonte, os cheiros, a luz, os sons, a alma. Tudo se alarga nos tempos de ócio; sem a incómoda necessidade de sair de casa, porque a própria casa se alarga e paira como uma nuvem para nos proteger do Sol e da chuva. Ouço ao meu lado, «Já estava farta de férias, de estar sem fazer nada», referindo-se a um fim-de-semana alargado ou a um simples fim-de-semana. A ociosidade aqui não alarga nada, é largada; as pessoas sentem-se diminuídas, aterrorizadas com o alargamento do horizonte e largam o ócio. Sacodem-no, só não o pisoteiam porque não o conhecem. Vontade não lhes falta, mas não chega; é curta e o ócio alarga o horizonte, para nem falar da vontade dos ociosos. É possível que apoiar o rato do moleskine em cima de No País da Magia, me faça ler assim. Henry Michaux não brincava com coisas sérias; quem não sabe que «esta gota de água é mais sensível do que um cão»?
[foto: Nico]

À mão de ler (64)

«Andrea dividiu o armário em dois, concedeu a Bevilacqua a secção mais ampla (embora ela tivesse dez vezes mais roupa) e montou-lhe uma mesinha a um canto para que pudesse enfiar comodamente as suas sementes coloridas. Discretamente, junto à caixa de ferramentas, colocou-lhe um candeeiro de leitura, uma resma de papel e uma Olivetti portátl.
Porque, desde o primeiro dia que Bevilacqua lhe foi apresentado, Andrea tinha-se proposto que o escritor (de fotonovelas, pouco importava) voltasse a escrever. Seria essa a sua missão: resgatar da ociosidade bartlebiana o seu amado génio. Andrea acreditava fervorosamente nessa obra magnífica, avassaladora, que Bevilacqua sem dúvida transportava nos abismos da alma, aterrado pela ideia de trazê-la ao mundo. Andrea seria a sua parteira, a sua guardiã, a sua tutora.
Vila-Matas assegura-me que, nos casos de escriores que não escrevem, costuma aparecer uma personagem que se recusa a aceitar esse silêncio criativo e que se empenha em provocar a eclosão do que nunca consegue expressar-se. Em lugar de entender que esse escritor existe justamente por causa do que não produz, acredita, pelo contrário, discernir na ausência a promessa de uma obra vindoura. A relação de Andrea com Bevilacqua confirma a tese do mestre.
No entanto, os meses passavam e Bevilacqua não escrevia. Todas as noites enfiava sementes; todas as manhãs saía para a Calle Goya, onde desdobrava a sua mantinha. Algumas tardes acompanhava Andrea a alguma leitura de poesia ou a alguma inauguração de quadros, onde se aborrecia resignadamente. Porém, para grande mágoa de Andrea, a resma continuava incólume e a Olivetti por abrir.
Um dia, quando Bevilacqua tinha saído para vender as suas bugigangas, Andrea decidiu fazer limpeza ao apartamento e, ao tirar uma pilha de malas e caixas do armário, notou no fundo um velho saco da Pluna que Bevilacqua tinha carregado desde Buenos Aires e do qual assomava a manga de uma camisa. Pensando que Bevilacqua se esquecera ali de alguma roupa que precisava de ser lavada, Andrea esvaziou o saco e descobriu no fundo um embrulho rectangular envolto em plástico. Abriu-o. Era uma pilha de folhas escritas à mão; a primeira tinha por título: Elogio da Mentira. Nem essa nem a última página tinham assinatura.»
[Alberto Manguel, Todos Os Homens São Mentirosos; trad. Umbelina de Sousa, Teorema Abril 2010]

24 de julho de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Proust vai buscar detalhes a posteriori porque quer que o passado lhe confirme o que inventa no presente. Bevilacqua, não; a ele, interessava-lhe o a priori, os factos como pura narração, sem glosa nem comentário.»
[ilustração encontrada aqui]

À mão de ler (63)


