30 de novembro de 2011
29 de novembro de 2011
Porque a Net fornece um novo dia
«A Mulher Descalça é um desconcertante puzzle que desencadeia duas atitudes contrárias e uma certa tensão conflituosa:»
[best seller, mas ainda há alguns disponíveis por e-mail]
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Às vezes, lá calha...
«O sábio doente chamava-se Lao Tse; o outro era guarda da fronteira, um homem da espada: Elia de Mirceia.»
(Gonçalo M. Tavares)
Nem sempre a lápis (234)
Apanhei o autocarro à melhor hora, acompanhado pelo brilho do Sol, às quatro da tarde. Vou a casa esperar pela tradução, esperar pela apresentação da Teodolito, esperar pelo encontro com uma leitora, esperar pelo comboio para ir ao Porto, à espera que sejam horas de entrar na Gato Vadio, onde o livro vai ser apresentado. Entretanto, concluído o processo espero pelo julgamento no HP do Alvor. Dos bárbaros, não creio que haja mais a esperar.
Papiro do dia (154)
«Se no mundo a lei e as cidades pertenciam às caravanas que avançavam apesar do ladrar dos cães, para ele, Elia de Mirceia, último aprendiz do mestre Lao Tse, o que importava era imitar a leveza que este ameaçara.
- O verdadeiro mestre – dissera Lao Tse na última conversa antes de morrer – não é o que força a passagem, é o que a seduz. Quando o mestre passa os cães não ladram, admiram.
Toda a tempestade pára – tinha dito ainda Lao Tse – e toda a natureza se instala observando-nos como se fosse a irmã mais velha, a que nos vê, escondida, ansiosa por assistir às nossas proezas. Quando o mestre passa os cães não ladram – repetia. – Fácil é vencer quando se é mais forte; difícil é utilizar a força para os outros não perderem; mas só isto é justo.
Elia recordava aqueles dias; a memória fixa nas palavras invulgares que ouvira. No entanto, se bem que tentasse, no corpo algo resistia a aproximar-se do que Lao Tse lhe ensinara.
Gabava-se de ser diferente dos outros, mas não. Era, aliás, neste particular, semelhante ao moscardo da fábula de Esopo que em cima da roda de uma carroça em movimento exclamava, tão orgulhoso quanto cego:
- Que poeira eu levanto!
Também Elia pousava em algo bem mais poderoso que ele: as palavras de Lao Tse.
Durante anos tentou a sabedoria. Todas as noites lia parte do texto que o mestre lhe deixara. Porém, como Ulisses, o Astuto, que se amarrara ao mastro do barco para poder ouvir os segredos do mundo contados pelas sereias (evitando, assim, o risco de ser atraído para a morte certa), também Elia de Mirceia recusava entregar-se por completo; e se todas as noites ouvia os segredos do mestre, todas as noites ainda parte do seu corpo se agarrava a algo que marcara o seu passado: a ambição e a força, e ainda: a indiferença perante o invisível e o alto.
Deixara a crueldade que está em tantos, mas não conseguia ser o santo que tão poucos são.»
[Gonçalo M. Tavares, Histórias Falsas; BIIS, Setembro 2010;
28 de novembro de 2011
27 de novembro de 2011
Às vezes, lá calha...
«Nele, o curioso não eram apenas as ideias, mas o modo de se apresentar aos outros. Uma túnica longa, nobre, mas no fim, estranhamente, os pés descalços, como um vagabundo. É a única maneira de sentir o espírito dos lugares, dizia.»
(Gonçalo M. Tavares)
Nem sempre a lápis (233)
Quando vou ao tabaco, aproveito a demora de um café distraído com o movimento da rotunda do Largo 1.º de Maio, em Portimão. Entre a variedade da oferta, dividida por biombos publicitários e identificada pela cor das cadeiras, ocupo a Riviera; local tomado com Blues para uma puta velha. Um serrano deslocado, de safões e blusão de treino, pescadores de bicicleta e balde no guiador, dj’s ao volante de mesas de mistura de som, casais assarapantados com o trânsito da urbe; e peões, caminhantes e transeuntes com passo ao ritmo da vida deles, em princípio. Uns metros mais adiante, na tasca entre a Florista do Sapal e a Barbearia Popular, donas de casa jogam às cartas; separados pela janela. Encolhida a frequência turística, os leitores de imprensa ordinária ganham outra dimensão; apontam raças e credos, com malícia fundamentalista, cronometram a assiduidade rotulando de puta, as que fazem questão de o ser e as que não se nota que o sejam, com a cumplicidade alarve de um sorriso: «Lá vai ela outra vez.» Não sei se seria a esposa de algum deles; fui tratar do jantar.