«O interesse literário de Andrea (porque o tinha) inclinava-se, no entanto, para a literatura do Novo Mundo, e, quando nos conhecemos, não sei se foi o meu físico ou o meu passaporte o que a seduziu.
Amigo Terradillos: eu contei-lhe que só conheci Bevilacqua um bom tempo depois de me instalar em Madrid. Haveria então uns dois meses que Andrea e eu saíamos juntos. Eu tinha poucos anos mais do que ela; Bevilacqua, como já lhe disse, uns dez mais do que eu. Ele era elegante, espigado; eu fui sempre para o balofo, e sofro de desalinho crónico. Triunfaram o garbo e a idade. Andrea sentiria que Bevilacqua possuía mais prestígio, mais estirpe. É verdade que, para além dos consabidos olhos de carneiro mal morto, um punhado de cães dava-lhe um aspecto aristocrático, convertendo-o assim nessa personagem que as raparigas da idade de Andrea (se se interessam por literatura latino-americana) associam a um Bioy Casares ou a um Carlos Fuentes para consumo local. Sobre a sua secretária, decorada com imparcial falta de gosto com plantinhas tropicais e animais de peluche, descobri um dia a fotografia emoldurada de um Bevilacqua de vinte anos, com boina afrancesada e braços cruzados, e cara de profeta, sabe-se lá de quê. Perante tal concorrência, retirei-me honrosamente. Acho que Bevilacqua nunca soube da generosidade com que lhe cedi o meu lugar.»
[Alberto Manguel, Todos Os Homens São Mentirosos; trad. Umbelina de Sousa, Teorema Abril 2010]

23 de julho de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Não temos o hábito de falar
publicamente de nós mesmos,
preferimos ler.»

Nem sempre a lápis (61)

Há dias assim, levantei-me consideravelmente mais cedo, por volta das onze, mas não me apetece trabalhar. Ponderei o bom argumento de ir ouvir João Rodrigues falar sobre Por Quem Os Sinos Dobram, tendo Hemingway como anfitrião para me apresentar a Casa da Achada e, por tabela, a tasca do Eurico; mas são praticamente tea mint o’clock e não disponho de um apetite de visibilidade urbana suficiente para ir a correr apanhar um autocarro, seguido de um táxi que justifique a institucional meia hora de tolerância. Pertenço ao público apagado que a reserva para esperar pelo começo e sair à francesa, a meio; entrar a meio, no que quer que seja, não faz parte dos meus princípios, desde o início. Passa-se o mesmo com O Cheiro dos Livros, o tal livro póstumo, e a entrada a meio do blogue homónimo; godardíamo-nos num jogo de espelhos, onde o comboio a vapor de Magritte faz agulha para a via-férrea de Hernández. Preciso urgentemente de adquirir uma impressora, recomenda-me esta sensata quinta-feira de lazer a ouvir a Kreutzer Sonata; Concerto para Violino de Beethoven, conduzido por Isabelle Faust, recentemente apresentada por uma amiga. Se a tivesse, a intrometida e irritante impressora, estaria sentado na esplanada de lapiseira em punho a eliminar o que escrevi na Net, para o texto recuperar a sua forma natural no papel. Não se trata da quinta-feira ser um mau dia da semana para trabalhar, simplesmente coincide com o cansaço provocado pela alegria de o fazer ao domingo e à terça e à sexta-feira; não sei porquê, mas estes de boa memória. É certo que não tomo o pequeno-almoço na esplanada, de frente para a livraria com a naturalidade de Cossery; refeito do desengraçado post it estampado nos rostos que me rodeiam, sem praia à vista, atiro-me ao trabalho animado pela transgressão domingueira. Mas não me livro da síndroma contagiante da segunda-feira; levo com ela em cheio, proezas e desgraças, encenadas nos rostos fatigados que insistem em pretender sujar o meu.
[ilustração recomendada pelos laboratórios coisas do arco da velha]

«É bom trabalhar nas Obras» (25)

«Não só não o tomou em conta, como tão-pouco, salvas todas as diferenças, Yeats guardou rancor ao jovenzito Joyce, quando se conheceram na sala para fumadores de um restaurante de O’Connell Street, em Dublin, e o futuro autor de Ulysses, que acabava de fazer vinte anos, leu ao poeta com trinta e sete um conjunto de excêntricas e breves descrições e meditações em prosa, belas mas imaturas. Tinha abandonado a forma métrica, disse-lhe o jovem Joyce, com o objectivo de obter uma forma tão fluida que pudesse responder às oscilações do espírito.
Yeats elogiou-lhe o esforço, mas o jovem Joyce, arrogante, disse-lhe: "Realmente, não me importa nada se gosta ou não do que faço. De facto, nem sei porque estou a ler isto ao senhor." E a seguir, deixando o seu livro na mesa, começou a enumerar as suas objecções a tudo o que Yeats tinha feito. Porque é que se tinha metido na política e, sobretudo, porque é que tinha escrito acerca de ideias e porque é que tinha condescendido a fazer generalizações? Todas estas coisas, disse-lhe, eram sinais de um arrefecimento do ferro, do desvanecimento da inspiração. Yeats ficou perplexo, mas logo se reanimou a si mesmo. Pensou: "É da Royal University, e crê que foi tudo resolvido por Tomás de Aquino, não devo preocupar-me. Já me encontrei com muitos como ele. Provavelmente, faria bem a resenha do meu livro se o enviasse a um jornal."
Mas a auto-reanimação fraquejou quando, ao cabo de um minuto, o jovem Joyce falou mal de Wilde, que era amigo de Yeats. E pouco depois – esta última parte desmentida pelo próprio Joyce, que a considerava como um "mexerico de café" e dizia que, em qualquer caso, as suas palavras de despedida nunca tiveram esse ar de desprezo que se depreende do episódio – pôs-se de pé e, enquanto se retirava, disse: "Tenho vinte anos, que idade tem o senhor?" Yeats respondeu-lhe tirando um ano. Com um suspiro, Joyce acrescentou: "Era o que eu calculava. Conheci-o demasiado tarde. O senhor é demasiado velho."»
[Enrique Vila-Matas, Dublinesca; em tradução para a Teorema;
ilustração: One Hundred Live and Die, Bruce Nauman]

22 de julho de 2010

Breve interlúdio musical

Spectrum Installation by Tokujin Yoshioka from mocoloco on Vimeo.

«The project includes Rainbow Church, a large-scale "straw" installation that also encompasses a 9-metre high stained glass window made of 500 crystal prisms, as well as other work by Yoshioka, such as his Venus Chair and Waterfall.»

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«No entanto, fazia-lhe bem não se esquecer que uma pessoa sábia é aquela que torna monótona a existência pois, então, cada pequeno incidente, se souber lê-lo literariamente, tem para ela carácter de maravilha.»
[ilustração: Mr. Natural, Robert Crumb]

À mão de ler (62)


«Conheço um punhado de escritores que em Barcelona, San Sebastián, até em Sevilha, chegaram a acabar os livros que tinham arrastado para o exílio dentro de avultadas pastas. Em Madrid, não.
Enrique Vila-Matas interessou-se por este fenómeno que lhe descrevo, o do livro exilado e nunca escrito. Vila-Matas encontrou-se com Bevilacqua nesses anos (se o tivesse visto então, ao futuro autor de O Mal de Montano, um jovem e elegante conhecedor de vinhos e de saias!) e suspeito que foi esse encontro que lhe deu a inspiração para o que, décadas mais tarde, se converteria nesse clássico do inefável, Bartleby & Companhia.
Há uma passagem do Bartleby em que Vila-Matas, estou convencido, fala de Bevilacqua sem o nomear. Você, que é tão lido, sabê-la-á de cor. "Na literatura do Não, há certas obras, não apenas não escritas, como das quais não sabemos nada, nem o tema, nem o título, nem a extensão, nem o estilo. Dizem-nos que tal pessoa, escritor, é um autor conhecido. Mas de quê? Ele próprio nega a sua paternidade, sem nem sequer, como o seu célebre antepassado, se atribuir o papel de padastro. O senhor X diz não ser escritor, não ter escrito; a vox populi contradi-lo e afirma que a sua obra, não lida por ninguém, é remarquable."
Quando Vila-Matas soube da morte de Bevilacqua, escreveu-me a sugerir que o crime tinha razões intelectuais: "Que melhor solução para um pseudo-Bartleby, para o autor de um livro inexistente*, do que fazer dele um inexistente autor. Agora, os dois, autor e obra, partilham o mesmo escaparate vazio."
* Ou "evanescente", não estou seguro de como ler esta palavra; Vila-Matas tinha (e ainda tem) péssima caligrafia. (N. do A.)»
[Alberto Manguel, Todos Os Homens São Mentirosos; trad. Umbelina de Sousa, Teorema Abril 2010;
foto: Daniel Mordzinsky]

21 de julho de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Nada disto, absolutamente nada, tem a ver com poesia.
Isto é mais do domínio excessivo das armas íntimas,
uma nova forma de estar com os outros.»
[foto: Steve Caplin]

Nem sempre a lápis (60)