Papiro do dia (153)
«A sua segunda vida começou depois de um encontro fortuito com Diógenes, o Cínico, conhecido filósofo que jamais se sentia intimidado por alguém. É contado por Píndaro a este propósito que chegando Alexandre – o Grande – à cidade do filósofo pediu que o levassem até ele pois dele conhecia as ideias e admirava-as. Com a sua imponente comitiva, Alexandre, o Grande, deparou com Diógenes sentado no chão, exercendo, absorto, a sua própria preguiça. Depois de uma pausa solene, e saindo do meio dos seus subservientes acompanhantes, Alexandre dirigiu-se a Diógenes e proclamou:
- Estás perante o grande Alexandre; o que lhe tens a dizer?
Diógenes, o filósofo, olhou para Alexandre, o Grande, e respondeu:
- Não se importa de se desviar um pouco. É que me está a tapar o sol. Ficou célebre a réplica de Diógenes. Não é único mas é raro: a filosofia afirmar a sua autoridade diante do poder.
(Só mais um acrescento, para concluir a história. Alexandre engoliu a afronta e calou-se. Mais: terá dito, umas horas depois, à sua comitiva:
- Se eu não fosse Alexandre, o Grande, queria ser Diógenes.
História admirável, de facto: o poder com inteligência para reconhecer a audácia da sabedoria; mesmo assim, ninguém maior que o espelho: a inalcançável vaidade da espada.)»
26 de novembro de 2011
25 de novembro de 2011
Nem sempre a lápis (232)
Aguada a promessa do Verão fingido para mandar um mergulho no 1.º de Novembro, acabei por arrumar as sandálias sem se despedirem da praia. Fiquei-me por uma esplanada a ver chover, entre comentários. O desleixo ou a oportunidade de importação de palmeiras egípcias, veio com o bónus do escaravelho faraónico, mas a salvo do predador natural – talvez para não serem apanhados a fazerem fitas no estrangeiro. E, dia após dia, o campo e os jardins do Algarve vão cedendo lugar a cemitérios com lápides de troncos, mumificados pela calada da manhã. (A esferográfica é um meio de expressão muito agressivo.)
Papiro do dia (152)
«O episódio é conhecido: contou-o Platão. Tales de Mileto, absorvido pelas ideias, olhava para o céu quando caiu a um poço. Uma criada Trácia, muito simples, quase analfabeta, presenciou a cena e desatou às gargalhadas.
Para Tales, pessimista, o tempo só trazia atributos negativos: magreza à saúde, fraqueza à força.
Paixão significava desilusão; e é o entusiasmo da noite que, mais tarde, de manhã, nos ficará ficar sem forças – pensava Tales.
Recusou então Lianor; não por sobranceria, mas por prudência. As mulheres guardam no corpo a serpente, sempre pensara.
Desespero em Lianor, claro, como em qualquer mulher rejeitada.
Quis morrer: atirou-se ao mar.
Tales interrompeu a sua tarefa de olhar para o que não é possível ser olhado, ouvira os gritos dos habitantes de Mileto:
Lianor desaparecera nas águas!
Tales correu para a praia. Olhou para o fundo:
- Este mar matou – disse. – Está calmo demais.
Indisciplinado por natureza, depois deste acontecimento, Tales transformou-se. Levantava-se agora, todas as manhãs, a hora certa.
O que fazia?
Ele, o filósofo, o sábio, pegava no barco, que enchera de arroz na véspera, e entrava no mar. À medida que avançava ia atirando arroz à água, como se esta fosse um ser com fome.
- Se os peixes e a água comerem o arroz, os peixes e a água esquecerão a carne de Lianor.
Assim pensava Tales, o sábio.
Durante vinte e cinco anos ele manteve o mar alimentado com arroz.
Jurava, no entanto, não o fazer por amor; era orgulhoso. Dizia:
- Sou investigador. Quero estudar a água.»
24 de novembro de 2011
23 de novembro de 2011
Nem sempre a lápis (231)
Nem a cumeada da Alameda lhe falta, ao Bairro Alto de Portimão. Não por que se pareça com o Príncipe Real, isento de árvores e com parque de estacionamento, mas mais rápido a espraiar-se na Zona Ribeirinha. Gatos e glicínias demarcam a reserva do fogareiro à porta e da roupa estendida na corda ao nível do olhar; sem que ninguém se atreva a identificar o corpo, atento atrás das cortinas.
Papiro do dia (151)
«A multidão ficou então contente como sempre fica quando a sua opinião, que é também ao mesmo tempo a sua estupidez, se mostra mais forte do que a ideia de um homem isolado; e rapidamente esqueceu o assunto. Para a cidade, o valioso cofre que Arquitas protegia, de conteúdo desconhecido, desaparecera para sempre nas águas.
O que a seguir relatamos passou-se três dias depois.
Arquitas parou no sétimo degrau e, virado para o filho do barqueiro, disse:
- Quero oferecer-te um tesouro.
O rapaz exclamou, de imediato, alto, com tanto entusiasmo quanta imprudência:
- O cofre!
Arquitas pediu silêncio e passou-lhe o cofre para as mãos.
- Lá dentro está um livro importante. Guarda-o ao lado da tua vida como se fossem duas coisas iguais. Entrega-o depois a um único homem. Mas apenas estiveres próximo da morte. Quando souberes o que é um sábio. O rapaz ouviu tudo, atento. Tinha a idade estranha em que os segredos e as promessas são de ouro; intocáveis.
O tempo passou, entretanto. Esquecidos nos vivos – Arquitas e o filho do barqueiro – ao ritmo que a natureza da morte e das sucessivas geraçõees exige, perdeu-se, em definitivo, o rasto de Margites, a terceira obra-prima de Homero.
Hoje, localizar o poema torna-se improvável, quase impossível. No entanto, duas certezas: a primeira é a de que um único homem possui o cofre.
A segunda é uma certeza que nasce de quem se informou o suficiente: de entre os descendentes e amigos do filho do barqueiro nem um aprendeu a ler.
É, pois, provavelmente, no meio de uma família de camponeses, pessoas simples e analfabetas, que se poderá encontrar o livro mais procurado da história.
Se ela ainda não foi encontrado é porque quem pesquisa vasculha em bibliotecas, em sítios nobres e cultos.»
[Gonçalo M. Tavares, Histórias Falsas; BIIS, Setembro 2010]
22 de novembro de 2011
21 de novembro de 2011
Às vezes, lá calha...
«Ali estavam, pois, a História e a Literatura recrutada pelo comércio. Kurtz e Karl Marx unindo as mãos para saudarem hóspedes ricos à saída do barco.»
(Arundhati Roy)
Nem sempre a lápis (230)
À noite, a vereda entre o Lar da Criança de Portimão e a Polícia, em frente do tribunal, não é lugar que se recomende. O muro da esquadra algema a descida do empedrado para o parque, vazio de funcionários e pais que já levaram os filhotes para casa, surpreendidos com o tamanho dos cães. A rede do muro do lar torna-se adulta e vai dar a um ermo de sombras peneiradas pela memória; o medo.
Papiro do dia (150)
«Lá dentro havia quatro cadernos esfarrapados. Nas capas diziam Cadernos de Exercícios de Sabedoria com espaço para Nome, Escola/Faculdade, Turma, Disciplina. Dois tinham escrito o nome dela, e dois o nome de Estha.
No verso da contracapa de um deles havia algo escrito numa caligrafia infantil. O desenho cuidadoso de cada letra e o espaço irregular entre as palavras fora preenchido com a luta pelo controlo de um lápis errante e voluntarioso. O sentimento, pelo contrário, era lúcido: Eu Odeio Miss Mitten e Acho que as suas calsinhas têm BURACOS.
Rahel estava sentada de pernas cruzadas (no banco sobre a mesa).
- Esthappen Dês-conhecido – disse ela. Abriu o livro e leu em voz alta.