Parece fado – no sentido carpido do destino – ver como a geração que acaba de se lançar, em salto de anjo, para dentro da literatura, sabe ler um Ruy Belo, um Nuno Bragança, um Carlos de Oliveira, por exemplo, mas parece evitar os autores ainda (felizmente) vivos da mesma geração. Mas lá está, tal como Brendan ditou a quem lhe redigiu Nova Iorque, «Não há nada que me irrite mais do que essas pessoas que tentam rotular gerações de escritores, como se toda a escrita fosse produzida numa maternidade. Por amor de Deus, os escritores não vêm em gerações.» E eu acrescentaria; só os estorninhos vêm em bandos, abençoado Behan.
[ilustração: Topor, sans-titre, 1975]

À mão de ler (61)

«CASAS
Falemos de casas com janelas viradas para dentro. Falemos de casas sem lados, casas redondas, casas vazias. Falemos de casas que são ruas e ruas que são casas. Falemos desse mendigo aconchegado à geada, da puta que pernoita atrás de um balcão de crimes potenciais. Falemos das novas estrelas de David com que te marcaram a liberdade. As casa dos poetas sem terra, sem lugar, dos lugares sem sítio, dos poetas sitiados.
Falemos dessas casas enfim expostas, imprimidas numa folha de papel, numa árvore abatida, na demanda do pulmão resfolegante. Passeiam pelas casas e descobrem-lhes o nome, saltam à corda sobre a alcatifa dos jardins, medeiam os abrigos com poses recolhidas.
São tão pobres as casas, tão sem beirais onde fazer o ninho.
CENTAURO
Sou do tempo em que peregrinávamos ao Sítio para ver fossilizada a pata do cavalo. Com o tempo passei a ver ali apenas pedra, nenhum milagre, nem mesmo do tipo desses milagres que por vezes a natureza prega fazendo coincidir as suas formas com as da nossa temerária imaginação.
Passou-se o mesmo com o centauro. A metade que tinha de humano transformou-se numa crina penteada pelos pentes da ganância. Nessa parte, pouco mais podemos observar do que a prudente maquilhagem sugerida por conselheiros de imagem a quem resolve hipotecar-se a si próprio para poder ser aquilo que nunca será.
Resta-nos a metade cavalo, emigrada das montanhas para os apartamentos, com devidas ferraduras nas patas e a graciosidade do selvagem reduzida a pouco mais do que a teimosia de um burrro.»
[Henrique Manuel Bento Fialho, Estranhas Criaturas, Deriva 2010;
foto: autor desconhecido, como desconheço se o da direita leu, de maneira poeticamente correcta, o que o da esquerda escreveu]

20 de julho de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Judeu, judeu, judeu, judeu, judeu, judeu! Já não posso mais com a saga dos judeus martirizados! Por isso faz-me um favor, meu povo martirizado: vai à merda mais a tua herança de martírio – é que por acaso eu também sou um ser humano!»

À mão de ler (60)

«Poucas semanas depois de se instalar em Madrid, Quita já tinha fundado a Casa Martín Fierro, num quarto andar da Prospe, entre as pequenas vivendas e habitações operárias. Ali recebia, como uma refinada máter-famílias, os fugitivos, redimidos, despojados, estropiados, perdidos e salvos que as várias ditaduras da América Latina não tinham conseguido fazer (permita-me o transtivo) desaparecer de todo. Refinada no seu tailleur e nas suas pérolas, o casaco de pele de leopardo posto sobre os ombros como uma capa, um aristocrático buço sobre o lábio superior e olhar sempre atento por detrás dos grandes óculos de tartaruga, Quita tinha para cada um a palavra adequada, sem aquele trejeito de desprezo que a filantropia costuma ter. Por trás da secretária da recepção, uma estante aparatosa exibia um exemplar encadernado em pele de vaca da obra do imortal Hernández, vários livros de autores proscritos pelos militares e um par de recipientes para chá-mate com que Amdrea, a sempre fiel ajudante, tinha aprendido a convidar os recém-chegados. Desde então, nenhum refugiado chegava a Espanha sem passar por Quita para apresentar credênciais.»
[Alberto Manguel, Todos Os Homens São Mentirosos; trad. Umbelina de Sousa, Teorema Março 2010;
autor desconhecido da gravura que ilustra o poema de José Hernández, La Vuelta de Martín Fierro]]

19 de julho de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«O ebook não é mais do que uma tábua de argila
com mais memória.»