“Quando Ulices regressou a casa o seu filho veio e dice pai julgava que nunca mais voltavas. vieram muitos príncepes e todos eles criam casar-se com Pen Lope, mas Pen Lope dice que o homem que conseguir lansar uma seta por entre os doze arcos pode casar comigo. e todos falharam e ulices veio ao palácio vestido como um pedinte e pediu se pudia tentar. os homens riram-se todos dele e diceram se nós não conseguimos tu também não. o filho de ulices mandou-os calar e dice deixeino tentar e ele pegou no arco e lansou a seta mesmo por entre os doze arcos.”»
20 de novembro de 2011
19 de novembro de 2011
Porque a Net fornece um novo dia
«Desde menino coleciono livros. Passei toda a minha vida no meio deles e grande parte de meus melhores anos dirigindo bibliotecas na minha terra e no estrangeiro.
Hoje, fora da vida ativa enfim, tentando gozar o otium cum dignitate apesar da inflação, cuido dos meus livros e nada mais.
Esse longo convívio com livros de toda sorte ensinou -me alguma coisa sobre eles, creio eu, mas ensinou -me, principalmente, que em matéria de livros tudo quanto sei só serve para mostrar o quanto ignoro. Não há dia que não aprenda alguma coisa.
Os que gostam de conversar imprimem suas prosas. A velha arte passou de diálogo a monólogo. Os conversadores de hoje falam sozinhos.
É, talvez, por isso que resolvi escrever este livrinho. Escrevi –o para passar tempo, para prosear sobre um assunto por que me apaixonei.»
[Rubens Borba de Moraes, O Bibliófilo Aprendiz. Letra Livre, Lisboa, 2011. (205 pp. 15,00€ Desconto livreiro: 40%)]
Às vezes, lá calha...
«Há coisas que não se podem fazer – como escrever cartas a uma parte de nós mesmos. Aos nossos próprios pés ou cabelos. Ou coração.»
(Arundhati Roy)
Nem sempre a lápis (229)
Gosto da expressão nicho de mercado; é aconchegante, é íntima. Mercado esgaçado pelas costuras – a lombada –, deve fazer muita de corrente de ar. Ajeito a camisa, descruzo a perna e sorrio para os sapatos de couro comprados em Algés. Peça única, não assinada nem numerada, passaram duas noites na oficina do senhor Albano; a alargar o nicho dos meus pés, 5 € o par.
Papiro do dia (149)
«O quarto conservava os seus segredos. Não denunciava nada. Nem no desalinho de lençóis amachucados, nem no desmazelo de um sapato atirado para o chão, nem na toalha molhada pendurada nas costas de uma cadeira. Ou no livro meio lido. Era como um quarto de hospital após a enfermeira ter passado por lá. O soalho estava limpo, as paredes brancas. O armário fechado. Os sapatos arrumados. O cesto do lixo vazio.
A limpeza obsessiva do quarto era o único sinal positivo de vontade em Estha. A única ténue sugestão de que ele teria, talvez, um Projecto de Vida. O murmúrio apenas da sua relutância em subsistir com as migalhas oferecidas pelos outros. Na parede junto à janela havia um ferro e uma tábua de engomar. Um monte de roupa dobrada e amachucada aguardava a vez de ser passada a ferro.
O silêncio pairava no ar como uma perda secreta.
Os terríveis fantasmas de brinquedos impossíveis-de-esquecer apinhavam-se nas pás da ventoinha do tecto. Uma catapulta. Um koala Qantas (de Miss Mitten) com os botões dos olhos soltos. Um ganso insuflável (rebentado com um cigarro de polícia). Duas esferográficas com ruas silenciosas e autocarros vermelhos de Londres boiando para cima e para baixo.»
18 de novembro de 2011
17 de novembro de 2011
Às vezes, lá calha...
«Como muitas vezes, o poder ajoelhou-se frente à beleza; como sempre, a beleza fingiu resistir, mas logo se rendeu.»
(Gonçalo M. Tavares)
Nem sempre a lápis (228)
Fui educado pelo meu avô num princípio que o avô lhe transmitira, simulando o gesto de apertar as barbas, que ele não usava: «Palavra de Fallorca.» Assim aprendi a viver a metáfora.
Papiro do dia (148)
«Ammu dizia que o destino triste, mas inteiramente previsível, dos aviões de Chacko era a medida exacta das suas capacidades.
Uma vez por mês (excepto durante as monções), chegava uma encomenda por Via Postal Prioritária para Chacko. Continha sempre um kit em balsa para modelar. Chacko costumava gastar entre oito a dez dias para montar o avião com o seu minúsculo depósito de combustível e hélice motorizada. Quando ficava pronto, levava Estha e Rahel até aos campos de arroz em Nattakom para o ajudarem a fazê-lo voar. Nunca voava mais do que um minuto. Mês após mês, os aviões tão cuidadosamente construídos por Chacko despenhavam-se nos arrozais verde-lamacentos, arrastando atrás de si Estha e Rahel que, como cães de caça bem treinados, corriam para salvar os destroços.
Uma cauda, um depósito, uma asa.
Uma máquina ferida.
O quarto de Chacko estava atulhado de aviões de madeira partidos. E todos os meses chegava um novo kit. Chacko nunca responsabilizava o kit pelos desastres.»
[Arundhati Roy, O Deus das Pequenas Coisas; trad. Teresa Cabral, BIIS, Setembro 2010]
16 de novembro de 2011
15 de novembro de 2011
SMS
Se não respondi nem atendi, nas últimas 24 horas,
não foi neura (ui...) nem descortezia; esqueci o telelérias em casa.
Podem retomar a 2.ª via, ao vosso dispor.
Às vezes, lá calha...
«As folhas de inhame continuaram a acenar até muito depois de o comboio ter passado, como se concordassem inteiramente e não tivessem quaisquer dúvidas. Árvores verdes e postes de telefone passavam pela janela. Pássaros quietos deslizavam por fios em movimento, como bagagem não recolhida no aeroporto.»
(Arundhati Roy)
Nem sempre a lápis (227)
O mau tempo parece ter acabado. Fazer praia na segunda quinzena de Outubro e transpirar à volta de trinta graus na Feira de Castro, por muito agradável e invejável que seja, não é bom tempo; é contra-natura, queixam-se. Não me privo das sandálias nem de passear os cães, abertas as ruas do bairro pela biblioteca. Falta um candeeiro flexível, apertado no canto da mesa; «e estas eram apenas as pequenas coisas»
(Arundhati Roy).
Papiro do dia (147)
«Rahel entrou primeiro para a lista negra no Convento Nazaré, aos onze anos, quando foi apanhada do lado de fora do portão do jardim da sua chefe de internato a decorar com florinhas um poio fresco de bosta de vaca. Na Assembleia da manhã seguinte foi obrigada a procurar a palavra depravação no Dicionário Oxford e a ler o significado em voz alta. “Qualidade ou condição de ser depravado ou corrupto”, leu Rahel, com uma fileira de freiras de lábios cerrados sentadas atrás de si e um mar de alunas aos risinhos à frente. “Qualidade perversa: perversão moral; corrupção inata da natureza humana devido ao pecado original; tanto os eleitos como os não-eleitos vêm ao mundo num estado de total d. e alienação em relação a Deus e, entregues a si mesmos, nada podem senão pecar. J. H. Blunt.”
Seis meses depois foi expulsa após repetidas queixas das raparigas mais velhas. Era acusada (justamente) de se esconder atrás das portas e dar encontrões propositados às mais velhas. Quando foi chamada e interrogada pela Directora sobre o seu comportamento (com recurso a lisonja, cana, jejum), acabou por admitir que fizera aquilo para descobrir se os seios se magoavam. Naquela instituição cristã, os seios não eram coisa reconhecida. Supostamente não existiam e, se não existiam, como é que podiam doer?»
[Arundhati Roy, O Deus das Pequenas Coisas; trad. Teresa Cabral, BIIS, Setembro 2010]
13 de novembro de 2011
9 de novembro de 2011
8 de novembro de 2011
Às vezes, lá calha...
«Sinais de Proibido Nadar tinham sido afixados em sofisticada caligrafia. As árvores continuavam verdes, o céu continuava azul, o que já era alguma coisa.»
(Arundhati Roy)
Nem sempre a lápis (226)
Tanto posso estar em Carnaxide como em Porto Covo, em Mortágua ou em Portimão, onde acabo de chegar. Se estou na minha esplanada, recorro a um chá para não perder os rituais do fim do dia; se ando de sandálias pelo jardim do Quiosque Napoleão ou pela Zona Ribeirinha, passeio os cães. Passeamo-nos, voltámos a acertar o passo; reconheço. Instalada a Net e o telefone fixo, dei por mim a pensar que faltava pouco para chegar a casa, estacionado nas bombas de gasolina a seguir a Ourique, a recuperar o percurso para o Sul; combustível e bar aberto marcavam a fronteira. Esta incompreendida e invejada disponibilidade – adaptei-me à maturidade da minha liberdade – não tem endereço fiável. É o espaço inacessível, onde leio, divago, entregues as plantas ao cuidado do Sol, por ora. Pouco escrevo; acerto e dou corda ao relógio de parede, todas as noites – leio.