Nem sempre a lápis (59)

  Quando comprei Disse-me Um Adivinho, aproveitei a oportunidade da Feira do Livro para trazer também Nova Iorque, de Brendan Behan; estavam na calha, puxados por Cormac McCarthy. Até aqui, tudo bem, tudo natural: na altura, folheei o livro do irlandês; pus de lado Esta Terra Não É Para Velhos, para poder ter longas conversas com Terzani, a descansar durante a demorada expatriação de Hernández para português. Não é a primeira vez que me acontece coincidir ou procurar um determinado livro para acompanhar a tradução de outro; utilizei esse método em Santa Maria do Circo, por exemplo, deleitando-me com a releitura de O Último Leitor. Especialmente, quando David Toscana recorre à mão de Lucio, para o velho bibliotecário impedir a mãe de Babette de atirar o melodrama cirqueiro no deserto mexicano para o quarto das baratas; requinte que me passara despercebido por se tratar de um livro posterior à epopeia do Grande Circo Mantecón. Durante a apresentação do livro, fiz-lhe a pergunta sacramental e respondeu-me com esta previsível e, por isso, desconcertante atitude: «Então, chegou também a vez dele.» Desta vez, o alerta da cinta – Prefácio de Enrique Vila-Matas – estava correcto; não me privo de alimentar a saborosa dúvida se estou a ditar Dublinesca ou a traduzir episódios de Behan, escolhidos por Nietzky, para que Samuel Riba possa editá-los antes de irem em expedição ao Bloomsday.
«Já se sabe como é, acaba sempre por aparecer quem menos se espera.» (Vila-Matas)
 
[foto: passagem de M. C. Escher, captada por Nico]

À mão de ler (59)

«Permita-me que duvide. Não um jornalista apaixonado pela vida, como você é. Não um homem do terreno, como eu o definiria. Você, Terradillos, não é um corretor de necrologias. Antes pelo contrário. Você, indagador do mundo, quer conhecer os factos vitais. Você quer narrá-los para os seus leitores, para esses poucos interessados num artífice como Bevilacqua, cujas raízes se afundaram uma vez na região de Poitou-Charentes. Que é também sua, Terradillos, não o esqueçamos. Você quer que esses leitores conheçam a verdade, conceito perigoso, se alguma vez o houve. Você quer redimir Bevilacqua na sua tumba. Você quer dar a Bevilacqua uma nova biografia, armada de pormenores baseados em recordações reconstruídas com palavras. E tudo isto pela paupérrima razão de que a mãe de Bevilacqua nasceu no mesmo recanto do mundo que você. Vã empresa, meu amigo! Sabe o que lhe recomendo? Que se dedique a outras personagens, a heróis mais coloridos, a celebridades mais apelativas, das quais Poitou-Charentes pode verdadeiramente orgulhar-se, como esse mariquinhas heterossexual, o oficial da marinha Pierre Loti, ou esse mimado das universidades ianques, o calvo Michel Foucault.»
[Alberto Manguel, Todos Os Homens São Mentirosos; trad. Umbelina de Sousa, Teorema Abril 2010;
ilustração: Eric Laforgue]

18 de julho de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Passeio dos tristes seriamente em risco,

Às vezes, lá calha...

«Um livro divertido e estranho,
onde os irlandeses de Nova Iorque parecem lisboetas saídos de uma sesta muito agitada de Pessoa.»
(Enrique Vila-Matas)
[Ilustração: Série Fernando Pessoa, de António Costa Pinheiro]

Nem sempre a lápis (58)

Mas que bonito lápis verde que tiveram a atenção de me procurar na esplanada. Há cerca de um ano, recordo bem, calhou-me um Staedtler afiado às três pancadas que antecederam a entrada em cena de uma anotação de trabalho. «Caneta não serve?», ainda perguntou a empregada apontando-me (com o gerúndio da nacionalidade) uma horrorosa esferográfica. Mina macia, borracha – não uso; prefiro riscar a apagar, não arrisco – do lado oposto da cor bem disposta, única identificação do lápis anónimo; genérico. Se puder, dou-lhe a palmada; um lápis só atrapalha o serviço, uma esferográfica sempre é mais despachada. Levanto-me e esqueço-me, como esqueci a urgência que nos conduziu ao encontro um do outro e, possivelmente, era apenas esta; o lápis verde, macio à escrita, ao tacto acidental.