[do outro lado]
[do outro lado]
Papiro do dia (146)
«Estha fora sempre uma criança calada, por isso ninguém sabia dizer com precisão a exacta altura (o ano, senão mesmo o mês ou o dia) em que ele deixara de falar. O facto é que não havia uma “altura exacta”. Como um negócio que vai abrandando, abrandando, até parar. Um emudecimento quase imperceptível. Como se tivesse simplesmente esgotado a conversa e não tivesse mais nada a dizer. Mas o silêncio de Estha nunca era incómodo. Nunca era intrometido. Nunca era barulhento. Era um silêncio acusador, de protesto, mas uma espécie de entorpecimento estival, uma dormência, o equivalente psicológico daquilo que os dipneus fazem para sobreviver na estação seca; excepto que, no caso de Estha, a estação seca parecia destinada a durar para sempre.
Com o tempo, foi adquirindo a capacidade de se fundir com o ambiente circundante – estantes, jardins, cortinados, vestíbulos, ruas –, de parecer inanimado e quase invisível a um olhar inexperiente. Habitualmente os estranhos demoravam a aperceber-se dele mesmo que estivessem no mesmo compartimento. Demoravam ainda mais a aperceber-se de que ele nunca falava. Alguns nunca chegavam a aperceber-se.
Estha ocupava muito pouco espaço no mundo.»
7 de novembro de 2011
6 de novembro de 2011
Às vezes, lá calha...
«Não participa em Actividades de Grupo era outra queixa frequente. Embora não dissessem exactamente o que queriam dizer com "Actividades de Grupo".»
(Arundhati Roy)
Papiro do dia (145)
«Estha e Rahel quase nasceram num autocarro: o carro em que Baba, o seu pai, transportava Ammu, a sua mãe, para o hospital de Shillong para ela dar à luz, avariou na estrada ziguezagueante da propriedade do chá em Assão. Abandonaram o carro e fizeram sinal a um autocarro apinhado dos Transportes Estatais. Devido à estranha compaixão dos muito pobres pelos comparativamente desafogados, ou talvez apenas por notarem a avançadíssima gravidez de Ammu, alguns passageiros sentados cederam o lugar ao casal e, durante o resto da viagem, o pai de Estha e Rahel teve de segurar o ventre da sua mãe (e com eles lá dentro) para o impedir de balouçar. Isto foi antes de eles se divorciarem e de Ammu voltar a viver em Kerala.
Segundo Estha, se tivessem nascido no autocarro poderiam ter usufruído de viagens de autocarro gratuitas durante o resto da vida. Ninguém sabia exactamente onde ele obtivera tal informação, ou como é que sabia tais coisas, mas durante anos a fio os gémeos guardaram um leve ressentimento contra os pais por estes os terem deserdado de uma vida inteira de viagens de autocarro gratuitas.»
5 de novembro de 2011
Vertigo
Comité d’organisation
Alain Badia, Université de Perpignan-Via Domitia
Anne-Lise Blanc, Université de Perpignan-Via Domitia
Mar Garcia, Universitat Autònoma de Barcelona
Anne Lacroix, Université de Perpignan-Via Domitia
Comité scientifique
Jean-François Carcelén, Pr., Université Paul Valéry-Montpellier III
Anne Chamayou, Pr., Université de Perpignan-Via Domitia
Geneviève Champeau, Pr., Université Michel de Montaigne-Bordeaux III
Jordi Llovet, Pr., Universitat de Barcelona
Danièle Miglos, P.E., Université Charles de Gaulle-Lille III
José-María Pozuelo Yvancos, Pr., Universidad de Murcia
Domingo Ródenas, M.C.F., Universitat Pompeu Fabra
Yvette Sánchez, Pr., Universität St. Gallen
Enric Sullà, Pr., Universitat Autònoma de Barcelona
(Tradutores convidados: André Gabastou e Jorge Fallorca)
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